O Termo Territorial Coletivo (TTC) Aplicado às Favelas Poderia Resolver a Crise Mundial de Moradia? Parte 4

Uma inovação no uso da terra que tem tido sucesso nos EUA e em outros lugares pode ajudar a proteger comunidades assentadas informalmente de remoção e gentrificação, e dar a elas controle sobre o desenvolvimento.

Esta é a última matéria de uma série de quatro–que estamos publicando entre 13 e 16 de agosto–que compõe o artigo intitulado ‘Será que um Termo Territorial Coletivo (TTC) Aplicado a Favelas Poderia Resolver a Crise Mundial de Moradia Acessível?’ escrito por Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras*. Uma versão do artigo foi publicada pelo Lincoln Institute of Land Policy (Instituto Lincoln de Política de Terras) e na sua Revista Land Lines. Leia o artigo original em inglês no site do Lincoln Institute aqui e na Land Lines aqui. Para ler todas as matérias da série clique aqui.

Esta série está sendo publicada em preparação para a vinda da delegação de Porto Rico, entre 23 e 27 de agosto, que conseguiu realizar o TTC em oito favelas de San Juan, com ótimos resultados. Caso tenha interesse em participar das oficinas e conhecer o modelo de perto, faça sua inscrição na data apropriada aqui. As oficinas serão realizadas pela ComCat em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio, e o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro.


A Regularização das Favelas do Rio Através do TTC

A regularização das favelas do Rio por meio de uma estrutura de TTC resolveria seus principais desafios de desenvolvimento: segurança fundiária (tanto de remoções pelo poder público quanto de forças especulativas do mercado), formalização de instituições, esforços de melhoria e reconhecimento público e legal.

Os estilos de mercado, planejamento, e habitações em bairros formais típicos do Rio poderiam ser vistos como representativos de um modo de vida muito diferente daqueles das comunidades informais—mas não necessariamente "melhor".
Os estilos de mercado, planejamento, e habitações em bairros formais típicos do Rio poderiam ser vistos como representativos de um modo de vida muito diferente daqueles das comunidades informais—mas não necessariamente “melhor”.

Nos EUA e na Europa, os TTCs são legalmente reconhecidos e estabelecidos como agências sem fins lucrativos que empreendem o desenvolvimento habitacional a partir do zero. TTCs de favela, por outro lado, partem de moradias e comunidades já em vigor. Seus maiores desafios são com o estabelecimento das estruturas legais e institucionais necessárias para gerenciar o TTC.

Enquanto os TTCs dos EUA e da Europa exigem adesão de novos moradores à medida que entram na lista de espera para entrar no TTC, os TTCs no contexto de favelas brasileiras precisariam informar os moradores sobre suas opções (por exemplo, TTC e títulos de propriedade da construção vs. títulos individuais plenos, com propriedade da terra) e permitir que as famílias optem por participar ou não. Felizmente, o Caño em Porto Rico oferece um modelo de sucesso: 2000 de aproximadamente 6500 famílias participam do TTC nas oito comunidades participantes. Se no Rio de Janeiro um piloto produzisse apenas um subconjunto de famílias comprometidas com o TTC, pode-se supor que uma mistura de TTC e domicílios com títulos plenos reduziria a especulação, uma vez que grandes construtoras não teriam interesse em terrenos menores cercados por moradias acessíveis.

Membros do TTC Canal Martín Peña. Foto: World Habitat

Se passasse uma lei específica em âmbito municipal ou estadual sobre TTC, poderia inclusive oferecer a concessão de isenções fiscais e tarifas sociais de serviços públicos para as famílias que optarem pelo TTC (o que é apropriado, já que teriam renunciado ao direito de especular para garantir moradia permanentemente acessível, ou seja, um bem público), e poderiam se beneficiar de outras garantias de acessibilidade econômica, tais como serviços básicos (luz, água) subsidiados (que, similar a moradia, atendem necessidades básicas), com base nessa mesma justificativa. A garantia de um estoque residencial permanentemente acessível via TTCs seria uma benção para o setor público, que estaria cumprindo sua obrigação de garantir moradia sem gastos maciços em habitação pública, aluguel social e assim por diante. As cidades poderiam considerar a redução dos impostos sobre propriedades para os TTCs como um outro lado da mesma moeda que os leva a cobrar impostos mais altos de terrenos baldios—em vez de levar a uma maior desigualdade e ineficiência, como faz um terreno baldio, um mercado imobiliário permanentemente acessível e com administração comunitária levaria a uma maior igualdade e eficiência para a cidade como um todo.

