A Mídia Não Se Importa Com O Que Acontece Aqui [VÍDEO]

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Leia a matéria original por Matthew Shaer em inglês no site do The New York Times aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil. 

O jornalismo amador pode trazer justiça para as favelas do Rio?

As favelas do Complexo do Alemão, um dos maiores conjuntos de favelas urbanas do Brasil, debruçam-se sobre 700 acres em morros da Zona Norte do Rio de Janeiro, não tão distante do aeroporto internacional da cidade. Cercado em três lados por estradas e no quarto por serras verdes, já não dá mais para o Complexo do Alemão crescer para os lados e, por isso, ele vem crescendo para cima, em conglomerações cada vez mais instáveis feitas de caixas de concreto de quatro andares. “O avô constrói o primeiro andar, o filho faz o segundo, o neto sobe o terceiro e o bisneto o quarto”, contam os moradores, com gosto. Vergalhões brotam dos tetos à espera da construção do próximo andar e da futura geração que vai ocupar o terreno.

Em uma noite do último mês de abril, a moradora Arlinda Bezerra de Assis, de 72 anos, colocou os pés para fora da frente da sua casa e saiu pelo emaranhado de ruelas do bairro junto com seu neto de 10 anos. Fazia horas que a polícia trocava tiros com os traficantes, mas o barulho dos tiros parecia ter diminuído e Arlinda, conhecida como Dona Dalva no Alemão, queria devolver o neto à mãe.

Momentos depois, ela foi encontrada de costas no pavimento, sangrando de dois ferimentos de bala. Ela foi levada para um hospital próximo, onde morreu por causa dos ferimentos. Seu neto, protegido pelo corpo da Dona Dalva, escapou ileso.

A cerca de 400 metros de distância, um favelado de 25 anos chamado Raull recebeu uma mensagem de texto de um amigo, alertando-o sobre o tiroteio (por motivos de segurança, Raull pediu que eu usasse somente o seu primeiro nome). Ele colocou o telefone no bolso e caminhou até o local do incidente. Mais tarde, a polícia rotulou a morte de Dona Dalva como um acidente: ela teve o azar de entrar no meio de um tiroteio, disse um comandante a um jornal local. Mas quando Raull fez sua caminhada pelo meio da multidão, a história que ele ouviu era outra. Os tiros fatais, segundo testemunhas, foram disparados por um policial que confundiu Dona Dalva e seu neto com integrantes do tráfico. Assim que o policial se deu conta do seu erro, disseram as testemunhas, ele correu para sua viatura e partiu em alta velocidade.

Raull cresceu dentro do Alemão, na região leste do complexo. Quando criança, a coisa a mais próxima de um governo que ele conhecia era o Comando Vermelho, a facção de venda de drogas que exercitava controle quase absoluto sobre as favelas. Mas em 2010, o governo anunciou que queria tirar o crime organizado das favelas do Rio. Naquele mês de novembro, mais de 2 mil soldados e policiais entraram no Alemão. O Comando Vermelho foi empurrado para o underground e substituído nas ruas pela polícia.

As facções de drogas do Rio frequentemente matam tanto civis quanto policiais dentro das favelas. Mas os favelados entendiam as regras dos traficantes. “Havia lugares onde a gente não ia e coisas que não se fazia”, explicou Raull. “Com a polícia, foi diferente. Era uma ocupação. Não havia regras. E as pessoas estavam morrendo”. De acordo com a Anistia Internacional, cerca de duas mil pessoas são mortas a cada ano pela polícia brasileira, e muitas vezes com as marcas de execuções planejadas: ferimentos de bala na têmpora ou pelas costas. Mortos por tiros da polícia eram tão comuns no Alemão que eles mal eram percebidos fora das favelas. “Se aparecerem quatro ou cinco corpos, talvez seis, pode ser que seja notícia”, disse Raull. “Um corpo? Nunca. A imprensa não se importa com o que acontece aqui. Preferem não pensar no assunto”.

No Alemão, Raull ouvia histórias de como policiais à paisana estavam executando moradores suspeitos de ter laços com o tráfico, de balas de alto calibre rasgando paredes de casas e matando crianças enquanto dormiam. “A maioria dos nossos amigos de infância está morta”, contou ele. “Para nós das favelas, pensamos ‘OK, temos a certeza de um fim violento, de um jeito ou de outro”’. Dessa realização, Raull tirou um princípio para guiar sua própria vida: “Dar o que puder, enquanto puder’.

