Reescrevendo o Futuro: Uma Entrevista com Neuza Nascimento

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No mês de setembro de 2011 o Centro Integrado de Apoio às Crianças e Adolescentes da Comunidade (CIACAC) comemorou o seu 10 º aniversário. O CIACAC é uma organização comunitária sediada na favela Parque Jardim Beira Mar, que fica em Parada de Lucas, na Zona Norte do Rio de Janeiro. As comunidades de Parada de Lucas são há anos conhecidas pelas disputas entre facções do narcotráfico com as comunidades vizinhas de Vigário Geral. Nestas comunidaedes não há alternativas para um processo sadio de socialização para os adolescentes dentro das comunidades. Foi neste contexto que Neuza Nascimento, que na ocasião era uma mãe de um pré adolescente, amante de literatura e ao mesmo tempo faxineira de casas de família; decidiu criar um projeto para levar as crianças e os adolescentes da comunidade para conhecer outras realidades, indo a teatros, museus, praias e etc. O projeto  foi batizado de “Um Olhar Sobre Outras Coisas”, e assim nasceu o CIACAC que trabalha para que as crianças da comunidade tenham uma relação com o mundo diferente daquela, que em um caminho lógico, estaria “escrita para elas.” Por essa razão, Neuza Nascimento é a primeira liderança a ser entrevistada para o rioonwatch.org e favela.info, em homenagem as suas fantásticas realizações ao longo desses dez anos, e a sua história vale como inspiração para muitos de nós.

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RioOnWatch: Onde você nasceu? Quais foram as características mais marcantes da sua infância e adolescência? 

Neuza: Nasci na cidade de Santos Dumont, em Minas Gerais. Éramos muitos pobres e morávamos muito longe da cidade. O que marcou minha infância foram alguns aniversários comemorados com lata de goiabada e também minha Primeira Comunhão que foi quando minha irmã levou do Rio uma Havaiana branca com correias azuis e minha mãe comprou um vestido branco, já usado, para eu ir para a igreja. Andei quase por meia hora, era o tempo que se levava a pé até a igreja, com todo o cuidado do mundo para não sujar minhas sandálias novas de poeira. Nessa época eu acho que eu tinha uns 8 ou noves anos e era a primeira vez que eu andava calçada. Pelo menos que eu me lembre. Estava me sentindo linda e não parava de olhar para os meus pés. Minha adolescência foi marcada por trabalho sempre, bailes Soul, muitos namorados, Natais em e Páscoas em família, gravidez aos 17 anos.

RioOnWatch: Qual foi sua primeira profissão?

Neuza: Nunca tive profissão no sentido formal da palavra, mas fui empregada doméstica ou, como disse a Rose, recuperadora de ambientes dos 08 aos 47 anos. E hoje ainda não sei se tenho uma profissão. Mas me considero gestora social comunitária.

RioOnWatch: Quais são suas maiores paixões?

Neuza: Leitura e escrita.

RioOnWatch: Quais são seus maiores talentos?

Neuza: Escrever, fazer amizade fácil, e dar colo para todo mundo que precisa sem nunca gastar. Falo muito, sempre tenho histórias para contar, mas não sei se isso é um talento exatamente.

RioOnWatch: Como aprendeu a ler?

Neuza: Não me lembro exatamente quando aprendi a ler, a única lembrança que eu tenho da escola em Minas é a vacina que tomei. Muitos anos depois eu soube que era BCG. Quando fui trazida para o Rio só ingressei numa escola muito tempo depois. Comecei a ter consciência da leitura já com 13,14 anos, na 5ª série. Eu tinha acesso à gibis da filha da pessoa para quem eu trabalhava e também lia os textos dos livros de português da escola.

RioOnWatch: Quando você realizou a sua primeira ação “coletiva?”

Neuza: Organizei uma reunião com algumas mulheres da comunidade para pensar e fazer algo para mudar a realidade das crianças moradoras da mesma. Convidei umas 30 ou 40 mulheres, mas nenhuma compareceu.

RioOnWatch: O que te levou para tomar este primeiro passo?

Neuza: O fato de as crianças da comunidade onde moro não terem outra opção de lazer e cultura a não ser o baile que acontece semanalmente. Eu quis que elas conhecessem outras realidades com a esperança que nascesse em cada uma a ambição de uma vida e futuro diferente daquele que está escrito para quase todas as crianças que nascem e crescem em comunidades pobres.

RioOnWatch: Quando se viu como liderança pela primeira vez?  Em que momento/sentido/situação? Qual foi o passo que você tomou após este momento?

Neuza: Não consigo me ver como liderança.

RioOnWatch: O que te levou a criar o CIACAC? No início, qual era a sua intenção/missão com este projeto?

Neuza: Eu não criei o CIACAC, ele foi acontecendo sem eu perceber. Mas no inicio minha única intenção era tirar as crianças da comunidade para ver outras coisas. E ainda continuo essa intenção.

RioOnWatch: Qual foi o trajeto que o CIACAC tomou?  Os 5 “maiores momentos?”

Neuza: Os maiores momentos foram um pouco mais de 5. Quando me senti muito cansada em 2003, por não ter o apoio da comunidade e dos responsáveis e fiz uma reunião com as crianças que participavam na época e disse que se eles não me ajudassem, o trabalho ia acabar porque eu não tinha mais condições de continuar sozinha.