Uma família poderia, assim, optar por participar num TTC + título a sua casa, em vez de receber um título de propriedade da terra, por três razões principais:

  1. Permanência. A principal preocupação de segurança fundiária dos moradores é poder ficar em sua casa e manter sua comunidade, em vez de poder vender a casa a preço de mercado.
  2. Acessibilidade. Eles exigem subsídios porque não podem arcar com o imposto pleno sobre a propriedade, contas de luz, gás, água e outros custos de vida, a preço de mercado, associados à “cidade formal”, como os tipos de negócios prováveis de operarem em um cenário especulativo.
  3. Gestão comunitária. Eles preferem que a comunidade administre seu próprio desenvolvimento em vez de depender de agências governamentais (comumente ausentes ou ineficazes).

Adotar TTCs poderia, então, ser profundamente transformador. As favelas não apenas garantiriam sua segurança fundiária tanto em períodos de crescimento quanto de declínio econômico, de gentrificação e de remoções, mas também poderiam se basear nos legados de resiliência e resistência das favelas, e nas características únicas de cada bairro e de seus moradores, e utilizar seu status formal para fazer lobby por reconhecimento cultural, serviços públicos subsidiados e outras amenidades e melhorias nos ativos materiais.

O Que Esperar Para o Rio?

Estamos agora em uma encruzilhada no Brasil. Temos um governo federal que está promovendo ativamente a titulação integral em massa (terras e estruturas) sob a nova lei de regularização, n. 13.465/17. No entanto, as comunidades estão cada vez mais preocupadas com as pressões especulativas que serão produzidas através de títulos plenos, e evitar este processo passa por exigir que esta lei coexista com a norma já estabelecida das Zonas de Interesse Social Especial, especialmente em favelas, que devem ser atualizadas e preservadas como bairros acessíveis.

Neste contexto, os TTCs representam um meio termo onde coexiste o que há de melhor nessas duas leis. A lei nacional de regularização poderia ser complementada por uma lei que regule o TTC e o torne uma opção mais fácil. Tal lei poderia estabelecer a estrutura para cada membro da comunidade escolher entre duas opções: (a) a titulação integral individual atualmente estabelecida por lei, que será vista favoravelmente por permitir a venda a preço de mercado, mas que também virá com requisitos de pagar integralmente o IPTU e as contas de luz, gás e água, além de promover uma mudança cultural significativa na gestão coletiva das favelas; ou (b) optar por uma estrutura de Termo Territorial Coletivo de favela, onde os moradores que optem por este termo receberão títulos de suas construções enquanto formam uma instituição local reconhecida pelo estado e gerenciada pela comunidade para administrar a terra e a comunidade em geral, incluindo uma mais eficiente cobrança de investimentos públicos.

No dia 25 de março de 2014, moradores do Santa Marta foram às ruas para protestar contra as contas de luz abusivas, causados pelo processo de regularização do serviço, com a entrada da UPP.

Os moradores que optarem pelo primeiro cenário dependerão do setor público para todas as melhorias, decisões de zoneamento e para a manutenção de seus espaços públicos, como é típico da cidade formal em geral, porém possivelmente com uma estigmatização contínua por terem suas origens na informalidade. Os moradores que optarem pelo segundo cenário, porém, contarão com maior poder de “barganha” junto ao governo, pois aumentará sua capacidade de pressão e organização, bem como terão maiores possibilidades de obterem financiamento privado e poderão apresentar projetos próprios ao poder público. Poderão controlar melhor a forma através da qual recursos públicos serão gastos com eles e se envolverem de forma mais consequente na realização de melhorias na comunidade.

