Feminista ou Misógino? Clipe do Hit Mundial ‘Vai Malandra’ no Contexto do Funk e Passinho

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O sol de dezembro bate em um parquinho escolar vividamente pintado, onde vários adolescentes fazem passos rápidos de um passinho. Eles pausam para ensinar uns aos outros, para experimentar um salto conjunto que desafia a gravidade, e depois retornar à frenética precisão da dança.

Esta não é uma escola comum, mas a Casa do Funk, sede da organização comunitária Rede Funk, com sede em São Gonçalo. A Casa do Funk recebeu permissão para assumir uma das muitas escolas fechadas pelo ex-governador Sérgio Cabral. Devido à perseverança de MC Priscila, MC Patrão e outros dedicados membros da equipe, a escola agora hospeda várias aulas, incluindo passinho, capoeira, cabeleireiro, rádio de Internet e DJ. A Rede Funk comemora e ensina “funk consciente”, um estilo que conta a violência, a dor, a alegria, a comunidade e a rebelião da vida cotidiana dos artistas.

“Na sua raiz, o funk é libertador”, mas sofreu décadas de preconceito e repressão, afirma André Lycurgo, um barbeiro da Rede Funk e autor de uma monografia sobre o assunto. Lycurgo diz que as raízes do funk podem ser encontradas em blues, soul e RnB dos anos 70. Esses gêneros chamaram a atenção da polícia da ditadura militar, que temia que a música fosse parte de um movimento negro emergente. Os passos da dança do passinho fazem referência à capoeira, que foi brutalmente reprimida durante séculos, e ao samba, que viu sua própria parcela de policiamento e criminalização. O passinho também se baseia em antecedentes do samba como lundu, um estilo de música e dança de ritmo acelerado e sexualmente sugestivo, usando “movimentos de cintura” e maxixe, uma dança centrada em torno dos quadris, que foi vista já em 1650 como uma “ameaça à saúde mental dos brancos“.

Diante desse contexto histórico, não é de admirar que a artista brasileira Anitta tenha causado tal tempestade com o lançamento de seu videoclipe “Vai Malandra”. Em sua estréia, ela disse: “Eu venho do baile funk e da favela. Eu defendo nossa cultura e estou muito orgulhosa disso”. Uma das cenas de abertura do vídeo apresenta um close-up de sua parte traseira vestida de shorts, celulite sem retoques, enquanto ela sobe em uma moto com a placa de número ANT 1256. Muitos meios de comunicação–erroneamente–alegaram que isso se referia ao número de uma lei de 2017 que ameaçava proibir o funk como “crime de saúde pública contra crianças, adolescentes e famílias“.

Anitta falou contra esta lei e, em seguida, lançou o agora famoso vídeo que é por vezes considerado emancipatório, objetificador, empoderador e retrógrado. Alguns vêem isso como uma apropriação cultural que reforça os estereótipos; outros como uma celebração da diversidade da cultura da favela. Para entender essas reações contraditórias, é importante perguntar: o que significa o funk no Rio hoje? Qual é o contexto histórico por trás dessa reação polêmica ao seu vídeo? Ou simplesmente, por que tanta opinião de tanta gente?

A importância política do funk e do passinho

O funk e o passinho são, em primeiro lugar, formas de arte criadas em favelas que comunicam a vida diária, esperanças, sonhos e medos, enquanto ao mesmo tempo se baseiam (e modernizam) ritmos, passos e mensagens antiquíssimos. Os criadores são diversos em idade, gênero e as mensagens que procuram comunicar com seu trabalho. O funk está em constante evolução, em movimento, em expansão. Como o MC Patrão e a MC Priscila da Rede Funk salientam, o funk também é uma importante fonte de renda, não apenas para MCs e dançarinos, mas para os barbeiros (que moldam estilos de favela popular distintos e, como diz Lycurgo, promovem a auto-estima), trabalhadores locais e vendedores de bebidas. Um estudo de 2009 mostrou que o funk trazia R$10 milhões mensalmente para a economia da cidade.