Ele passou vários anos tentando descobrir o que, exatamente, ele teria para dar. Ofereceu-se como voluntário em um centro de juventude no Alemão e juntou-se à rede local do movimento Global Occupy. Depois, um mês antes da morte da Dona Dalva, ele e vários amigos formaram o coletivo de mídia Papo Reto. Como os repórteres de jornal e televisão não colocavam os pés no Alemão, eles tomariam para si a tarefa de noticiar o que acontecia dentro das favelas. A intenção era chamar a atenção para as condições dentro do Alemão–os apagões, os toques de recolher, a presença sufocante da polícia–e alertar moradores para que evitassem áreas especialmente instáveis. Alguns membros do Papo Reto às vezes colaboravam com jornais no Rio; outros, como Raull, eram ativistas armados com pouco mais do que seus smartphones e tablets.

Em poucas semanas, o Papo Reto tinha se transformado em uma espécie de torre de sinal para a comunidade. Os membros do coletivo recebiam fotos e vídeos de invasões policiais e de veículos alvejados por tiros que eram enviados por moradores do Alemão usando o aplicativo para celulares WhatsApp. O Papo Reto disseminava as imagens em grupos de bate-papo ou no Facebook e outras mídias sociais.

Integrantes do Coletivo Papo Reto em sua sede, sobre o Alemão. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times. Clique para slideshow: http://nyti.ms/1z5itZY
Integrantes do Coletivo Papo Reto em sua sede, sobre o Alemão. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times. Clique para slideshow: http://nyti.ms/1z5itZY

Este simples ato poderia gerar grandes repercussões. Após a morte de Dona Dalva, Raull postou o relato de testemunhas no Instagram e Facebook ao lado de fotografias dos moradores que congregavam-se sob o brilho dos postes de luz e de um clipe de vídeo de seis segundos que mostrava o chão ainda manchado com o sangue da idosa. Na tarde seguinte, o Alemão estava em chamas. Ônibus foram virados e queimados. Ondas de favelados indignados saíram às ruas do bairro para exigir justiça para Dona Dalva. Redes de televisão enviaram repórteres ao Alemão no dia seguinte, mas logo a multidão havia se dispersado, os incêndios foram apagados e Dona Dalva parecia ter caído no esquecimento. O Papo Reto conseguiu provocar um agito, mas justiça permanecia fora do alcance. Raull foi às redes sociais para desabafar. ‘‘A favela sangra!’’ ele escreveu.

A quase 8 mil quilômetros de distância, em Nova York, os posts do Raull chamaram a atenção de Priscila Neri, uma ativista e cineasta de 35 anos. Priscila mudou-se de São Paulo para Queens ainda criança e fala português e inglês sem sotaque. Há seis anos, ela trabalha como gerente de programas na Witness, uma organização de direitos humanos que capacita e apoia jornalistas amadores em todo o mundo. Ela vinha acompanhando o trabalho dos fotógrafos do Papo Reto desde o mês anterior, quando um dos membros do coletivo, Betinho Casas Nova, publicou um vídeo que parecia mostrar a polícia disparando tiros de armas letais contra uma multidão no Alemão. “Era precisamente este o perfil de ativista com quem queríamos colaborar: gente dentro da favela, filmando sua realidade”, explicou Priscila. “Mas também era bastante aterrorizante porque o risco que eles estavam enfrentando era tão grande”. Priscila despachou um contato da Witness no Rio para encontrar Raull e perguntar se ele teria interesse em colaborar.

A Witness tinha uma pauta ambiciosa. À medida que câmeras profissionais ficam mais baratas e fáceis de usar e jornalistas estrangeiros estão cada vez mais visados dentro de zonas de conflito, o trabalho de “cidadãos repórteres” vem se transformando em uma fonte vital para reportagens internacionais (uma parte significativa das fotografias que hoje saem da Síria, por exemplo, é tirada por amadores). Mas Priscila e seus colegas estavam desenvolvendo uma visão muito mais audaciosa do que este jornalismo cidadão poderia virar. Eles acreditavam que imagens gravadas por moradores dos lugares mais perigosos do mundo poderiam ser usadas não apenas para chamar a atenção para as epidemias de violência, mas também para levar os responsáveis à prisão. Era uma visão nova de como a justiça penal poderia evoluir na era dos smartphones, e os jovens do Papo Reto pareciam parceiros perfeitos.

