
O 13 de outubro de 2025 vai ficar marcado na história da Comunidade do Horto, Zona Sul do Rio de Janeiro. Neste dia, a comunidade assinou um acordo histórico que põe fim à ameaça de remoção, que assombrava os moradores há quatro décadas. Em um momento de celebração coletiva, o sentimento de vitória após tantos anos de luta se confirmou pelo canto entoado: o famoso grito de guerra “O Horto fica!” se transformou em “O Horto ficou!”
O presidente da Associação de Moradores e Amigos do Horto (AMAHOR), Fábio Dutra, resume a assinatura do acordo em três sentimentos: cansaço, orgulho e alívio. Para ele, o acordo representa um divisor de águas na luta da comunidade pelo direito à moradia.
“A gente tirou uma espada da cabeça… Entramos em uma batalha em condições desfavoráveis e estamos saindo em condições favoráveis. Hoje, temos nosso direito reconhecido pelo próprio Jardim Botânico.” — Fábio Dutra

Rafael Mendonça, advogado das famílias do Horto nos processos judiciais de reintegração, descreve a importância desta conquista:
“O acordo celebrado no dia 13 de outubro foi histórico porque há um reconhecimento de todos os órgãos de governo envolvidos… de que os moradores da Comunidade do Horto têm direito à moradia naquele local. Foi um momento histórico de reconhecimento institucional do direito à moradia por parte destes atores.”
A moradora e co-fundadora do Museu do Horto, Emília de Souza, também comemora o marco que o acordo coletivo representa:
“A comunidade agora pode ficar mais tranquila, sem essa coisa de ficar com medo de um avanço da justiça com a reintegração de posse.”
A História e a Luta da Comunidade do Horto
Localizada no bairro do Jardim Botânico, a Comunidade do Horto é bicentenária. Suas origens remontam à fundação do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico, no início do século XIX. O instituto cedeu casas aos seus funcionários para garantir que vivessem perto do local de trabalho. Além disso, forneceu ajuda de custo e doações de materiais para a construção de novas moradias.
Hoje, a comunidade é lar de 621 famílias. Boa parte delas tem entre seus antepassados ex-funcionários do Jardim Botânico, que construíram suas casas com apoio do parque e até hoje exibem uma forte vocação verde. Trata-se de um território ocupado predominantemente por pessoas negras e de baixa renda, um recorte demográfico que contrasta com o perfil médio do Jardim Botânico, bairro de elite do entorno. Apesar dos vastos registros documentais que comprovam um processo histórico bicentenário de ocupação do local, a posse das famílias nunca foi devidamente regularizada.

A relação da comunidade com o Jardim Botânico foi, na maior parte do tempo, harmoniosa. No entanto, a partir dos anos 1980, começa a ameaça de remoção da Comunidade do Horto. Na época, a União—que era proprietária das terras da comunidade—entrou com centenas de ações judiciais determinando a retirada das famílias do local. A pressão sobre a comunidade intensificou-se a partir de 2018, após o Jardim Botânico receber a titularidade da terra e protocolar outra leva de ações que atingiu quase todas as famílias. Entre os motivos alegados para a remoção estão a ocupação irregular da área e os danos ao meio ambiente. No entanto, os moradores sempre suspeitaram haver outras motivações, relacionadas ao elevado interesse econômico nas terras da Comunidade do Horto, avaliadas em torno de R$10 bilhões, e à pressão de moradores afluentes do entorno.
Os moradores da Comunidade do Horto viveram sob ameaça de remoção por 40 anos. Ao longo deste período, foram alvo de diversas ações violentas, como o uso da força policial na tentativa de desalojar os moradores. Além dos processos que corriam na justiça, parte da grande mídia construía uma narrativa de criminalização da comunidade, insistindo em taxá-los de invasores e reproduzindo o discurso pró-remoção. Desde o início do conflito, no total, cinco famílias foram removidas.

‘A Luta Pelos Nossos Direitos é Legítima’
Em 2025, esse capítulo sombrio na história da comunidade parece ter chegado ao fim com a assinatura de um acordo coletivo que garante, entre outras coisas, a permanência das famílias no local. O acordo contou com a adesão do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico, da Associação de Moradores e Amigos do Horto, do Ministério Público Federal (MPF), da Secretaria Geral da Presidência da República, da Defensoria Pública da União, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da Prefeitura do Rio em uma cerimônia realizada no dia 13 de outubro no Solar da Imperatriz, no bairro do Jardim Botânico. A articulação bem-sucedida com essa diversidade de atores foi fruto de um esforço coletivo de lideranças comunitárias e de autoridades comprometidas com a luta da comunidade pelo direito à moradia.
Este acordo coletivo servirá de base para acordos individuais a serem firmados por cada família. O Jardim Botânico permanecerá como proprietário das terras, mas comprometeu-se a permitir que a comunidade do Horto permaneça onde está. Os moradores, por sua vez, se comprometem a evitar o crescimento da comunidade e a cumprir regras voltadas à preservação ambiental.

Apesar desta conquista histórica, há motivos que têm deixado a comunidade apreensiva. Uma das preocupações levantadas pelos moradores, agora, é a gentrificação da comunidade. Este debate foi levantado nas negociações do acordo, que, no final, proibiu a negociação dos imóveis na comunidade. As casas podem ser destinadas aos descendentes dos moradores—o que garante a continuidade da comunidade—mas não podem ser vendidas ou emprestadas a terceiros.
“Aqui, próximo da gente, estamos vendo a gentrificação. Onde tinha casas, tá virando restaurantes que não cabem no bolso dos moradores daqui… Este processo de gentrificação pode chegar a nós. Temos que ter o entendimento de que, se a gente lutou mais de 40 anos para continuar morando aqui, não tem sentido nada diferente disso. Seria uma hipocrisia lutar tanto para agora querer vender.” — Fábio Dutra
O exemplo do Horto mostra que, no Brasil, o direito à moradia se conquista com muita luta. Sem as chaves da resistência, como o engajamento e união dos moradores, e as articulações com parceiros em diferentes esferas, essa vitória não teria sido possível.
“Deixamos uma marca para os movimentos sociais de que a luta vale a pena. Sem luta, não existe vitória. A luta pelos nossos direitos é legítima.” — Emília de Souza
O dia 13 de outubro de 2025 entrará para a história como o dia em que o Horto ficou. É um marco do fim de um longo processo de remoção e do início de um novo tempo, rumo à regularização e permanência da comunidade. O caso do Horto mostra a importância da luta coletiva para a conquista de direitos. Sem ampla resistência e solidariedade, nada disso seria possível. Também ensina como é possível conciliar a proteção do direito à moradia com a preservação ambiental, servindo de exemplo a tantas outras comunidades que lutam por seu direito à permanência. Como resume Fábio, o presidente da associação de moradores: “queriam nos enterrar, mas não sabiam que a gente era semente!”.

