Abraçando o Paradoxo do Planejamento da Informalidade

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Leia a matéria original por Jeff Risom e Mayra Madriz em inglês no site da Next City aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil. 

Nós fomos para Buenos Aires para ajudar a reprojetar o assentamento informal mais emblemático da cidade e aprendemos a apreciar o que os moradores já construíram.

Planejadores e designers urbanos enfrentam frequentemente um paradoxo desconfortável: as pessoas tendem a preferir bairros que se desenvolveram organicamente com as contribuições de muitos ao invés daqueles que foram planejados por um pequeno grupo de especialistas. Os criadores de cidades adoram usar termos como ‘orgânico’, ‘espontâneo’ e ‘autêntico’, mas tendem a planejar e projetar áreas que limitam essas mesmas qualidades. Nós enfrentamos esse paradoxo de forma muito explícita quando Gehl, onde trabalhamos como designers urbanos, foi convidada pelo governo de Buenos Aires para prestar assessoria de design para um plano ambicioso liderado pela Secretaria de Inclusão Social e Urbana da prefeitura para reconstruir a favela mais emblemática, construída por moradores, da capital da Argentina. O plano era transformar Villa 31villa é a gíria argentina para favela–em um bairro, um barrio.

A Villa 31 é um dos bairros mais interessantes, ricos e vibrantes de Buenos Aires. Tem o grão e a escala dos assentamentos medievais que os turistas se amontoam em lugares como Siena, Itália. Tem a vida da rua, com crianças correndo e brincando, que cidades como Nova Iorque e Melbourne esperam alcançar nas suas iniciativas Play Streets (Ruas de Lazer). Com as ruas zumbindo com ciclistas e pedestres, tem uma divisão modal mais parecida com Copenhague e outras lançadoras de tendências de transporte do que com outros bairros de Buenos Aires.

No entanto, é preciso ter o cuidado de não romantizar demais essas qualidades.

Situado em uma localização estratégica adjacente ao bairro mais rico da cidade, a Villa 31 é uma dolorosa lembrança das profundas disparidades socioeconômicas da Argentina. Enquanto a maioria da cidade é reverenciada como uma metrópole sofisticada, 37 por cento das 8.000 casas da favela não possuem uma cozinha, e um quarto delas não tem um banheiro. Alguns moradores carregam um par de sapatos extras para mudarem depois de caminhar pelas ruas enlameadas, e alguns dos corredores são tão estreitos que deixam centenas de famílias fora do alcance de veículos de emergência. A maioria das casas não tem água potável e não está conectada à rede de esgoto. A eletricidade está disponível através de conexões informais perigosas que resultaram em algumas eletrocussões e explosões mortais. A maioria das casas está superlotada e falta qualidade de ar adequada em seu interior. Embora a villa esteja adjacente a um centro de trânsito, nenhuma das linhas de trânsito entra na comunidade, e o acesso de pedestres ainda é limitado pelo controle que gangues possuem de algumas estradas de acesso.

Após 80 anos de negligência, o governo municipal local decidiu enfrentar o desafio e ampliar seu alcance, serviços e infraestrutura na Villa 31. A intenção é elevar a qualidade de vida aos mesmos padrões que o resto da cidade. Esta tarefa maciça e complexa é liderada por uma equipe motivada de jovens arquitetos, engenheiros, sociólogos e profissionais de políticas públicas. Gehl foi trazida ao time para ajudar a promover a missão social do projeto através do design urbano, com ênfase na mobilidade sustentável e no espaço público.

Como parte de nosso trabalho, estudamos a vida pública em sete bairros representativos da diversidade de Buenos Aires, e aprendemos com a equipe de divulgação pública que trabalha com os moradores por quase dois anos. Nossas descobertas revelaram que a villa superou as partes mais ricas da cidade em indicadores-chave de vitalidade urbana e mobilidade sustentável. Há mais pessoas caminhando, andando de bicicleta e passando o tempo socializando, jogando e assistindo as pessoas nas ruas e espaços da Villa 31, do que nos seis bairros que estudamos. Além disso, percebemos que muitos projetos de habitação social subsidiados publicamente ao longo do século passado apresentaram resultados piores (em termos de segurança, defesa e saúde) do que as favelas informais construídas e habitadas antes da intervenção pública.

