Temporal Aflige Luta Agroecológica no Morro da Providência, Evidenciando a Falta de Políticas Ambientais e Desassistência a Soluções de Favela para Crise Climática

'As árvores demandam poda, manutenção... [mas] salvam vidas e precisam estar presentes."

Projeto Providência Agroecológica vista do Túnel João Ricardo. Foto: Amanda Baroni
Providência Agroecológica vista do Túnel João Ricardo. Foto: Amanda Baroni

O forte temporal que atingiu a cidade do Rio de Janeiro no dia 12 de março de 2025 causou alagamentos, quedas de árvores, dentre outros impactos no Grande Rio. Um dos territórios afetados foi a região mais arborizada do Morro da Providência, situada acima do Túnel João Ricardo no Centro da cidade. A tempestade atingiu moradias e o projeto de educação socioambiental Providência Agroecológica.

A casa de Jhony Rony, morador do Morro da Providência, teve seu telhado atingido por uma árvore.

“Foi muito rápido. A gente começou a ver uns raios, veio um vento, depois veio um barulho. Parecia que a casa ia cair. A gente não imaginava que ia ser isso aqui. Uma dia antes, o cara tirou alguns galhos da árvore pra mim, que ele considerou mais perigoso. Graças a Deus que ele podou. Não houve acidente na casa, foram mais galhos pequenos que quebraram as telhas. Mas quando saí de casa, para o lado de fora, onde é a minha área, fiquei chocado. Falei ‘caramba, olha a grossura desses galhos!’ Eram enormes.” — Jhony Rony

Entrada da casa de Jhonny Rony com árvores que caíram. Foto: Amanda Baroni
Entrada da casa de Jhonny Rony com árvores que caíram. Foto: Amanda Baroni

Maelene Silva é moradora e trabalha na Providência Agroecológica. Apesar de não ter sofrido danos pela tempestade, seus vizinhos não tiveram a mesma sorte.

“Quando começou tudo, eu estava em casa. Eu vi as árvores quebrando. Era um vento pra lá e pra cá, a gente achou até que a casa ia voar. Aí, eu desci pra cá pro projeto. Quando eu desci, de noite mesmo, ficamos sem luz. Já estava tudo destruído. Foi muita coisa mesmo. Quebrou a casa do vizinho. Quebrou a telha da cozinha dele. Eu estava fazendo janta, foi muito de repente. Na mesma hora, ficamos sem luz, que só voltou dois dias depois. E hoje, dia 14 de março, ainda estamos sem internet. Também queimou o ventilador.” — Maelene Silva

Segundo Luciana Santana, outra moradora que teve o telhado quebrado, o temporal foi rápido, mas forte o suficiente para que pesados galhos atingissem as telhas de sua casa.

“Essa chuva começou assim, ventava bem pouquinho, ventava… Meu filho estava sentado aqui, e aí falei: ‘Vai pegar a roupa ali na corda’. Aí ele: ‘Não, mãe, não vai chover não’. Aí eu falei ‘Homem, quer saber? Vou tirar a roupa’. Aí assim que eu tirei, veio aquele vento derrubando tudo: as calhas; um galho grandão ali, que quebrou as telhas. Parecia que o mundo vinha se acabando. Sorte minha foi que as outras árvores vieram por cima da casa e caíram lá embaixo, na rua. A outra quase caiu aqui em cima e quebrou a telha. E a gente fica morrendo de medo dessas chuvas, né? É a primeira vez [que isso acontece]. Vinha vento todos os anos, mas as árvores nunca caíam. Mas eu sempre fico: ‘tem que podar pelo menos os galhos, né?’ Meu filho sempre me diz: ‘Mãe, vai lá pra minha casa em Cordovil’, mas eu sempre digo: ‘não, já tô acostumada aqui. Não vou sair daqui. Não vou vender minha casa a preço de banana. Eu já estou acostumada a ficar aqui sozinha, sozinha eu e Deus.’ Gosto ali da ONG [Providência Agroecológica], do mercado que é pertinho né? De ir na casa da minha irmã, que é perto. Tem vezes que só não é muito fresco por causa do bafo do túnel. Mas eu gosto [de morar aqui].” — Luciana Santana

As árvores derrubadas pelo último temporal no Rio de Janeiro quebraram o tanque do quintal de Luciana Santana. Foto: Amanda Baroni
As árvores derrubadas pelo último temporal no Rio de Janeiro quebraram o tanque do quintal de Luciana Santana. Foto: Amanda Baroni

Do Lixão à Revitalização: Origens da Agrofloresta Urbana da Providência

Uma das fundadoras da Providência Agroecológica, que teve início em 2013, Alessandra Roque, conta que o local, na época, era um lixão. Ela começou a frequentar o espaço para recolher terra para as plantas de sua casa. No entanto, ela lembra que, enquanto recolhia terra, também retirava parte do lixo acumulado. Com o passar do tempo, acabou reflorestando o local, que se tornou sede de atividades socioambientais da comunidade, culminando na fundação da Providência Agroecológica. Coordenado por Lorena Portela e Alessandra Roque, o projeto oferece atividades voltadas à educação socioambiental da comunidade.