Dados esses fatos, o funk representa uma dupla ameaça para as elites conservadoras. Primeiro, oferece uma chance para as pessoas tratadas abismalmente pelo Estado para falar sobre suas experiências. Oferece uma plataforma que ameaça a imagem do Brasil que alguns gostariam de retratar. Por exemplo, a jornalista Claudia Wild–que apoia o candidato presidencial de extrema direita Jair Bolsonaroafirma que Anitta representa “falência nacional, sem o menor risco de desenvolvimento”. Um membro do grupo de campanha “Funk é lixo” escreveu: “Enquanto tratarmos o [funk] como cultura, este país nunca será visto como um país decente”.

Em segundo lugar, o funk oferece uma chance de mobilidade social totalmente autoproduzida, emergente e independente de qualquer projeto social de cima para baixo, seja a mobilidade da música das favelas para outros países e para as casas de classe média e universidades, ou a mobilidade de dançarinos e MCs para posições de sucesso e influência. Tem o potencial de ameaçar as hierarquias raciais e de classe em que o status quo brasileiro é construído. Como o DJ MouChoque, do duo DJ Ritmo de Favela, sugere: “Os brancos ricos no Leblon não gostam de ver os brasileiros negros das favelas se divertir. Eles querem que eles estejam servindo bebidas ou vendendo guarda-sóis”.

Justificando a repressão

Dadas essas ameaças–à imagem externa do Brasil e suas hierarquias internas–as tentativas de controlar e denegrir o funk e passinho parecem altamente úteis para uma visão de mundo elitista. Tais tentativas são baseadas em várias desculpas, a mais típica é que o funk é apologia ao crime. Exemplos recentes de repressão sob esta justificativa variam desde a proibição de última hora de uma enorme apresentação matinal pelo grupo Passinho Carioca na Penha até os disparos arbitrários contra 13 pessoas pela polícia em uma festa em São Gonçalo. No caso do Passinho Carioca, o organizador Thiago De Paula disse que foi ameaçado de prisão enquanto dezenas de crianças pequenas e adolescentes ficaram desapontados aguardando a apresentação nos portões de uma área que deveria apoiar o desenvolvimento da comunidade na Penha. Em um recente debate organizado pelo dançarino e pesquisador de dança Hugo Oliveira, chamado Ocupação Desmistifique, os bailarinos participantes observaram que, embora existam várias “gerações” de dançarinos de passinho, muitos da primeira geração–que têm cerca de 30 anos agora–já foram mortos.

Uma segunda desculpa dada para a repressão do funk é que é misógino, que também é uma das críticas mais amplamente interpretadas em “Vai Malandra”. É certamente verdade que algumas letras do funk–como aquelas em todos os estilos de música–contêm mensagens de violência ou objetificam as mulheres. No entanto, artistas com o Rede Funk e o Passinho Carioca mostram que essa não é uma característica inerente do gênero, mas simplesmente um exemplo da forma como a música reflete algumas realidades do cotidiano. Além disso, é importante distinguir entre material que é misógino e material que é sexualmente explícito, porque o funk demonstra poderosamente que estes não precisam ser o mesmo. Há um número crescente de artistas femininas que usam o funk para afirmar seu direito ao controle, ao prazer e à alegria.

Gênero, sexualidade, raça e classe

Por exemplo, o coletivo AfroFunk mantém populares aulas de passinho em toda a cidade, frequentadas principalmente por mulheres. Na Lapa, a Taísa Machado da AfroFunk ensina os dançarinos a reconhecer e desenvolver o poder de seus corpos através de movimentos semelhantes aos exibidos em “Vai Malandra”, não a serviço de nenhum olhar masculino, mas por sua própria força e, acima de tudo, por diversão. Supor que todos os movimentos do quadril e das nádegas são necessariamente movimentos que uma mulher executa para um homem é perder uma série de possibilidades de dança e permanecer fixo em uma cultura do olhar masculino que é possível subverter.

Também vale a pena lembrar da tradição radical de fazer “vogue” no passinho. De acordo com o dançarino Igor Pontes, falando na Ocupação Desmistifique, essa tradição começou quando um dos mais famosos dançarinos de passinho, Gambá, foi vencido em uma competição de dança por um grupo de dançarinos homossexuais e, como resultado, começou a incorporar alguns de seus movimentos. Desde então, o passinho jogou com identidades sexuais e de gênero, e como Ketelyn, a dançarina mascote de 9 anos do Passinho Carioca do Morro do Caixa d’Água, disse-me: “não existe nada disso de que uma coisa é de meninas, outra de meninos”. Isso certamente não pode ser dito sobre muitas outras formas de dança, como ballet, salsa e tango. A grande variedade de movimentos utilizados no passinho não tem muito tempo em “Vai Malandra”; é uma pena que a Anitta não tenha aproveitado o talento dos dançarinos do Vidigal, onde o videoclipe foi filmado.