A sede da Witness fica em Fort Greene, Brooklyn, em um grande edifício de tijolo compartilhado com diversas outras ONGs, incluindo o Museu de Arte Contemporânea da Diáspora Africana. O espaço é decorado com imagens dos filmes para os quais a Witness contribuiu e mapas das áreas onde atua: África, Ásia e Oriente Médio. Quando não estão viajando, os 32 funcionários da Witness trabalham em um escritório de cubículos desordenados, monitorando a chegada de novos vídeos ou falando por Skype com ativistas e jornalistas cidadãos em vários cantos do mundo. Há uma ilha de edição, um pequeno estúdio e um “museu” de dispositivos arcaicos, como filmadoras gigantes e antigas e outras de corpo de alumínio que servem de lembrete do tempo em que a Witness nasceu, ainda na era pré-smartphone.

A Witness foi fundada em 1992 pelo músico e ativista Peter Gabriel junto com o Lawyers Committee for Human Rights e a Fundação Reebok de Direitos Humanos (em 2001, passou a atuar como uma organização independente e sem fins lucrativos). Havia muito tempo que Peter Gabriel estava interessado em criar uma ONG dedicada a vídeos amadores, mas ele não tinha conseguido atrair muito apoio. Isso mudou no dia 3 de março de 1991, quando um encanador chamado George Holliday, de 31 anos, saiu na varanda do seu apartamento em Los Angeles e, munido de sua nova Sony HandyCam, filmou um grupo de policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles (L.A.P.D.) espancando um homem desarmado chamado Rodney King.

Hoje em dia, as imagens de Holliday são às vezes consideradas o primeiro vídeo viral: um clipe que culminou em uma semana de revolta popular, a pior de toda uma geração. Dois policiais do L.A.P.D. foram condenados por violar os direitos humanos de Rodney King e um júri ordenou USD$3,8 milhões para a vítima em reparações pelos danos em uma ação civil contra o município que teve como base o vídeo de Holliday. Para advogados e ativistas, o julgamento foi a prova de que a maneira como determinados atos criminosos eram registrados estava prestes a mudar dramaticamente.

Em seus primeiros anos, a Witness concentrou-se na distribuição de equipamentos de vídeo no exterior e em ensinar as pessoas a usá-los. Parceiros locais filmaram o tráfico de pessoas na indústria do sexo no Leste Europeu, despejos forçados realizados pelo governo na Camboja e violência contra mulheres no Zimbábue. Até 2010, entretanto, as filmadoras caseiras que possibilitaram o surgimento do jornalismo feito por cidadãos haviam perdido espaço para um avanço ainda mais arrebatador: a onipresença quase absoluta de câmeras em telefones celulares.

Filmadoras eram úteis, mas também eram caras, melindrosas e conspícuas. Telefones celulares, por sua vez, eram baratos, resistentes e fáceis de esconder. O que a câmera do celular perdia em fidelidade, compensava com a facilidade de uso e ubiquidade. Ativistas já não precisavam mais correr para casa para buscar suas filmadoras – elas já estavam em seus bolsos. E agora, compartilhar vídeos com uma audiência global era uma questão de cliques graças à explosão das mídias sociais.

Imagens de celulares foram vitais para sustentar os protestos do Movimento Verde Iraniano em 2009: o disparo contra Neda Agha-Soltan, iraniana morta por forças de segurança do estado, foi declarado pela revista Time como “provavelmente a morte mais amplamente testemunhada em toda a história humana”, marcando uma das primeiras vezes em que uma imagem de tal repercussão global foi feita por um telefone. Durante as manifestações da Primavera Árabe em 2010 e 2011, os manifestantes andavam com seus telefones por toda a parte, documentando seus esforços em imagens trêmulas que revelaram-se muito mais viscerais do que qualquer coisa filmada por equipes de reportagem profissionais.

Ainda assim, a Witness ouvia um conjunto recorrente de frustrações quando conversava com manifestantes e advogados de direitos humanos. Ativistas preocupavam-se que, no meio de um dilúvio de vídeos amadores, os clipes mais importantes às vezes eram ignorados. E qual era o ponto de arriscar a vida para gravar provas diretas e inquestionáveis de certas violações se os infratores continuavam livres?

Kelly Matheson, que encabeça o programa de Vídeo Como Prova da Witness, já pensou muito sobre esta pergunta. Criada no estado de Iowa, nos EUA, ela fala com a voz cantada e alegre de uma nativa do centro-oeste americano e um otimismo inabalável, algo raro entre os que trabalham pelos direitos humanos há tanto tempo; é possível ouvir os pontos de exclamação em sua voz. “Minhas raízes estão no Iowa, mas meus pés estão pelo mundo afora”, ela gosta de dizer.