Projeto Providência Agroecológica antes do temporal. Foto: Divulgação
Espaço da Providência Agroecológica antes do temporal. Foto: Divulgação

Apesar de só ter durado cerca de dez minutos, a tempestade do dia 12 de março destruiu parte do telhado da sala onde a Providência Agroecológica abriga as aulas do pré-vestibular comunitário Machado de Assis, além de ter quebrado galhos de árvores cultivadas no espaço. Alessandra, mateira e raízeira, como prefere ser chamada, explica que a causa dos alagamentos, quedas de árvores e outros problemas deixados pelo temporal reside na falta de um planejamento de cidade sustentável, que leve em conta o papel da natureza para a segurança urbana e sua importância para o bem estar social.

Ponto de vista do Espaço do projeto Providência Agroecológica para a Rua Rivadávia Corrêa antes do temporal. Foto: Amanda Baroni
Ponto de vista do Espaço da Providência Agroecológica para a Rua Rivadávia Corrêa antes do temporal. Foto: Divulgação
Ponto de vista do Espaço do projeto Providência Agroecológica para a Rua Rivadávia Corrêa depois do temporal. Foto: Amanda Baroni
Ponto de vista do espaço da Providência Agroecológica para a Rua Rivadávia Corrêa depois do temporal. Foto: Amanda Baroni

Segundo ela, o discurso da grande mídia responsabiliza a natureza pelos impactos negativos de temporais. Ao tratar a natureza como um “problema”, essas narrativas encorajam a remoção de árvores na favela e no asfalto, o que não representa uma solução adequada.

Quanto menos árvores, ela afirma, mais quente e desequilibrado fica o ambiente. Segundo a mateira, árvores funcionam como pára-raios em tempestades, suportam ventos fortes, refrescam ambientes, seguram solos através de suas raízes. Sobretudo em áreas de declive, como o Morro da Providência, árvores evitam deslizamentos. Alessandra também explica que a remoção arbitrária de árvores pode contribuir para a insegurança urbana frente às mudanças climáticas.

“Existem vários fatores [que influenciam a fragilidade desta região da Providência]. Aqui era um lixão, então, o solo não é muito estável. A gente limpou e ainda estamos reflorestando, mas ainda não deu tempo de ter uma compactação do solo tão grande. O fato de ser inclinado vai levando [parte do solo]. Mas em outros lugares, mesmo na Zona Sul, ou que não são morro, as árvores também caíram. E isso também é [importante] de ser falado… as árvores em volta são a proteção da nossa casa. Quando as árvores caem, você pode ver que as construções ficaram no lugar. Tem esse lado aqui que não tem árvores: [ali] o telhado voou. Os outros vizinhos que não têm árvores, eles tiveram danos nas suas casas… a gente não entende que elas se sacrificaram para nossa proteção, entende? Tem todo um olhar, uma outra forma de ver: você vê que caíram todas essas árvores, que são grandes, e elas foram muito generosas com a gente. Se essas árvores não tivessem caído, não tivessem feito essa barreira de proteção, quantas [outras] casas teriam desmoronado? Quantas pessoas teriam morrido? Sabe?” — Alessandra Roque

Para Alessandra, os danos causados por este temporal revelam a problemática falta de políticas ambientais voltadas à mitigação e à adaptação urbana, sobretudo políticas direcionadas às favelas. Essa lacuna resulta na falta de estrutura para responder à severidade destes eventos.

“Você vem aqui e vê uma agrofloresta. Mesmo depois do temporal não existe uma política para a gente fazer uma agrofloresta dentro de um meio urbano. Quando a gente vai participar de um edital, a gente tem que inscrever a Providência Agroecológica em editais, por exemplo, de oficinas com ervas, editais para fazer xarope… Claro que um edital assim ajuda a gente a manter nossas atividades, mas nos impossibilita de ter um fundo para fazer todas essas podas, fazer obras de contenção. A gente não consegue ter uma política pública que atenda o que a gente está fazendo, mesmo que a gente esteja plantando, mesmo com todas essas árvores já aqui. Para o Estado, é como se elas não estivessem.” — Alessandra Roque

Consequentemente, após a tragédia do dia 12, a Providência Agroecológica lançou uma vaquinha para gerar os recursos necessários para realizar os cortes e retirar árvores danificadas que impedem o funcionamento do trabalho e geram risco para as atividades e os moradores.