Não há dúvida sobre a necessidade urgente de ampliar os serviços públicos nesta área. Durante décadas, os moradores da Villa 31 exigiram infraestrutura básica e presença governamental, e quanto mais tempo passamos na comunidade, mais apreciamos a infraestrutura urbana já construída pelas pessoas do bairro. Essas famílias enfrentam uma grave privação em muitas áreas, mas em meio à escassez, seu bairro oferece algumas das qualidades que algumas cidades mais privilegiadas buscam, incluindo ruas que se pode caminhar e uma vida pública vibrante.

Trabalhando com uma equipe apaixonada e dedicada–Diego, Lucho, Licho, Nacho e Juani–a Gehl criou estratégias para conectar o bairro internamente e com seus arredores formais. Este objetivo de tornar a comunidade mais fisicamente acessível complementa o complexo processo de integração da villa no tecido social e financeiro formal da cidade. Nós ajudamos a projetar ruas e espaços para conectar as micro comunidades dentro da comunidade umas com as outras, para reforçar a noção de que o domínio público é verdadeiramente o terreno comum e a força vital do distrito.

À medida que nossos projetos se desenvolveram, percebemos os riscos de reprojetar algo. Aderir aos padrões de edifícios modernos significaria ampliar as ruas, restringindo o empreendedorismo e, possivelmente, aumentando os custos de construção. A comunidade teria que desistir de alguns dos seus atributos mais poderosos para atender ao código.

Os arquitetos da Villa 31–seus moradores–criaram um lugar com qualidades que precisam ser preservadas à medida que os arquitetos profissionais entram. Aqui, ilustradas pelo artista local Fernando Neyra são as cinco principais lições de design que aprendemos com a Villa 31:

PROXIMIDADE IMPORTA

Construída pelos moradores em terras de propriedade pública perto do principal centro de trânsito da cidade, a Villa 31 ofereceu aos migrantes e famílias de baixa renda algo que nem o mercado, nem a maioria dos programas governamentais poderiam oferecer: a oportunidade de viver com proximidade dos empregos, serviços e amenidades que a cidade tem para oferecer. Na Argentina, como nos Estados Unidos e na Europa, há uma demanda insatisfeita por habitações acessíveis perto de centros de emprego. Infelizmente, o fornecimento de habitação a preços acessíveis, incluindo habitação pública, é muitas vezes confinado a áreas residenciais na periferia que não possuem empregos adequados e transporte público. Isso limita as oportunidades dos moradores e condena-os a perder tempo valioso em uma viagem sem sentido.

UM BAIRRO PODE SER DENSO E EM ESCALA HUMANA

Em uma cidade marcada por arranha-céus e tráfego rápido em avenidas de oito pistas, as ruas estreitas e a forma compacta da villa oferecem uma ruptura com o ruído e a agitação da vida urbana. Embora a Villa 31 seja um dos bairros mais densos da cidade, a maioria dos edifícios tem menos de cinco andares. A largura da rua varia de três a 16 metros, gerando uma rede de ruas estreitas compartilhadas, com um microclima agradável. Os blocos densos formados por edifícios estreitos com piso térreo ativo e varandas abertas asseguram que sempre há olhos na rua. Em vez de se conformar a uma grade, as ruas se encaminham em torno dos edifícios, gerando uma rede de passagens curvas que revelam visões diferentes do distrito e seus arredores. Estas passagens irregulares variam em largura, possibilitando praças pequenas e espaços de encontro. Becos estreitos servem como atalho entre as ruas paralelas, permitindo que os pedestres tomem rotas mais curtas e diretas do que os veículos podem.

RUAS PODEM SER ESPAÇOS PÚBLICOS ALEGRES E SEGUROS

Ruas estreitas e um fluxo constante de atividade obriga os motoristas a circularem lentamente dentro do tecido da villa. O ritmo lento do tráfego gera um ambiente social mais seguro e silencioso do que outras áreas da cidade que são projetadas para o fluxo de automóveis. As ruas da villa tornam-se um ponto de encontro–um lugar de troca casual e encontros frequentes. Mesmo desde uma idade precoce, as crianças pequenas podem se reunir para brincar fora de suas casas sem vigilância, mas a uma distância de um grito de um adulto. Atravessando as ruas da villa, você vê famílias puxarem suas cadeiras em frente às casas para conversar com os vizinhos ou olhar as crianças. Você vê os moradores mais velhos conversarem com os transeuntes da janela da sua sala de estar ou da varanda. Uma pequena unidade no térreo na villa permite que uma pessoa idosa viva de forma independente e ainda se envolva na vida da comunidade.