Formada originalmente como advogada, Kelly deixou sua atuação no direito ambiental em 2003 para fazer um mestrado em cinema documentário. Quando a Witness lançou o programa de Vídeo Como Prova, há dois anos, ela começou a procurar precedentes jurídicos nos arquivos legais e encontrou alguns. Em 2013, um advogado da Filadélfia, nos EUA, Larry Krasner, defendeu um homem chamado Askia Sabur que estava sendo acusado de atacar um policial. Krasner encontrou um clipe de celular gravado por uma testemunha mostrando que, na verdade, era Askia que tinha sido atacado. O juiz aceitou o vídeo como prova, e Askia foi absolvido.

Havia também um precedente internacional. Uma década antes disso, a Witness fez parceria com a Ajedi-Ka, uma ONG na República Democrática do Congo, para produzir vídeos de entrevistas feitas com crianças que haviam sido recrutadas por uma milícia local para lutar como soldados. As imagens foram apresentadas ao Tribunal Penal Internacional, que mais tarde condenou o líder da milícia, Thomas Lubanga, por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. “Não pudemos contestar as imagens visuais ou negar o áudio”, afirmou, mais tarde, o juiz que presidia sobre o tribunal. Kelly me contou que o exemplo de Lubanga mostrou que vídeos poderiam ser usados para “suprir lacunas de provas “.

Mas casos como este eram raros. Em geral, vídeos feitos por testemunhas eram tão tremidos que acabavam sendo ambíguos ou careciam dos metadados que ajudariam a confirmar a veracidade das imagens. Em 2012, quatro policiais de São Paulo foram acusados do assassinato de um homem de 25 anos, suspeito de roubar carros. Uma testemunha usou um telefone celular para filmar um dos policiais. Mas os advogados de defesa argumentaram que o tiro foi um disparo acidental e que a vítima estava ferida como resultado de um tiroteio anterior. Os quatro policiais foram absolvidos.

E os instintos de ativistas com câmeras em punhos também poderiam se transformar numa fraqueza. Jornalistas amadores (ou cidadãos) fazem “um trabalho incrível”, afirma Peter Bouckaert, diretor de emergências da ONG Human Rights Watch, “mas frequentemente com uma agenda política, e precisamos filtrar isso”. Há dois anos, viajei a Reyhanli, cidade turca na fronteira ocidental da Síria, para entrevistar ativistas sírios alinhados aos rebeldes da oposição.  Eles me mostraram fotografias e vídeos que continham supostas atrocidades cometidas pelo governo de Bashar al-Assad ou por aliados. Um clipe, de dois homens sendo decapitados com uma motosserra, tinha sido claramente manipulado. Tratava-se, na verdade, de um vídeo velho de um cartel de drogas mexicano, que tinha sido dublado em árabe.

Mesmo os ativistas mais escrupulosos costumam filmar para conseguir o máximo impacto emocional; a intenção é incitar a indignação do público. Já o trabalho de coletar provas requer um olhar mais frio. “Nosso instinto nos diz para filmar a poça de sangue ou o corpo estendido no chão”, explicou Kelly. “Mas não é instintivo se virar e filmar o número do crachá ou a posição de uma torre de comunicações. Se você for um mídiativista, você não vai mostrar ao mundo uma torre de comunicações. Isso não interessa para o noticiário, não vai mobilizar ninguém. Mas do ponto de vista legal, esses detalhes são necessários”.

Raull do Coletivo Papo Reto. Foto por Sebastián Liste/New York Times
Raull do Coletivo Papo Reto. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times

Kelly começou a escrever um conjunto de diretrizes para a coleta de provas com vídeo que poderia ser usado tanto em oficinas ou entregue em formato de cartões postais resumidos para ativistas na linha de frente. Filmar tomadas de perto é importante, escreveu ela, mas tomadas abertas de 360 graus também são necessárias: deve-se filmar o máximo possível dos arredores. Encontre referências geográficas que não podem ser simuladas: montanhas, edifícios familiares, sinais de rua, torres de relógio, sugeriu Kelly. Certifique-se de que a data, horário e dados do GPS da câmera ou telefone estejam corretos. Fale essas informações em voz alta, no começo do vídeo, caso os metadados sejam danificados. Se estiver filmando anonimamente ou de forma clandestina, escreva sua localização e o horário em uma folha de papel, e segure-o diretamente na frente da câmara por no mínimo 10 segundos. E assim que voltar para casa, o ideal é subir o clipe na nuvem com um serviço de armazenamento criptografado.