Ponto de vista do Espaço do projeto Providência Agroecológica para a Rua Rivadávia Corrêa depois da poda. Foto: Amanda Baroni
Ponto de vista do espaço da Providência Agroecológica para a Rua Rivadávia Corrêa depois da poda pós-temporal. Foto: Amanda Baroni

No dia 12 de março, o Centro de Operações Rio (COR) registrou elevados índices de precipitação, quedas de árvores e de estruturas em bairros da Zona Sul e na região central, como na Avenida Presidente Vargas. Não houve, entretanto, nenhum registro oficial sobre as consequências do temporal deste dia no Morro da Providência.

O Projeto Providência Agroecológica e Sua Importância para Soluções Ambientais na Providência

Apesar da negligência do poder público em relação aos impactos da crise climática nas favelas, bem como a falta de suporte e visibilidade às soluções locais para combater tais impactos, projetos como a Providência Agroecológica se consolidam de forma adaptativa e autônoma. Lá, são oferecidas aulas de educação socioambiental para crianças da Providência e atividades como oficinas de bordado, de costura, de yoga e o pré-vestibular comunitário.

As fortes chuvas do dia 12/03 arrancaram parte do telhado da sala onde ocorrem as aulas de pré-vestibular do Providência Agroecológica. Foto: Amanda Baroni
As fortes chuvas do dia 12/03 arrancaram parte do telhado da sala onde ocorrem as aulas de pré-vestibular da Providência Agroecológica. Foto: Amanda Baroni

De acordo com Lorena, o projeto também educa sobre a importância das árvores e da preservação associada à produção de alimentos em um contexto de eventos climáticos cada vez mais imprevisíveis e sobre a necessidade de uma educação ambiental que promova a harmonia entre o meio ambiente e a cidade.

“Quando chove, quando tem qualquer vento mais extremo ou quando, como agora, que ficou muito tempo sem chover e choveu ‘tudo de uma vez’, as árvores demandam poda, demandam manutenção. Então, com a falta desses serviços públicos, muitas árvores não resistiram e caíram galhos. Acho que ainda sim, é melhor com as árvores do que sem. A gente sempre fala isso: parece que a árvore é o problema, mas não é. As raízes ajudam a segurar o solo em si. Podia ter sido pior, podia ter tido um deslizamento (se não fosse pelas árvores). Elas recebem a maior carga da chuva e de vento, então as casas ficam mais protegidas. Ainda melhor com as árvores. No Rio, boa parte das favelas está nos morros, então a árvore vai ter esse papel de ajudar no sistema de drenagem da água. Ela recebe o impacto de chuva e impede que isso vá diretamente para o solo. Suas raízes conseguem fazer com que a água penetre no solo lentamente, o que evita enchentes, deslizamentos e faz um trabalho imenso de contenção. As árvores salvam vidas e precisam estar presentes. Tem um trabalho do diálogo ali, diário, de tentar cuidar um pouco disso, mas, mesmo assim, a galera às vezes arranca as árvores mesmo e não tem o que fazer.” — Lorena Portela

Quanto às políticas públicas, Lorena conclui que o atual desafio climático impõe a governantes um posicionamento mais responsável, que proponham e executem melhorias sociais para a posteridade, ao invés de projetos paliativos ou sem continuidade. A negligência do Estado deixa vulneráveis as populações que mais precisam construir infraestruturas de resiliência climática. 

“No contexto de favela, a partir do trabalho que a gente já faz há anos, tem uma dimensão que é conseguir associar a política de proteção ambiental à moradia digna e às condições básicas de vida. Principalmente em um morro, que é um território muito adensado, com pouco espaço, e onde, estruturalmente, falta um sistema de saneamento, de coleta de resíduos sólidos, de esgotamento sanitário, onde a água não chega bem, que tá longe de feiras boas, com alimentos frescos, sem veneno… é difícil. Então, não dá pra pensar em política ambiental desconectada de outras políticas de proteção social, de acesso à saúde… Isso realmente demanda uma ação entre instâncias do governo e um conhecimento muito profundo do território. É conseguir desenvolver processos de quem já tem protagonismo no território, porque quem é de lá vai saber pensar as soluções. É muito mais fácil ir com ‘kits’, com ideias prontas, algo que vai gerar número, que mostra rapidamente que vai ter resultado. No entanto, os processos que causam mudanças estruturais são mais demorados, passam por fortalecer iniciativas que já acontecem [nas favelas], como a nossa e muitas outras ligadas ao meio ambiente e à agricultura no Rio de Janeiro. Acho que políticas que fortaleçam essas atividades são o melhor caminho.” — Lorena Portela

Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é formada em jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.

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