Duas Tochas Passaram pela Baixada, Uma com Orgulho e Outra com Balas de Borracha

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A cerimônia de abertura das Olimpíadas Rio 2016 aconteceu ontem à partir da chegada da tocha olímpica, tendo viajado da Grécia, que foi usada para acender a chama olímpica no Maracanã. Carregar a tocha olímpica é considerado por muitos como uma grande honra e alguns moradores das favelas do Rio, como Rene Silva do jornal comunitário Voz da Comunidade e Thiago Firmino do Tour da Favela Santa Marta, foram convidados a participar da passagem da tocha pela cidade.

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No entanto, o atual “estado de calamidade” enfrentado pelo Estado do Rio de Janeiro devido a déficits orçamentais tem levado muitos a ver a tocha como um símbolo das prioridades equivocadas no Rio e no Brasil. Desde que os protestos começaram em 2013 com as manifestações contra as crescentes tarifas de ônibus–em seguida incorporando inquietudes quanto as prioridades dos gastos com a Copa do Mundo de 2014–as pessoas têm questionado como todos os níveis do governo continuam financiando projetos relacionados a megaeventos. E a situação alcançou um ponto crítico no Rio onde trabalhadores de hospitais, policiais, bombeiros e professores não estão sendo pagos por meses.

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Esse sentimento de uma tocha olímpica que traz consigo tanto orgulho quanto vergonha é, talvez, mais agudo na Baixada Fluminense. Embora seja o lar de quase um quarto da população do Estado e responsável por 14% do seu PIB, as pessoas que moram nos 13 municípios que compõem a Baixada Fluminense durante décadas foram submetidos ao clientelismo, serviços públicos precários e altos níveis de violência. Ao longo dos últimos meses enquanto o Rio se prepara para as Olimpíadas, 11 pessoas que estavam concorrendo para as posições nas câmaras municipais ou para prefeito em toda a Baixada foram assassinadas, provavelmente devido a ligações com milícias. Mas o revezamento da tocha no dia 3 de agosto por diversas cidades da Baixada foi feito para mostrar o seu lado positivo através da música, dança e uma celebração dos atletas da região.

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“Eu estava reclamando sobre a tocha semana passada, mas eu decidi vir para vê-la por causa da minha sobrinha”, disse Andrea, moradora de Duque de Caxias. “A situação aqui deixa todo mundo pensando sobre o absurdo da passagem da tocha, mas eu acho importante para Alice ter coisas patrióticas aqui. Essa é uma cidade esquecida e ver a tocha é válido, é legal.”

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Assim como Andrea, muitos outros aguardaram, por toda a cidade, a passagem da tocha na frente da Prefeitura Municipal, porém a polícia usou gás lacrimogêneo, balas de borracha e spray de pimenta para dispersar um grupo de manifestantes que supostamente atiraram pedras em direção à procissão da tocha no bairro Vila São Luiz. O noticiário local O Caxiense publicou um vídeo ao vivo no Facebook, que já foi visto mais de um milhão de vezes, que mostra manifestantes e espectadores, incluindo crianças, fugindo da repressão policial.

No sábado 30 de julho, o Fórum Grita Baixada e várias outras organizações e movimentos sociais locais realizaram o seu próprio revezamento da tocha, apelidado de “Tocha da Vergonha” para destacar a negligência que tem caracterizado a região. A tocha da vergonha, preta e apagada com tinta vermelha simbolizando o derramamento de sangue na região, foi um “símbolo de luto e de luta pela paz e vida” na Baixada. Os panfletos distribuídos por todo o revezamento em nove municípios da Baixada expressaram preocupações locais: “Nós, moradores da Baixada Fluminense, recebemos as Olimpíadas com uma mistura de felicidade e muita dor. Felicidade porque nós saudamos o espírito olímpico de promoção da paz, amizade e boa vontade entre os povos. Dor porque o estado de exceção de direitos toma conta da nossa amada Baixada.”

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Douglas Almeida, membro do Fórum Grita Baixada e um dos organizadores do revezamento da “Tocha da Vergonha” reiterou este sentimento: “Ao chamar diferentes instituições para participar do revezamento da Tocha da Vergonha, o Fórum Grita Baixada reafirma sua missão de unir várias lutas dentro da região para dar visibilidade aos problemas que os moradores enfrentam em suas vidas diariamente. O revezamento da Tocha da Vergonha não foi um “não” às Olimpíadas, mas um “não” à negligência das autoridades públicas para com as pessoas da Baixada Fluminense”.

Embora a violência e a negligência tenham estigmatizado a Baixada, as ações do Fórum Grita Baixada representam um senso de orgulho regional e de luta. Políticos equivocados e corruptos são aqueles que carregam a tocha da vergonha. O vídeo do O Caxiense serviu como um lembrete para muitos sobre as prioridades perversas e formas implícitas de violações de direitos e da explícita violência de Estado que domina a política na região. Reportagens afirmam que os manifestantes no revezamento oficial da tocha na quarta-feira eram professores; professores que provavelmente não foram pagos há meses.

Táticas de repressão similares também foram usadas contra professores e outros servidores públicos no protesto da tocha, no dia 27 de julho em Angra dos Reis, uma das primeiras paradas da tocha no Estado do Rio de Janeiro. Em resposta ao excessivo uso da força policial, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE) divulgou uma Nota de Repúdio condenando tanto a violência policial quanto a situação precária que muitos moradores do Estado do Rio se encontram: “A passagem da Tocha e a imagem da cidade na mídia valem mais do que vidas que são perdidas ou negligenciadas todos os dias por falta de hospitais, de educação de qualidade e serviços sociais essenciais à nossa população?”.

Na Praça do Pacificador, no centro de Duque de Caxias, o professor universitário Oswaldo Barros carregou um dos poucos cartazes de protestos feitos à mão visível na cerimônia da tocha de quarta-feira: “Nós não temos segurança, nós não temos saúde. Essa tocha é só uma forma de manipular as pessoas aqui. Eles não têm acesso a uma boa educação, muitos não sabem os seus direitos. Nós estamos vivendo uma crise de governança”.

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Contudo, muitos que vieram à cerimônia estavam cientes de que os tomadores de decisão abusaram de seus direitos e ainda assim viam a chegada da tocha Olímpica como um momento histórico: “Isso significa muito”, disse Maria Regina enquanto limpava as lágrimas de seus olho quando a tocha chegou ao palco do Teatro Raul Cortez projetado por Oscar Niemeyer. “Em todas as nossas vidas nós vínhamos esperando por algo assim. Essa é uma cidade sacrificada, não é muito bem cuidada. Ter a tocha aqui é uma satisfação enorme”.

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A cerimônia de abertura das Olimpíadas ontem, em 5 de agosto, foi o pontapé inicial de quase dois meses de Jogos Olímpicos e Paralímpicos. O mundo estará assistindo outros sacrifícios que os moradores do Rio terão que fazer para garantir que os Jogos sejam um sucesso, mas a sistêmica negligência histórica continuará bem após seu encerramento.