Kelly reforçou a importância das chamadas provas de ligação (linkage evidence) – números da placa de veículos, padrões de uniformes militares, closes da documentação oficial – que podem ser usadas para posicionar infratores individuais dentro de uma cadeia de comando mais abrangente. Sem provas de ligação, há apenas um indivíduo culpado: um policial ou soldado desonesto que poderia estar agindo por conta própria. Com elas, há o potencial de se responsabilizar toda uma unidade policial ou batalhão do exército.

A primeira oficina de Vídeo Como Prova da Witness ocorreu no Oriente Médio no final de 2013 e teve como objetivo documentar crimes de guerra e repressões governamentais que decorreram da Primavera Árabe. Um ano mais tarde, a entidade decidiu expandir o programa para o Brasil, com um foco na epidemia de violência policial do país.

Como um caso de teste, o Brasil havia muito a oferecer. Desde os tempos da ditadura militar que regeu o país até os anos 80, os brasileiros têm um relacionamento carregado com a força policial nacional. Em algumas esferas da sociedade brasileira, a polícia é venerada. “Tropa de Elite”, filme de 2007 que narra as façanhas de uma força tarefa policial contra o crime organizado, está entre os filmes mais populares da história da América do Sul. Em outros meios, a polícia é vista com medo e desconfiança. A vasta maioria das milhares de pessoas mortas pelas polícias no Brasil a cada ano é formada por jovens e negros, e quase nunca se ouve falar na condenação de policiais.

Mas ao contrário da Síria ou do Egito, por exemplo, o Brasil é uma democracia em funcionamento, com um sistema jurídico por meio do qual esses casos poderiam, teoricamente, ser levados à julgamento. Se a Witness quisesse estabelecer uma base para usar provas em vídeo para levar adiante casos de abusos de direitos humanos, o Rio de Janeiro era o lugar certo.

Em uma tarde em janeiro, eu acompanhei Victor Ribeiro, um videógrafo de 33 anos que serve como o ponto focal da Witness no Brasil, e Patrick Granja, um mídiativista local que eu contratei para me ajudar, a uma manifestação contra o aumento da tarifa de ônibus, o segundo aumento em dois anos. Após o primeiro, em 2013, centenas de milhares de jovens brasileiros foram às ruas protestar em diversas cidades. À medida que as manifestações cresciam, elas passaram a englobar uma longa lista de queixas: corrupção no governo, os crescentes custos da Copa de 2014 e o sentimento cada vez mais predominante de que a maioria dos brasileiros não se beneficiaria com o torneio.

A polícia, desacostumada a lidar com grandes multidões, respondeu com o que foi amplamente visto como força desproporcional, e pelo menos um manifestante foi morto. Victor foi detido e passou dez noites na cadeia sob a acusação de ter ateado fogo a uma cabine policial. Ele foi absolvido, diz ele, após ter produzido um vídeo mostrando que ele nunca tinha nem passado perto do local em questão.

Victor previu que em algum momento a polícia voltaria-se contra a multidão, e ele queria estar a postos quando isso acontecesse. “Hoje à noite, esta manifestação vai passar nas notícias, mas duvido que as grandes emissoras de televisão mostrarão a polícia fazendo qualquer coisa errada”, disse ele. Para isso, tinha sua câmera.

Estávamos em uma praça no centro do Rio, na frente da prefeitura, em meio a cerca de mil manifestantes, anarquistas vestindo balaclava ao lado de estudantes universitários de jeans desbotados e tops cor néon. “Não durarão quando as bombas de gás começarem”, era a previsão de Patrick para os estudantes. Tinha trazido colete anti-estilhaço, máscara de gás e capacete da bicicleta.

O plano era marchar da praça em frente à prefeitura até a estação de trem Central do Brasil e depois fazer o mesmo percurso de volta, um trajeto de vários quilômetros. Os helicópteros, da polícia e da imprensa, pairaram no céu. Mais manifestantes chegaram, assim como mais policiais, alguns deles com uniforme de choque, armaduras, armas e metralhadoras.

O sol desaparecia por trás dos morros quando os primeiros manifestantes chegavam à entrada da estação de trem. Dentro do saguão, a polícia estava esperando. Manifestantes arremessaram garrafas de vidro contra a parede. Fora, na avenida principal, um homem embrulhou a mão numa bandeira brasileira e deu um murro na janela de um carro que passava, para depois desaparecer sob um cassetete policial.