Esta segunda opção poderia ser considerada dentro de uma lei com especial intuito de fomentar TTCs para garantir permanência, acessibilidade e gestão coletiva. O resultado de tal lei seria a garantia de uma grande rede de moradias permanentemente acessíveis em todo o país, oferecendo um mercado através do qual cidadãos de baixa renda poderiam se mover à medida que oportunidades de emprego e afins mudassem de local.

Mesmo com a ausência de uma lei sobre TTC, grupos dentro das comunidades ainda podem atuar para estabelecer uma estrutura de preços acessíveis. Conforme a lei federal 13.465/17 entra em vigor, um grupo dentro de uma comunidade pode se juntar para formar um TTC com seus títulos recentemente concedidos. Mesmo que apenas um quarto da comunidade forme um TTC, o fato de terem feito isso limitará o potencial especulativo dos imóveis de sua comunidade permanentemente, porque não haverá grandes extensões de terra disponíveis para especulação. E eles podem usar seu status coletivo para fazer lobby por melhorias e contas subsidiadas, bem como pelo reconhecimento do modelo TTC como uma opção para outras comunidades.

Santa Marta. Foto por Antoine Horenbeek

Ambos os cenários estão sendo investigados e desenvolvidos por uma coalizão de parceiros, incluindo nossa organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras, com sede no Rio; o TTC Caño Martín Peña; o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro (LEDUB) do Rio de Janeiro; e o Centro de Inovação em TTC (Center for CLT Innovation) da Global Land Alliance, com apoio do Lincoln Institute of Land Policy. O grupo está desenvolvendo uma série de ferramentas e materiais para que lideranças comunitárias avaliem o valor de um modelo de TTC para suas comunidades, enquanto simultaneamente desenvolve um entendimento jurídico sobre como isso seria possível dentro da atual legislação e como poderia vir a ser uma legislação que promovesse os TTCs. Tudo isso será discutido na próxima semana (23-27 de agosto) em oficinas com lideranças de favelas, ativistas de direito à moradia, advogados parceiros, pesquisadores e técnicos que assessoram favelas. As oficinas estão sendo realizadas em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas do Rio de Janeiro, e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-Rio). A esperança é de que comunidades interessadas em mobilizarem suas comunidades para estabelecer um TTC receberão apoio técnico contínuo dessa ampla rede.

Fica claro que, em última análise, um cenário TTC bem-sucedido dependerá de investimentos pesados ​​em esforços de organização comunitária existentes, para informar moradores sobre os riscos e oportunidades que eles enfrentam sob diversos esquemas de titulação, estabelecer o TTC como solução de escolha, e apoiar o que inevitavelmente será um esforço permanente e de longo prazo para desenvolver e administrar o TTC. O TTC, entre outras tarefas, precisará documentar minuciosamente os ativos da comunidade para garantir que sua abordagem se baseie nesses ativos ao invés de prejudicá-los. Como sempre foi o caso, o futuro das favelas do Rio continua nas mãos de seus próprios moradores.

Esta é a última matéria de uma série de quatro. Para ler as outras matérias da série clique aqui

Caso tenha interesse em participar das oficinas entre 23-27 de agosto e conhecer o modelo TTC de perto, faça sua inscrição na data apropriada aqui.


Série Completa: O Termo Territorial Coletivo (TTC) Aplicado às Favelas Poderia Resolver a Crise Mundial de Moradia?

Parte 1: Direito à Terra no Brasil: Reconhecimento e Ameaças ao Papel das Favelas na Cidade / Moradia é Uma Necessidade Básica
Parte 2: Repensando as Favelas do Rio (Condições, Direitos de Ocupação 1988–2010, Regularização Fundiária de 2010 a Hoje)
Parte 3: Os Termos Territoriais Coletivos Aplicados a Favelas Oferecem uma Oportunidade?
Parte 4: A Regularização das Favelas do Rio Através do TTC / O Que Esperar Para o Rio?

*Comunidades Catalisadoras (ComCat) é a organização que publica o RioOnWatch.