Ver o vídeo de Anitta como o pináculo do funk feminista, ou usar seu vídeo para proclamar que o funk é inerentemente misógino, é perder o trabalho de muitos artistas altamente talentosos que dançam e escrevem novas formas de feminismo e poder negro, como MC Carol Felix, MC Priscila, Art Black, May Eassy, MC Soffia, MC Carol, AfroBlack, Donas e Lacraia, cujo trabalho também é uma parte central da história do funk, assim como “Vai Malandra”.

Uma terceira crítica dirigida a “Vai Malandra”–pela colunista Stephanie Ribeiro, entre outros–é que a Anitta está se apropriando da cultura negra enquanto desfruta de privilégios “brancos”. Anitta é uma artista bem sucedida em uma indústria de música racista e sexista e, como argumenta Ribeiro, vale a pena questionar por que outros artistas que são mais propensos a experimentar racismo do que Anitta, como a cantora Ludmilla, não tiveram tanto sucesso.

Ainda assim, MC Priscila enfatiza a sensação de orgulho sentida por muitos moradores da favela com o sucesso do hit de funk de Anitta. “Não é [uma questão de] cultura negra e cultura branca. Penso que é mais sobre uma divisão da classe social. É a cultura dos pobres e a cultura dos ricos”. Ela enfatiza a importância de se pedir uma opinião direta das pessoas, ao invés de presumir que os debates que dominam a internet capturam completamente as perspectivas dos moradores da favela.

Um foco na comunidade do funk e do passinho

Em vez de se concentrar apenas em Anitta, então, vale a pena usar seu sucesso incrível para examinar mais de perto o legado de que ela faz parte. A Rede Funk está organizando uma grande competição de passinho em março, onde alguns dos melhores dançarinos da cidade irão se apresentar. O Passinho Carioca tem sua própria empresa de dança, que atualmente está montando um show que conta a história de vida de dançarinos, com uma fusão ousada de palavra falada, teatro e passinho. Alguns desses dançarinos, como Vinicius Rodrigues, também fazem parte da bem-sucedida empresa internacional da coreógrafa Alice Ripoll, Suave. Suave apresentou recentemente a produção eletrizante e extremamente comovente “Cria”, uma poderosa história de dança, violência e amizade. Outros bailarinos, como Rebeca Barboza, Ana Santiago, Príncipe Gugu e MC Lipinho Costa, estão começando a lançar carreiras solo como cantores, MCs e produtores.

Todo o seu trabalho desafia o racismo, a violência e a pobreza que muitos dos artistas enfrentam a cada dia. Thiago De Paula, do Passinho Carioca, conta como os dançarinos e MCs muitas vezes não podem pagar a passagem de ônibus para os ensaios, enquanto Alice Ripoll relata que seus dançarinos foram parados várias vezes pela polícia quando compareceram a aulas no Centro Coreográfico da Tijuca, simplesmente por serem negros em uma área de classe média. Como o DJ MouChoque diz, os aparelhos de som são regularmente destruídos ou tomados pela polícia, e os DJs e MCs enfrentam prisões arbitrárias sempre que se apresentam. Isso mostra a extraordinária perseverança e energia dos artistas do funk, que criaram uma forma de arte com sucesso fenomenal com recursos mínimos. É fundamental, então, olhar para–mas também para além de–“Vai Malandra”, para entender como o funk oferece um feminismo assertivo, uma crítica às hierarquias raciais e uma maneira poderosa de valorizar vidas que estão constantemente em risco.

Lucy McMahon é coreógrafa e dançarina, além de dar aulas de Direitos Humanos na Escola de Estudos Avançados da Universidade de Londres, no Reino Unido. Sua pesquisa de doutorado explorou o movimento de protestos em 2013-2014 no Rio, e ela atualmente está trabalhando em uma série de projetos coreográficos e de pesquisa que reúnem Direitos Humanos e dança. Ela agradece a MC Priscila, André Lycurgo, MC Patrão e Hugo Oliveira por sua ajuda e conselho com a edição desta matéria.