De Hotel de Luxo a Moradia Cooperativa: A Ocupação do Lord Palace Hotel em São Paulo

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No Centro de São Paulo, no mês de março, a Frente de Luta por Moradia (FLM) comemorou um grande sucesso: os direitos legais de propriedade do enorme edifício onde era anteriormente o Lord Palace Hotel seriam transferidos para os atuais ocupantes, que já moravam lá há quase três anos e meio.

O Lord Palace Hotel, em Santa Cecília, no Centro de São Paulo, ficou abandonado por oito anos, com uma placa na frente informando que qualquer pessoa que o ocupasse não receberia auxílio da Prefeitura. Antes um hotel de alto nível que depois foi transformando em restaurante self-service, o empreendimento faliu e a Prefeitura reintegrou a posse do imóvel em virtude dos impostos devidos pelo proprietário anterior. A Prefeitura construiu um muro em torno do edifício, instalou a placa de alerta para evitar ocupações, contratou um segurança e então, deixou o edifício sem uso por quase dez anos.

Em 18 de outubro de 2012, o prédio ganhou nova vida. Naquela noite, a FLM coordenou 18 ocupações de diferentes moradias pela cidade, incluindo o prédio do Lord Palace Hotel. Como a Prefeitura tinha poucos recursos para reagir a tantas ocupações simultâneas, a ocupação ocorreu naquela noite sem muita resistência. As pessoas que foram ocupar o hotel informaram ao único segurança sobre seus planos e lhe pediram que fosse para casa, o que ele acatou. Atualmente, há 326 famílias vivendo na ocupação e 11 pessoas ali empregadas como porteiros, ascensoristas e zeladores.

Movimentos Sociais Respondem a Crise de Moradia em São Paulo

Infelizmente, a situação dos ocupantes do Lord Palace Hotel é parte de uma crise de moradia muito maior em São Paulo. Enquanto muitas das famílias que ocuparam o Lord Palace Hotel eram anteriormente sem teto, de acordo com Guilherme Bolos, coordenador nacional do MTST, 95% das pessoas–que fazem parte do déficit de moradia de 5,8 milhões em São Paulo–estão pagando alugueis que representam mais de 1/3 de suas rendas, morando com parentes em locais apertados e de favor, ou vivendo em situações de alto risco. O Instituto de Urbanismo e Estudos Metropolitanos (URBEM) e outros grupos estimam que até 2024, mais de 700.000 unidades de moradia de baixa renda “de primeiro nível” (para aqueles que ganham até o triplo do salário mínimo) terão que ser construídas para resolver o problema do déficit habitacional na cidade. Em 2014, a Prefeitura de São Paulo tinha planos de construir menos da metade disto.

O FLM é um grupo formado por movimentos sociais que se uniram em 2003 para responder à crise da moradia paulista. A união foi oficializada em uma primeira reunião após as ocupações iniciais em 2004. Movimentos que são membros do FLM incluem o Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), Fórum de Moradia e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Fomaesp), Fórum de Mutirões de São Paulo, Associação de Mutirões, Movimento Quintais e Cortiços da Região da Mooca, Movimento Terra de Nossa Gente, Sem-Teto pela Reforma Urbana, Movimento de Moradia da Zona Norte, e o Movimento Centro-Norte.

O movimento teve sua origem a partir de um histórico de mobilização comunitária através de mutirões auto-geridos ou sessões coletivas de trabalho, que frequentemente realizavam urbanizações e melhorias materiais nas comunidades. Estes mutirões se tornaram uma estratégia subsidiada pelo governo na transição democrática de meados dos anos 80. Muitos dos movimentos que atuaram como base para a FLM começaram em lutas para exigir urbanização nas comunidades existentes, como favelas, loteamentos e cortiços. A Prefeitura de São Paulo começou oficialmente a subsidiar estes mutirões em 1989 durante a administração da então Prefeita Luiza Erundina, fornecendo materiais e terrenos. No final dos anos 80, o movimento também se inspirou com o intercâmbio com as cooperativas de moradia do Uruguai, onde mais de 20.000 famílias vivem em cooperativas de moradia construídas por todos e para todos.

Os objetivos do FLM enfatizam uma reforma urbana que permite pessoas de qualquer classe social a ocupar regiões urbanas centrais “reduzindo os impactos ambientais da expansão urbana horizontal”.  Outra missão, ao exemplo da ocupação do Lord Palace Hotel, é transformar “as propriedades de devedores do país, estado, e cidade em espaços de moradias para comunidades vulneráveis”. Como fizeram no Lord Palace Hotel, o objetivo é de sempre incorporar a participação e mutirões autônomos.

