Indígenas em Contexto Urbano: Uma Entrevista com José Urutau Guajajara

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José Urutau Guajajara é um dos grandes líderes no movimento pelos direitos indígenas na cidade do Rio de Janeiro. Criado na Aldeia Guajajara no estado de Maranhão, ele veio para o Rio ainda jovem para estudar e trabalhar. Em 2006, ele participou do grupo de indígenas de várias etnias que fundou a Aldeia Maracanã no prédio abandonado do antigo Museu do Índio, ao lado do Estádio do Maracanã. Embora tenha sofrido múltiplas remoções durante os megaeventos–Copa do MundoJogos Olímpicos–a Aldeia Maracanã ainda ocupa o prédio e está em processo de formar uma universidade indígena no local. José é pesquisador de linguística do Museu Nacional da UFRJ e professor de língua e cultura indígena na FAETEC-ISERJ. Ele mora no Centro de Etnoconhecimento Sociocultural e Ambiental Caiuré (CESAC) em Tomás Coelho, um espaço comunitário da população indígena urbana. O RioOnWatch falou com José sobre sua vida, seu trabalho e o movimento indígena no Rio.

RioOnWatch: Qual é o seu nome completo? O que significa ser Urutau e usar um nome indígena?

José: José Urutau Guajajara. Urutau é uma espécie de coruja, no Maranhão tem muito coruja. Mas meu nome é cristão, é da Igreja Católica próxima de minha aldeia. Então, colocaram o nome de José Wilhame Pinto Araújo por causa da influência cristã. Só a partir da Convenção de 1988, nós ganhamos o direito de colocar o nosso nome ze’egté, o nome na [nossa] língua.

RioOnWatch: Você sabe quantos falantes da língua ze’egté existem?

José: 30.000 no Maranhão. Aqui no Rio são 150 Guajajaras, embora espalhados, mas falantes do ze’egté. Também não estão em grupo, não estão em aldeias. Por isso, eu tenho necessidade de falar a língua. Porque a única forma da resistência de um povo e de uma nação é sua língua. Então dizer que nos grandes centros [urbanos] também se prática uma língua indígena é muito importante.

RioOnWatch: Você pode me contar um pouco de sua história? Onde você nasceu e como foi a sua infância? Por que veio para o Rio de Janeiro?

José: Eu nasci numa aldeia chamada Lagoa Comprida, no estado do Maranhão próximo da cidade de Jenipapo dos Vieiras. Eu vim para o Rio de Janeiro para estudar e também para trabalhar. Quando saí da minha reserva eu tinha uns 13, 14 anos mais ou menos. Mas eu vim para a Barra do Corda [no Maranhão] para estudar. Aí, passei quase dez anos estudando na Barra do Corda. Eu tinha parentes no Rio de Janeiro e eles me convidaram para vir. Eu vim para o Rio de Janeiro e conclui os estudos. Fiquei mais de 15 anos sem estudar, depois resolvi continuar. Me ofereceram uma bolsa para estudar pedagogia na Universidade Estácio de Sá (UNESA), e logo em seguida, anos 2000 por aí, me falaram de um curso de línguas indígenas na UFF em Niterói. Eu fui estudar línguas em um curso de pós-graduação.

Logo em seguida, 2007 por aí, 2008, a UFRJ através do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS) ofereceu um curso de línguas indígenas, [no campo de] linguística. Eu fui para lá. Aí eu preparei meu projeto, que era [pesquisar a] estrutura de ze’egté, língua dos Tenetehára-Guajajara. E tive que me preparar para o mestrado. Eu fiz meu mestrado em línguas indígenas.

RioOnWatch: Como era sua pesquisa?

José: Era um estudo comparativo [da] estrutura de ze’egté. Fiz inclusive uma comparação com a língua inglesa, que tem uma estrutura mais ou menos próxima, muitas vezes mesmo de trás para frente. E também com o português. Eu tive que fazer essa análise comparativa da estrutura, da frase. Mas [minha pesquisa] dá conta também das diferenças fonéticas dos próprios Guajajaras, as diferenças dos Guajajaras de reservas distantes.

Para mim, é muito interessante a língua porque é um retorno para o meu povo, um retorno para o Brasil. São poucas pesquisas de línguas [indígenas] assim bem específicas, comparativas à estrutura de outras línguas. É muito fechada a questão das línguas indígenas, só há alguns teóricos [que] estudam. Nem fala-se nas escolas, no ensino fundamental, médio e menos ainda na universidade. Depois de 517 anos, não tem no Brasil nenhuma temática nas escolas da questão indígena. Nos movimentos indígenas estamos tentando implementar uma matéria.

RioOnWatch: Qual é a sua percepção sobre os indígenas que moram na cidade?

