Cidade de Deus Recebe Lançamento da Coletânea ‘Poesia de Esquina’

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“Arte salva? E aí?”, provoca a poeta Deborah Fadiga com o poema A arte salva!, página 53 do livro Poesia de Esquina: Coletânea Volume 0, obra que reúne 38 autores de diversas favelas, becos e esquinas do Estado do Rio de Janeiro, em 242 páginas.

Há dois anos em produção, é preciso dizer: o livro nasceu antes da sua materialidade, linda, diga-se de passagem, quando o movimento Poesia de Esquina atravessou o tempo—8 anos, para ser exato—escrevendo história e transformando-a, nas estrias da favela Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Ora miúdo, competindo com o volume das tradicionais jukeboxes espalhadas pelos bares da Estrada Marechal Miguel Salazar, ora gigante, no Bar do Tom Zé, conquistando aplausos e respeito ao recitar a vida no pé do ouvido de quem, até aquele momento, encontrava ritmo apenas no copo gelado da cerveja quente.

Como não haveria de ser diferente, portanto, numa noite ardente, de lírica em chamas, na última quinta-feira (24), na Casa de Cultura Cidade de Deus, o movimento lançou para o mundo a Coletânea Volume 0, de capa vermelha com design-colagem atemporal, com orelha do poeta e romancista Jessé Andarilho, que revela: “Eu sou um cara que fui descoberto poeta no sarau Poesia de Esquina. Chegava no sarau, falava algumas paradas, a galera batia palma, dizia que era poesia. Eu acreditei e aí virei poeta”.

A programação do lançamento, organizada em quatro momentos, iniciou em roda de conversa. O papo girou em torno de uma reflexão propositiva: “Como estimular a leitura e a escrita da poesia nas periferias?”. Com mediação do poeta e co-fundador do movimento Poesia de Esquina Wellington França, os escritores Letícia Brito, do Slam das Minas, Jessé Andarilho, que toca o projeto Marginow, Yolanda Soares e Anderson Quack, cineasta e ativista social da Cidade de Deus e cofundador da CUFA (Central Única das Favelas), abriram a noite, compartilhando trajetórias e pensando com o público presente a importância dos movimentos e coletivos populares e comunitários para o desenvolvimento social dos territórios à margem dos direitos mínimos, humanos.

Como não apenas de conversa-fiada se faz um encontro entre almas livres, a atriz, artista plástica naïf, poeta, cantora e compositora negra—ufaaa [que mulher enorme!]—moradora há 50 anos da Cidade de Deus, também co-fundadora do movimento de esquina, Dona Tuca, 85 anos, interrompeu o papo para uma intervenção revolucionária. Com o microfone na mão, despejou:

Anaíde dos Santos Muniz, popular, Tuca, o diamante. Eu não vou conversar, não quero conversa. Quero dizer as minhas poesias:

“Bato no peito com Orgulho
e digo a você que eu sou feliz.
Você diz que eu sou Negra…
Negra é a minha raiz.
Eu sou lenha, sou madeira.
Sou brasa, sou carvão.
Sou filha de um país Negro.
Sou filha e
sou Nação.”

Pouco ou apenas arte é o que poderia ser dito após a manifestação da Dona Tuca, o diamante da Cidade de Deus. Por isso, provocados pela vitalidade de quem ensina a vida, o encontro seguiu com sessões de autógrafos entre os cantos e versos, pois, em um ambiente da Casa de Cultura, o músico Pedro Carvalho realizava um lindíssimo pocket show, noutro, poetas recitavam os seus escritos.

A literatura marginal das periferias, assim como a geração mimeógrafo dos anos 70, cicatrizou no corpo da cultura brasileira. Transforma a realidade carioca sem pedir reconhecimento: ela já é reconhecida, ainda que, por vezes, nasça das frestas, perfurações!, abertas por “balas de fuzil 762 de fabricação belga”, como conta (e inquieta quem lê) o poema Dominação Europeia [página 205], de Vivi Salles, socióloga, moradora da Cidade de Deus, co-fundadora do movimento Poesia de Esquina, poeta e organizadora da coletânea.

O movimento Poesia de Esquina, com este lançamento, pontua outro importante capítulo da Cidade de Deus. A favela é mundialmente conhecida em razão da violência que, em produções e narrativas diversas, do cinema aos noticiários, disseram ser uma característica essencial do território. Relembro: há dois anos um helicóptero da Polícia Militar do Rio de Janeiro caía em uma área da Cidade de Deus—o que esclareceram, depois, como pouso emergencial—ceifando a vida de quatro policiais.

Os momentos seguintes ao acontecimento remontam a um genuíno cenário de guerra, repleto de horror e dias inteiros de pânico. A população, naquele momento, se observada à distância, soterrada de caos, considerada culpada por crimes que não cometeu, facilmente seria reconhecida como frágil, impotente, incapaz de recriar o fluxo da vida a partir da arte.

No entanto, resiliente, sábia em razão dos mais de 50 anos de trincheiras, a favela continuou ressurgindo, dia após dia, reinventando a existência e reescrevendo o destino forçado. Isto posto, a Coletânea Volume 0, a primeira obra escrita e produzida do movimento Poesia de Esquina, lançada pela Esquina Editorial, data o presente e o futuro de um território que, de essencial, possui a violência do existir.

Paz sem voz é medo
Voz sem medo
É luta vazia
Guerra por dinheiro
É tirania
Ação no silêncio
é luta sem lira
sem ira

– Poesia Vida sub-guerrilheira, página 215, Wellington França.

Próximo lançamento do Poesia de Esquina e Esquina Editorial: livro do poeta Edison Veoca, dia 12 de fevereiro, às 18h, na Livraria Folha Seca (Rua do Ouvidor, nº 37, Centro).