A Ocupação na Prática

Maria do Planalto, uma ativista veterana de 31 anos da FLM e uma importante líder com a função de consultora social na ocupação, explica a lógica por trás das ocupações de forma simples: “Tanto a Constituição brasileira quanto a Bíblia defendem o direito à moradia. Há tantos prédios vazios que abrigam apenas ratos e baratas ao mesmo tempo em que há famílias desabrigadas”. Ela explica que as famílias que ocuparam o antigo Lord Palace Hotel estavam desabrigadas e que a ocupação ocorreu durante um período de chuvas fortes. Embora houvesse uma necessidade urgente de abrigo, ela diz que o objetivo inicial naquela noite não era necessariamente obter a posse do prédio: “Não tínhamos a audácia de pensar que conseguiríamos isso”.

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De fato, outros movimentos sociais em prol de moradia frequentemente enfatizam que a ocupação não é uma estratégia de longo prazo. Representantes do MNLM e MTST afirmam que as ocupações são mais uma estratégia para pressionar o governo por melhores opções de moradia do que uma tentativa de conquistar moradia permanente.

A localização central do edifício também manteve as expectativas dos ocupantes sob controle. Maria do Planalto fala sobre o preconceito dos moradores do bairro, que, segundo ela, ficaram surpresos com a duração da ocupação, já que haviam presumido que os ocupantes eram “vagabundos” desorganizados. Ela acredita que a permanência desafiou a noção de que “pessoas pobres têm que morar longe” na periferia, e que “o centro pertence à elite”. Maria do Planalto diz que embora nem todos se adaptem à vida no Centro, há benefícios inegáveis em termos de proximidade a oportunidades de emprego, creches e muito mais.

Os líderes do movimento acreditam que parte do sucesso esteja no engajamento cívico dos moradores. Todos os moradores são de um dos 32 grupos da FLM espalhados pela cidade. Maria do Planato diz, “você não pode simplesmente pegar alguém da rua para participar. Não basta morar na ocupação”. Cada morador tem uma ficha de participação que registra sua presença em várias atividades da ocupação, tais como um mutirão, bem como sua presença em eventos do movimento.

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Outra característica que ajudou a ocupação a se manter relativamente sem problemas foi sua estrutura de auto-organização. Cada um dos 12 andares do edifício tem um coordenador e todos os coordenadores formam um Conselho que lida com a governança diária do edifício. Maria do Planalto explica que o papel do coordenador é “uma arte, você tem que gostar, não pode ser visto como um trabalho”. Ela enfatiza que dentro do Conselho, os membros buscam manter as críticas construtivas e não competir. Entre suas responsabilidades estão a interação com os moradores do seu andar para compreender suas preocupações, e dar orientações quando algo não está dando certo, especialmente por haver tantas crianças no edifício.

Além do Conselho, há uma Associação, cujo presidente é eleito por todos os moradores. A Associação é mais responsável pela parte logística e administrativa, como a contabilidade. Toda segunda-feira, a FLM tem uma reunião com representantes de todos os 32 grupos de base da área, bem como de todos os movimentos afiliados.

O caminho não foi fácil e houve muitas ameaças de remoção do edifício. Maria do Planalto contou que durante o mandato do Prefeito Gilberto Kassab, um capitão da polícia foi enviado para informar aos moradores que eles seriam removidos no dia 23 de dezembro de 2012, dois dias antes do Natal. Quando chegou, ele foi cercado por vários moradores mais jovens da ocupação, que queriam tirar uma foto com um capitão de polícia uniformizado. Comovido com a situação e ciente do escândalo que a mídia criaria ao remover tantas famílias naquela época do ano, o capitão marcou uma reunião no ano novo. No entanto, com a mudança de administração (para o Prefeito Fernando Haddad), a confusão acabou levando à suspensão temporária da remoção.

Houve mais uma ameaça de remoção depois dessa, mas os órgãos que coordenavam a ocupação foram inflexíveis na resistência a tais ameaças.