José: Como a cultura dominante é muito forte, eles mudam. A cabeça muda e a pessoa muda. Os indígenas não se auto afirmam, os indígenas mesmos se negam. Então, essa negação é dada pela influência da cultura dominante, em todas as formas: seja espiritual, seja étnico, seja na língua, seja por toda a cultura em geral. É um apagamento psicológico, um apagamento total. É muito difícil principalmente no espaço urbano e nas comunidades praticar a cultura. Tem que ter uma vivência com outros parentes ou não pratica e é engolido pela cultura dominante. Então, não tem como negar, a dificuldade de estudo e trabalho é muito grande para quem quer tentar entender como se deu esse apagamento–é o meu caso. Mudando agora para meu doutorado em antropologia social na UFRJ–como entender essas questões no contexto urbano? Dar conta disso é uma coisa que é pouco falada, poucos teóricos falam sobre isso. Os teóricos querem pesquisar os indígenas no Amazonas, no Mato Grosso. Por que pensam o indígena na visão em que o indígena está pelado com arco e flecha? É aquela imagem do indígena selvagem, que não fala português direito, só fala sua língua materna. Então, todos os estudos estão baseados nesse indígena virtual, indígena fictício, os povos indígenas de 1500 e antes de 1500. Então falar de uma questão cruel, real, atual… isso, sim, é um desafio.

RioOnWatch: Você falou sobre a plantação de hortas e plantas medicinais como um projeto da Aldeia e do CESAC. O que significa isso para o povo e a cultura indígena?

José: Nós estamos muito ligados a questão da fitoterapia, do remédio medicinal, das plantas medicinais, plantá-las em quintal, em aldeia. Somos médicos por excelência. Se está com dor de barriga, diarreia: use o broto da goiaba, é muito bom. Coma goiaba, coma o broto, coma a folha que passa rápido.

RioOnWatch: É uma maneira de preservar os saberes indígenas?

José: Os saberes tradicionais estão também no sangue do próprio brasileiro em si. Enquanto há a indústria farmacêutica completamente contrária a isso, tentando roubar toda a sabedoria tradicional. Bem recentemente, essa comunidade [Parque Nova Maracá] não tinha farmácia nenhuma. A comunidade inteira não tinha. A farmácia era aqui, todo tipo de plantação, todo tipo de erva medicinal estava aqui. Na Aldeia Maracanã não é diferente, é a mesma coisa. São plantas caseiras, são plantas de toda uma vida, e vamos vivendo disso, aprendendo e praticando.

RioOnWatch: De onde surgiu a ideia de criar o CESAC? Como foi o processo da sua criação?

José: Eu fui convidado a participar de um grande encontro que teve chamado Eco-92. Aconteceu aqui no Rio de Janeiro no Aterro do Flamengo. Vieram indígenas do mundo inteiro. Então vinte anos depois de ter participado daquele encontro–nesse intervalo de vinte anos aconteceu muita coisa no movimento indígena–nós passamos a entender o movimento indígena no centro urbano, do Rio de Janeiro por exemplo. Aí nós vimos a necessidade de um espaço. Nós assumimos [o prédio] que era uma antiga estação de energia elétrica. Eu vim morar [no CESAC], aqui na favela.

Então, em Tomás Coelho nós já vamos para vinte anos mais ou menos aqui, nessa organização que é uma organização indígena. Mas cedemos para outros grupos que são grupos de rua, grupos de circo. Espaço de multiuso. Também [o usamos] para nos juntar porque é um espaço muito grande. Sempre é um espaço para receber parentes, indígenas do Brasil inteiro, indígenas que vem de passagem e não têm onde ficar, não têm como pagar por estadia.

RioOnWatch: Você é conhecido como líder da Aldeia Maracanã, que é outro espaço indígena na cidade. Como era o processo de recuperar esse lugar e criar uma aldeia urbana?

José: Depois [de fundar o CESAC], começamos a Aldeia Maracanã. Em 2006, 20 de outubro, assumimos o antigo Museu do Índio no Maracanã, por estar abandonado de certa forma. Mas era ligado ao Ministério de Agricultura. Então nós assumimos para revitalizar aquele velho imóvel. Só que era um espaço que a gente não sabia o tamanho do problema e o tamanho da complexidade. Só que nós entramos, buscamos a história que já foi quase que apagada completamente. O próprio governo nacional apagou, trabalhou para apagar a história e a memória. E nós não sabíamos o tamanho da invisibilidade que o estado causou naquele pequeno microterritório. E então, nós refizemos um pouco a memória daquele espaço.

Nós chegamos a 150 anos de história daquele espaço, desde o império. [O prédio] era do Duque de Saxe. Ele fez uma doação para D. Pedro II e ele não cita indígenas [na doação], mas ele cita que era para pesquisa de sementes naturais e os seus domesticadores. Desde este momento ele estava falando [sobre quem era o] domesticador do milho–nós indígenas domesticamos o milho. Também naquele espaço foi criada a primeira faculdade nacional de agricultura. Os indígenas e toda a questão indígena ficaram aos cuidados do Ministério de Agricultura. Ali também funcionou a primeira sede do SPI, Serviço de Proteção ao Índio, em 1910 com Marechal Rondon.