Senti uma mão me puxando por trás; era Victor. Uma bomba de gás lacrimogêneo havia caído na calçada onde eu estava. Uma policial batia em um garoto vestindo uma camiseta de Malcolm X, encostado contra uma parede. Os proprietários de lojas fechavam suas portas e puxavam grades pesadas de metal sobre suas vitrines.

Membros do Coletivo Papo Reto no Alemão. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times
Membros do Coletivo Papo Reto no Alemão. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times

Mais perto da prefeitura, onde a marcha começou, a rua estreitou-se. Alguém ateou fogo a uma pilha de lixo. Um anarquista arremessou uma longa lâmpada fluorescente, que quebrou-se no toldo de um restaurante próximo. A polícia avançou. Havia suficiente gás lacrimogêneo e spray de pimenta no ar para dificultar a respiração. Eu vi Victor se abaixar e entrar em um beco, segurando a câmera no alto.

Um policial do choque deu uma chave-de-pescoço em uma garota, seus pés dando chutes para o alto e, no rosto, uma expressão de pânico: ela não deveria ter mais de 18 anos. Enquanto o policial a levava para longe da multidão, perdeu o equilíbrio e tombou para trás, a garota caindo sobre ele. Os manifestantes pressionavam, e a polícia os empurrava para trás. Victor enfiou sua lente na confusão. Um dos policiais, escondido atrás de uma armadura plástica do choque, apontou sua arma para o peito de um manifestante. “Corram!” – alguém gritou no hora em que granadas espalhavam-se ao nosso redor. Patrick fez uma cara de dor; eu vi que tinha sangue em sua coxa.

A gente se recompôs vinte minutos depois em um restaurante da praça. A câmera do Victor havia sido quebrada pela polícia, mas a lente e o cartão de memória pareciam intactos. Patrick tinha sido atingido com uma pelota de uma das granadas. Ambos perguntaram se poderíamos encerrar o expediente. Estava ficando tarde e queriam postar o vídeo na internet até a manhã seguinte.

Estes confrontos de rua, ocorrendo em espaços públicos bem movimentados e envolvendo jovens manifestantes que eram relativamente afluentes e entendidos de mídias sociais, eram, de certa maneira, fáceis para a Witness registrar. Muito mais difícil seria recolher estes tipos de provas em vídeo da violência dentro das favelas, onde a polícia opera com impunidade quase absoluta, pessoas de fora não são bem-vindas e o simples ato de segurar um smartphone pode transformar alguém em um alvo. “É muito difícil para alguém que não é morador subir uma favela e começar a tirar fotos”, explicou Victor. “Basicamente impossível”. Era isso que fazia um grupo como Papo Reto tão importante.

As negociações entre a Witness e o coletivo moviam-se de maneira delicada e lenta. “Nas favelas, há uma desconfiança geral contra ONGs”, explicou Priscila Neri, “porque frequentemente uma entidade entra, leva o crédito pelo trabalho e desaparece outra vez”. Finalmente, no final do ano passado, Victor conseguiu marcar uma reunião em um centro comunitário do Complexo do Alemão. Priscila e Kelly estavam à disposição, junto com Victor e quatro membros do Papo Reto. Por quase duas horas, os representantes da Witness perguntaram aos membros do coletivo sobre as plataformas digitais que usavam, as precauções de segurança que tomavam e o tipo de equipamento que possuíam. A preocupação principal de Priscila e Kelly era o armazenamento seguro das informações. Muito do material coletado pelo Papo Reto não era criptografado nem arquivado de forma alguma, apenas compartilhado no Facebook e WhatsApp, onde poderia acidentalmente ser apagado ou perdido.

E embora o coletivo fizesse um trabalho extraordinário na coleta de vídeos filmados depois de tiroteios, até então pouco tinha sido feito para organizá-los. “Uma de nossas primeiras sugestões foi criar um banco de dados”, explicou Priscila, “para mostrar os padrões mais amplos da violência policial. Hoje temos várias estrelas no céu, mas precisamos da constelação”.