Obtendo o Título

A grande oportunidade surgiu para a ocupação do Lord Palace Hotel quando a Prefeitura lançou um edital público de chamamento para habilitação para o Minha Casa Minha Vida-Entidades (MCMV-En), a parte do programa Minha Casa Minha Vida que financia iniciativas autogestionadas de construções de moradia acessíveis. De muitas formas, o programa Entidades responde às críticas dos ativistas quanto ao programa MCMV de modo geral: que as casas são de baixa qualidade, que deixam os moradores endividados e que se localizam em áreas remotas sem infraestrutura ou meios de transporte, muitas vezes dominadas por milícias. Estudiosos do urbanismo no Brasil, tais como Nabil Bonduki, destacaram a necessidade de participação e autogestão em projetos de moradia, delineando como as ocupações urbanas poderiam executar estas estratégias.

A ocupação do Lord Palace Hotel pela FLM ganhou a licitação municipal para o MCMV-En e o edifício passou para o nome da Associação em 17 de março. Atualmente, os ocupantes da FLM estão se preparando para sair do prédio para reformas pelos próximos 14 meses. Durante as reformas, os residentes pagarão uma taxa, cujo valor foi acordado previamente em reuniões do Conselho, para assistência técnica do planejamento da reforma e para os 11 empregados atuais.

Depois da reforma, o FLM vai transferir a ocupação para outra Associação, ainda indefinida. As 176 das famílias mais presentes nas atividades do movimento (conforme verificado na ficha de participação já mencionada) receberão abrigo. As outras 150 famílias atualmente vivendo no prédio continuarão ativas na luta da FLM na Zona Leste de São Paulo.

O primeiro andar do prédio vai ser refeito para uso comercial dos moradores, um exemplo de moradia de uso misto, típico de favelas, o qual planejadores urbanos apontam como desenvolvimento urbano inteligente. O lucro proveniente dos aluguéis das propriedades comerciais voltará à cooperativa, portanto subsidiando moradia de baixo custo. Enquanto o aluguel de uma quitinete no Centro custa em torno de R$1500 por mês, o aluguel no prédio será de 5% da renda da família, com um teto de renda familiar mensal de R$1800. A prefeitura pagará as contas de água e luz.

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Construindo Comunidade, Expandindo Cidadania

A ocupação é um sucesso não apenas no sentido de assegurar moradia para 176 famílias, mas também por construir uma comunidade coesa que sustenta as necessidades das famílias. Maria do Planalto falou das discrepâncias entre os alugueis e os salários do trabalhadores, explicando que agora estas famílias não encontram mais dificuldade de pagar aluguel ou estar morando nas condições precárias das ruas, podendo, assim, investir em educação. Ela falou de Raphael, um jovem negro de baixa renda que agora estuda na Universidade de São Paulo. Ela explicou que as conquistas de Raphael são comemoradas pela comunidade inteira, servindo de modelo para os moradores mais jovens.

A ocupação também empodera as mulheres no âmbito educacional e além. Muitas moradoras de meia-idade estão voltando a estudar agora que têm uma residência estável na ocupação. Dentro do movimento, Maria do Planalto explicou, “as mulheres chegam de um jeito e saem muito melhores…construindo independência” e aprendendo seus direitos dentro de casa. Ela afirmou que muitos homens chegam com problemas de alcoolismo e que as atividades de conscientização promovidas pelo movimento acabam sendo muito importantes para eles. Ela mesma se casou aos dezesseis anos e diz que o movimento mudou a dinâmica do seu casamento.

A interseccionalidade das questões das mulheres e da moradia é fundamental para a ocupação e para a luta do FLM, assim como tem sido para outros movimentos brasileiros que lutam por moradia. Maria do Planalto disse que mulheres que chefiam suas casas precisam cuidar de suas crianças e trabalharem, e ainda ganham menos que homens. No Dia Internacional das Mulheres, dia 8 de março, a FLM liderou uma passeata pelos direitos das mulheres em que os participantes foram a diversas fábricas abandonadas que poderiam ser locais com potencial para ocupações.

Para Maria do Planalto, os momentos de maior orgulho da luta da ocupação foram: quando a primeira criança nasceu na ocupação; quando um dos moradores pôde voltar após perder um apartamento em um conjunto habitacional; e quando o próprio prefeito teve que declarar publicamente que o edifício pertencia à Associação FLM, que vinha coordenando a ocupação. O morador que voltou após perder o outro apartamento disse ao RioOnWatch que a ocupação “é uma comunidade, uma família”. Com foco na satisfação das necessidades básicas, no senso de comunidade, educação e engajamento político, Maria do Planalto diz que a lição mais importante que aprendeu em seus 31 anos de luta é que “não é preciso ter dinheiro para ser feliz”.