RioOnWatch: Então, o lugar tem poder simbólico para os povos indígenas?

José: Simbólico mais também por escrito, também em documentos. A questão do genocídio indígena também está ligada aquele espaço. As expedições principais saíram dali, porque ali era uma sede nacional porque estava na capital do Brasil. A Expedição do Telégrafo, a Expedição Xingu saiu dali e mataram muitos indígenas. O Relatório Figueiredo dá conta da década de 60. E o Presidente Médici veio dizer uma frase, ele disse que ia doar “terras sem homens para homens sem terras”. Naquele momento esse presidente diz que nós indígenas, não somos nem seres humanos. Então é um grande simbolismo, mas não só simbólico, também é o real.

No dia 19 de abril de 1953, no dia do índio, Darcy Ribeiro fundou o Museu Nacional do Índio. E depois disso veio muita denúncia sobre o SPI: de extermínio, de morte e de assassinato de indígenas. E com isso o estado nacional extingue o SPI em 1967 e criou apenas uma fundação, a Fundação Nacional do Índio [FUNAI]. Também naquele espaço.

RioOnWatch: Quantas famílias têm lá na Aldeia Maracanã atualmente?

José: Agora só têm três famílias, porque elas dependem da venda do artesanato e todo mundo saiu para vender e elas não vendem naquele espaço. A única forma de sobrevivência agora é a venda do artesanato.

RioOnWatch: Qual é a situação atual em relação à remoção da ocupação? Eles estão em perigo de serem removidos outra vez?

José: Em 2007, [aconteceu] um grande problema, os Jogos Pan-Americanos entraram para nos tirar [do espaço], depois [em] 2012 nos preparativos da Copa do Mundo também tentaram nos tirar, e realmente em 2013 nos tiraram pela primeira vez. Fomos presos, fui preso. Voltamos de novo, [nos] tiraram de novo, nos prenderam de novo. Agora têm [remoções], hoje mesmo estávamos falando sobre isso. E vão nos tirar de novo, fazem isso por que eles estão a serviço do capital, do grande capital.

RioOnWatch: Para você, qual é o poder da ocupação e da resistência ao estar lá em oposição do governo?

José: É grandioso porque tudo que se vende aqui é o futebol e carnaval. E essa pressão está ali a vinte metros, dez metros. Agora mesmo teve jogo do Flamengo, a tormenta nossa ali são os torcedores do Maracanã. Todos os torcedores bebem cerveja, mas não tem nenhum banheiro lá fora. Agora, eles vão onde? Na Aldeia Maracanã. Isso é cruel porque nos coloca diretamente em conflito com os torcedores bêbados que querem matar indígena, exterminar completamente. Então é muito cruel, mas estamos resistindo lá.

A cultura dominante, que só quer vender o futebol, carnaval e apagar as culturas tradicionais, nos tirou tudo, concretou, asfaltou tudo. Todas as árvores, plantas medicinais, acabaram com tudo, derrubaram mesmo. Reclamamos no IBAMA, fomos até o governo federal, denunciamos. Que nada, denúncia de Índio. Tira, corta, tira as árvores, corta tudo, asfalta, concreta, bota estacionamento.

RioOnWatch: Você tem esperança no futuro?

José: Não vou desfrutar, vou me apagar qualquer hora dessa aí. Mas as minhas filhas não. Ao contrário de outros parentes que muitas vezes estão sozinhos, estão na luta, mas estão sozinhos e não deixam raízes. Aqui não, não vão apagar minhas filhas.

RioOnWatch: Como é que uma pessoa pode colaborar com o movimento indígena no Rio?

José: Primeiro indo, primeiro vendo. Se você não vê, se você não chega ali [na Aldeia Maracanã], não tem como respeitar. Difícil é entender a resistência. Dizem que está tudo bem, tudo tranquilo, mas estamos ali, estamos dizendo, ‘não, não está’. Cultura brasileira não é só futebol, carnaval. Tem a cultura tradicional.

Forma de ajudar? Primeira, denunciar. Por que só a partir do momento que foi denunciado lá fora que o governo nacional deu um certo freio, tentou respeitar um pouco. Mas enquanto não há denúncia, enquanto não houver uma ação civil pública, fica sempre atropelado. É cruel que não tenha água, nem eletricidade [na Aldeia Maracanã], mas tem uma força de vontade de manter a resistência ali, autônoma completamente do estado nacional. Você não compra resistência. Nós já começamos entender isso, é difícil, é muito difícil entender a resistência. Mas estamos ali, estamos ali exatamente para dizer isso, para fazer essa força contrária.