Nesse dia foi formada a Diretoria Infanto Juvenil e então eu percebi que meu trabalho era importante para eles; o primeiro passeio no qual participaram 45 crianças e adolescentes; aquisição de um espaço próprio; aquisição do CNPJ, e depois do Alvará de Funcionamento; o inicio da chegada de voluntários estrangeiros; publicação do site www.ciacac.org; a Festa de 7 anos; montagem da sala de informática, ter o primeiro projeto parcialmente aprovado através de um edital, completar 10 anos em ação, parceria com uma outra ONG de dentro da comunidade e com duas instituições européias, o Departamento de Estudos no Exterior da University of Nottingham e AIPC Pandora, e ser Semifinalista no 9º Prêmio Itaú/UNICEF.

RioOnWatch: Quais foram os 5 momentos mais frágeis, frustrantes ou preocupantes do CIACAC?

Neuza: No passado minha maior frustração era não conseguir convencer a comunidade a participar e acreditar numa mudança; e, acima de tudo a comunidade não acreditar que ela é capaz ( ainda hoje é assim) de fazer essa mudança; falta de apoio financiamento contínuo.

Hoje o que me frustra é o Poder Público que dá mais importância a papéis do que ao trabalho desenvolvido em si, a burocracia em geral, a falta de funcionários e vulnerabilidade de, não de uma ONG, mas de um trabalho social dentro de uma comunidade, seja ela qual for.

RioOnWatch: O que é o CIACAC hoje?

Neuza: Hoje o CIACAC é uma instituição conhecida e reconhecida dentro da comunidade e em vários países.

RioOnWatch: O que ele representa para você e sua vida?

Neuza: Superação.

RioOnWatch: O que ele representa para a comunidade?

Neuza: O que ele representa para a comunidade, eu ainda não sei. Para as crianças ele representa um espaço para brincadeiras, descobertas, aprendizado, liberdade. Um espaço que elas aprenderam a considerar seu, e onde tem uma mulher que insiste em proibir que a chamem de tia.

RioOnWatch: Lista, por favor, as diversas atividades que o CIACAC teve ao longo dos anos.

Neuza: Mais de 60 visitas e passeios para fora da comunidade, oficinas de cidadania, redação, desenho e direitos, aulas de inglês, basquete, capoeira, artes, informática e hoje temos aulas de violão e apoio escolar. Tudo depende de disponibilidade de voluntários.

RioOnWatch: Qual é o futuro do CIACAC? O próximo grande projeto?

Neuza: O projeto que estamos elaborando agora é a construção de alojamento e, através de um programa de voluntariado internacional, conseguir dar um pouco de autonomia para financiar à instituição.

RioOnWatch: E daqui a 5 anos?

Neuza: Só consigo visualizar até dezembro, quando pretendemos dar uma grande festa para comemorar 10 anos de existência. É impossível ver tão longe. Já é difícil organizar o dia seguinte.

RioOnWatch: O que você esta sentindo agora, ao completar 10 anos?

Neuza: Que não basta pensar e querer. É preciso fazer.

RioOnWatch: O que você acha, entre os seus talentos, foi o mais importante para que o CIACAC chegasse até aqui? Percepção do entorno. E outros fatores?

Neuza: A participação efetiva e o envolvimento das crianças e o querer delas.

RioOnWatch: O projeto é tocado principalmente por você?

Neuza: A administração é realizada por mim e às vezes tenho a colaboração de voluntários estrangeiros. A elaboração das atividades e realização das mesmas têm a apoio dos pais e voluntários.

RioOnWatch: E seu filho, anda fazendo o que hoje?

Neuza: Estuda e trabalha numa Faculdade.

RioOnWatch: O que ele acha da mãe e do CIACAC?

Neuza: Está acreditando um pouco mais no meu potencial, no que eu faço e continua pensando que sou louca por fazer o que faço.

RioOnWatch: Você já teve a experiência de pensar em abandonar a iniciativa, como é tão comum no terceiro setor por questão de todas as dificuldades inerentes em montar e manter um projeto?  Se sim, qual foi o motivo do seu caso?

Neuza: O motivo na época foi pelo fato de a comunidade não acreditar e não se envolver com os problemas que são comuns a todos que moramos aqui.

RioOnWatch: De que forma todas as transformações acontecendo hoje na cidade estão afetando Parada de Lucas?

Neuza: A comunidade Parque Jardim Beira Mar, que fica no bairro de Parada de Lucas é uma comunidade fechada onde as informações não circulam ou quando circulam, vem em forma de boato. Por ser uma comunidade de porte médio e não estar em nenhuma área nobre ou que chame a atenção, não está sofrendo afetação nenhuma.

RioOnWatch: Qual é o seu maior medo para a comunidade ao longo dos próximos 2-10 anos?

Neuza: Não saber nada do que vai acontecer.

RioOnWatch: Qual é a sua maior esperança para a comunidade ao longo dos próximos 2-10 anos?

Neuza: Minha esperança é que a comunidade pare de sofrer obras de maquiagem e seja urbanizada realmente.

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