Membros do Coletivo Papo Reto na sede. Foto por Sebastián Liste/New York Times
Membros do Coletivo Papo Reto na sede. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times

Um mês após esta reunião inicial, fui convidado por Victor a participar de uma oficina de Vídeo Como Prova com Papo Reto. Mas poucas horas antes de nossa chegada ao Alemão, o encontro foi desmarcado. Um membro de alto escalão do Comando Vermelho havia sido morto em um tiroteio em outra favela, e um luto de dois dias havia sido decretado, quando pessoas de fora não entrariam no Alemão.

Dois dias depois, tentamos outra vez. Patrick dirigia seu carro, um Chevy subcompacto com portas amassadas e o tubo do exaustor caído.  Atravessamos a periferia do Rio e passamos por terras ressecadas e sulcadas que eram os únicos restos visíveis de um favela que havia sido demolida pelo governo na preparação para a Copa do Mundo do ano passado. O brilho do centro de cidade recuava-se atrás de nós.

Chegamos ao Alemão por volta das 10h. Perto das praias do Rio, havia uma brisa, mas quanto mais entrávamos para dentro o ar ficava mais túrgido e denso; era impossível não suar, mesmo parado de pé. Acima, gôndolas rodavam em um circuito perpétuo, bondes fantasmas sem ninguém dentro. O governo da cidade havia construído cinco estações de teleférico nas favelas alguns anos antes, na esperança de atrair turistas. Mas a violência perpétua afastou visitantes, e os moradores da vizinhança preferem usar moto-táxis, que são mais baratos.

Patrick estacionou o carro e subimos uma pequena ladeira. A polícia estava nas ruas, como de costume no Alemão, com rifles semiautomáticos em posição de disparo e a mira apontada para o trânsito de pedestres. Encontramos uma lanchonete e nos sentamos em tamboretes plásticos em torno de uma mesa redonda. Eu reconheci a área de um clipe do Papo Reto que mostrava uma fileira de policiais disparando armas contra uma multidão de favelados.

Poucos minutos depois, Lana e Raull chegaram. Estavam munidos de seus dispositivos eletrônicos – um tablet para Lana, um tablet e um smartphone para Raull – e seguravam os aparelhos perto do peito, como se eles pudessem oferecer alguma proteção. Tinham passado, disse Raull, por “uns dias ruins”. A polícia havia parado um membro do Papo Reto e rasgado sua carteira de imprensa. Outro tinha encontrado seu apartamento revirado de cabeça para baixo.

Raull é troncudo e tem os ombros largos, laquê nos cabelos pretos, cavanhaque perfeitamente mantido e uma grandiloquência treinada que o faz parecer muito mais alto do que de fato é. Tem a palavra havaiana “aloha” tatuada no pescoço e “acreditar” na parte interna do antebraço direito. Usava um boné de beisebol com uma folha de maconha estampada na coroa. (“Mais para gangster rapper do que para repórter”, é como um de seus amigos o descreve).

Priscila Neri, em seu escritório da WITNESS em Nova York. Foto por Devin Yalkin/New York Times. Clique para ver o slideshow: http://nyti.ms/1AS4FJz
Priscila Neri, em seu escritório da WITNESS em Nova York. Foto por Devin Yalkin/New York Times. Clique para ver o slideshow: http://nyti.ms/1AS4FJz

Perguntei ao Raull se ele se preocupava por estar muito exposto. Afinal de contas, ele usava seu nome real no Instagram e Facebook e publicava frequentemente vídeos de outros favelados em sua conta, a fim de proteger a segurança das pessoas da sua rede. Balançou a cabeça negativamente. “Exposição, estar no olho público, é também um tipo de segurança”, disse. Apesar disso, explicou, o que mais queria aprender com a Witness eram “protocolos apropriados de segurança”. Em manifestações, a polícia normalmente apontava suas armas para ele primeiro. Não podia deixar de sentir que tinha se tornado em um homem marcado.

Outros ativistas de direitos humanos com quem eu falei se preocupavam com o fato de que jornalistas cidadãos como Raull podem nem se dar conta de todos os riscos que correm. “Se o trabalho for interceptado”, Peter Bouckaert explica, “há um grande perigo de pessoas serem detidas, presas, mortas. E eu acho que Witness às vezes subestima a sofisticação das ferramentas de vigilância disponíveis aos governos em algumas destas áreas”. Ele lembrou de ter visitado o gabinete de Abdullah al-Senussi, temido chefe do serviço secreto da Líbia, logo depois da derrubada do governo de Qaddafi, e de ficar maravilhado com o equipamento à disposição e os extensivos dossiês de ativistas, repletos com registros das redes sociais e dados de e-mail.