ARQUITETURA FLEXÍVEL GERA OPORTUNIDADES ECONÔMICAS

As casas na villa são mais do que um lugar para viver–são plataformas para o progresso econômico. Uma família de imigrantes pode começar com uma casa de dois cômodos de um andar. Um portão ou uma janela que ficam de frente para a rua é tudo o que eles precisam para começar uma pequena loja. Idéias empresariais podem ser testadas sem o custo e risco de alugar um espaço comercial. Se o negócio falhar, ele pode ser convertido em uma nova e melhor ideia de negócios no mesmo local. Se o negócio for bem-sucedido, ele pode se expandir para preencher o primeiro andar, enquanto a receita do negócio vai para a adição de um segundo andar, que se torna uma casa. Um terceiro andar com acesso independente torna-se um apartamento para um primo ou um locatário e companheiro morar. A casa está constantemente se adaptando e mudando; pode subdividir-se quando a família cresce ou alugar quando um membro se muda. Muitos moradores vivem fora do sistema bancário formal, de modo que uma casa maior torna-se tanto uma forma de poupança, quanto um fluxo de receita. Ao longo do tempo, um negócio bem-sucedido pode se tornar um ativo conhecido do bairro que permite que as pessoas encontrem o que precisam à curta distância. Hoje, um em cada cinco edifícios da Villa 31 é um negócio. Uma única rua estreita detém um mercado de produtos, uma cafeteria com acesso à internet, cabeleireiro, lavanderia, uma loja de sanduíches, e até mesmo um consultório de dentista. Cada um desses negócios é um testemunho do empreendedorismo dos moradores.

PERSONALIDADE MOLDA O LOCAL

Os projetos tradicionais de habitação pública colocam as pessoas em módulos padrão regulamentados; eles são formas previsíveis repetidas em fileiras ordenadas. As mudanças personalizadas no exterior das casas são desencorajadas ou proibidas, pois afetam a pureza arquitetônica da visão. Livre de ideias estéticas monolíticas, a villa permite que as pessoas projetem sua personalidade nas casas. Uma caminhada atenta na villa revela o orgulho que muitas pessoas têm de sua casa, pois escolhem cores e materiais que refletem seu gosto e preferências. Em uma rua tranquila, uma família coloca uma telha pintada à mão com o número da casa e seu nome; a casa pintada lembra às pessoas que passam quem é a família que orgulhosamente vive lá.

UM NOVO PARADIGMA

Durante décadas, os moradores exigiram mudanças. Hoje, muitos recebem as melhorias que o governo está fazendo no bairro. Não se pode deixar de dizer suficientemente que é essencial não romantizar condições que emergiram da escassez e da necessidade. No entanto, também é necessário elevar os valores e os pontos fortes da comunidade para mantê-los no bairro reprojetado e aplicar suas lições para outros projetos de desenvolvimento.

O novo investimento deve ser direcionado às necessidades reais, respeitando as estruturas sociais que permitiram que a comunidade permaneça forte em face da adversidade. Acreditamos que a forma urbana da villa, com a proximidade do trabalho, a arquitetura flexível e adaptável, as ruas caminháveis compacta e os andares ativos contribuíram tanto para as fortes conexões sociais entre moradores quanto as estruturas extremamente resilientes que habitam. Arquitetos envolvidos na criação de moradias públicas na América Latina e em outros lugares prestarão a seus moradores um serviço, estudando e aprendendo tudo o que puderem de comunidades auto-construídas como a Villa 31. Líderes de cidades precisam abraçar o paradoxo representado por lugares como a villa. Esses espaços urbanos precisam de apoio público que não regulamente demais a vida orgânica que floresceu na sua ausência.

Agradecimentos especiais a toda a equipe do Barrio 31 e especialmente Diego, Lucho, Licho, Nacho e Juani. Agradecimentos especiais também a David Sim, que influenciou nossa abordagem para este projeto e as idéias neste artigo.