Diversos grupos já tentaram resolver o problema da vigilância de uma perspectiva tecnológica. Peter Bouckaert está desenvolvendo um cofre digital para preservação de vídeos. Brian Laning e Bonnie Freudinger, cientistas da universidade de Wisconsin, ganharam recentemente um financiamento da agência internacional de desenvolvimento dos Estados Unidos para trabalhar no International Evidence Locker, um aplicativo gratuito para smartphones. Segundo Freudinger, imagens coletadas pelo aplicativo são automaticamente gravadas com a posição, data e horário que são criptografadas e enviadas a dois servidores protegidos e separados. Imagens também podem ser submetidas anonimamente, e o app é fácil de ser deletado rapidamente de um telefone em uma emergência. A Witness também está desenvolvendo seu próprio software.

Com a orientação da Witness, Raull e seus colegas começaram a tomar mais precauções em seu próprio trabalho. Pararam de publicar vídeos que revelavam o local de onde a filmagem foi feita – por meio do qual a polícia poderia identificar a residência da pessoa que filmou, por exemplo. Tinham começado trabalhar em grupos. O próximo passo seria aprender a criptografar arquivos.

As oficinas tomariam tempo, disse Raull, mas valeriam a pena. “Porque o efeito se multiplica”, explicou. “À medida em que as pessoas descobrem mais o que estamos fazendo, elas nos enviam mais vídeos, e nós mostramos mais da verdade”. Ele mencionou um plano que discutiu com Victor para alcançar os jovens que dirigem moto-táxis no Alemão. Os moto-taxistas cobrem vastas áreas das favelas diariamente, e todos carregaram smartphones.

Lana contou que sua mãe pensou que ela era “louca” de se associar com o Papo Reto, mas ela disse à mãe que estava orgulhosa do que fazia. “Mais e mais vídeos aparecem todos os dias”, disse. “É um processo. Mas é algo bom, e quanto mais provas a gente conseguir produzir, mais a gente pode mostrar ao mundo lá fora o que está acontecendo aqui, e melhor a situação pode ficar. Podemos sonhar”.

Policiais patrulham a Vila Cruzeiro. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times
Policiais patrulham a Vila Cruzeiro. Foto por Sebastián Liste/Noor Images/The New York Times

Não é um sonho louco. No ano passado, Claudia Silva Ferreira, uma favelada de 38 anos, foi alvejada na garganta e no peito por policiais militares durante uma operação na favela carioca Morro da Congonha e jogada, inconsciente, no portamala de uma viatura. Na estrada, a porta traseira abriu e o corpo de Cláudia caiu para fora; ela foi arrastada por cerca de 300 metros e  declarada morta logo em seguida em um hospital. Outro motorista filmou o incidente com uma câmera de celular e enviou o vídeo ao jornal local Extra. A presidente Dilma Rousseff foi obrigada a denunciar as ações da polícia, e os três oficiais envolvidos foram presos. Eles aguardam julgamento.

Enquanto isso, o Tribunal Penal Internacional está conduzindo investigações em diversas regiões onde vídeos produzidos por cidadãos podem trazer provas cruciais. Na Nigéria, os procuradores estão analisando alegações de que o grupo militante Boko Haram teria cometido crimes contra a humanidade. Horas de filmagens feitas com celulares mostrando os movimentos do grupo já foram publicadas no YouTube. E em julho, a corte manteve a decisão de julgar al-Senussi na Líbia por acusações de assassinato e seu papel de repressão dos protestos anti-Qaddafi. Segundo Peter, imagens feitas por ativistas nos protestos provavelmente seriam apresentadas pela acusação como provas. Da mesma maneira, se Assad cair na Síria e for julgado, a corte terá centenas de horas de vídeos para considerar.

Duas semanas depois que voltei aos Estados Unidos, recebi um e-mail de Victor. A polícia e os traficantes estavam novamente em guerra nos becos do Complexo do Alemão, e os residentes das favelas passavam boa parte do tempo dentro de casa. No Facebook, vi o trabalho mais recente postado pelo Papo Reto. Em seus vídeos, bombas raiavam pelo céu à noite, e os pelotões de polícias armados e blindados marcharam nas ruas. Uma última fotografia mostrava um menino em uma cama de hospital. Com curativos cobrindo seu torso, a legenda explicava que ele tinha sido vítima do fogo cruzado; levou um tiro, mas sobreviveu. “Está recuperando”, dizia a postagem. “Tudo vai ficar bem!”.

Tradução graças a Paula Góes do Global Voices.