‘É um Direito! Sem Água, A Gente Vai Morrer’: Ato do Dia Mundial da Água Reivindica Direito à Água nas Favelas do Grande Rio

Manifestantes exibem faixas durante ato do Dia Mundial da Água em frente à concessionária Águas do Rio, no Centro do Rio de Janeiro. Foto: Amanda Baroni
Manifestantes exibem faixas durante ato do Dia Mundial da Água em frente à concessionária Águas do Rio, no Centro do Rio de Janeiro. Foto: Amanda Baroni

No dia 20 de março, às vésperas do Dia Mundial da Água movimentos populares e membros da sociedade civil se reuniram em frente à concessionária Águas do Rio para reivindicar o direito à água para favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro. A concessionária é responsável, desde 2021, pelos serviços de água e esgoto da capital e de outros 26 municípios do estado. Segundo moradores de diferentes comunidades do Grande Rio, a universalização e a melhoria destes serviços em favelas estão longe de se concretizarem.

Luiza Helena, estudante de Serviço Social na UERJ e moradora do Complexo do Chapadão, desabafa que, mesmo pagando R$60-R$70 mensais pelo serviço da concessionária, chega a ficar 20 dias sem água, fato que já a impediu de ir para a faculdade.

“O fato de eles [Águas do Rio] falarem que dão um bom serviço à população é mentira. Eu queria ver qual é o contrato da Águas do Rio [com a] comunidade… Você dá o endereço pra eles,… o CPF, email, e [isso serve como] o acordo de que você [teve acesso] aos seus direitos? Onde [está] o contrato do consumidor [da favela] com a empresa? Não existe. Então eu acredito que eles têm que melhorar muita coisa, sabe? A população não tá pedindo um favor, é um direito. Saneamento, a água, que traz vida. Sem água, a gente vai morrer. Como é que vive sem água? Quando você tá na sua casa, todas as coisas que você vai fazer têm que ter água. Não existe fazer nada sem água.” — Luiza Helena

A mobilização ocorreu dois dias antes do Dia Mundial da Água, data instituída pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, O ato foi realizado pela Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde e contou com outros entes parceiros como Museu da Maré, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Sindicato dos Trabalhadores em Serviços de Água e Esgoto do Estado do Rio de Janeiro (Sindágua/RJ), Coalizão Pelo Clima RJ. Estiveram presentes os parlamentares Yuri Moura e Dani Monteiro e os gabinetes de Tarcísio Motta, Dani BalbiRenata Souza e Thais Ferreira, além de moradores das comunidades de Vigário Geral, Complexo da Maré e Complexo do Chapadão. Nenhum porta-voz da Águas do Rio se pronunciou durante a mobilização.

No ato do Dia Mundial da Água, em frente a Águas do Rio, manifestantes denunciam a privatização das águas. Foto: Amanda Baroni
No ato do Dia Mundial da Água, em frente a Águas do Rio, manifestantes denunciam a privatização das águas. Foto: Amanda Baroni

‘Águas Para a Vida, Não Para a Morte’

A privatização do serviço de distribuição e tratamento de água e esgoto no Rio de Janeiro ocorreu em abril de 2021, se aproveitando da pandemia para se concretizar, de encontro com a tendência mundial de reestatização e apesar de consensos populares e profissionais contra. Nesta data, a empresa Águas do Rio venceu a licitação da CEDAE, arrematando a gestão desses serviços para 10 milhões de consumidores.

Em 2023, de acordo com o professor de Ciência Política da UNIRIO e da PUC-Rio, João Roberto Lopes Pinto, a empresa obteve lucro líquido de R$614 milhões. Este valor equivale a seis vezes o montante previsto para o conjunto de favelas pelo Plano de Investimento em Áreas Irregulares Não Urbanizadas (AINUs).

Ainda em 2023, o Procon-RJ registrou, segundo o professor, aumento de 564% em reclamações contra a concessionária em relação ao ano de 2022, totalizando 26.920 processos reivindicando o direito do consumidor. Aumentos abusivos na tarifa, cortes de fornecimento de água, cobranças indevidas e falta de acesso aos serviços são alguns dos motivos que levaram cidadãos fluminenses a processarem a Águas do Rio.

Em 2022, o mapeamento de Justiça Hídrica e Energética nas Favelas, realizado pela Rede Favela Sustentável, revelou a falta de acesso e qualidade do serviço da concessionária.

Outro evento de mobilização popular pelo direito à água ocorreu também essa semana, em 19 de março, em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O ato pressionou o poder público a aprovar a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Água e da CEDAE Pública, já que, desde dezembro de 2024, o governo estadual demonstra interesse em abrir o capital da CEDAE. Caso isso se concretize, tal medida concentrará toda a gestão do serviço, do tratamento à distribuição, nas mãos da Águas do Rio e de outras concessionárias, como a Iguá.

“ESG” para quem?

Roberto Carlos de Oliveira, membro do MAB e morador de Vaz Lobo, bairro da Zona Norte do Rio, explica que o descaso com o fornecimento de água e saneamento na cidade é de longa data, mas, segundo ele, piorou depois da privatização. Ele alerta que a Natureza já vem cobrando por essa falta de compromisso. No entanto, ele reforça que as mudanças climáticas têm afetado desproporcionalmente os mais pobres e as favelas.

“O Rio de Janeiro segundo vários estudos, é o estado que mais vai sentir [as mudanças climáticas] nos próximos anos. Aqui, nós temos uma região com alta densidade populacional, muitas vezes em áreas abandonadas pelo Estado, em beiras de rios… Muitos rios submersos. A história da edificação do Rio de Janeiro é uma história de apagamento dos rios, cobrir os rios com asfalto… Então, nós estamos diante de uma grande bomba-relógio no Rio, essa é a verdade. A questão da água é central nisso porque não se enfrenta alagamentos, deslizamentos e enchentes sem o saneamento básico. Nosso saneamento foi construído durante décadas, séculos, [e] foi entregue a uma empresa privada que não construiu nada [e] a partir da privatização, tem se apropriado, tem sucateado. Só no ano passado cerca de 20 adutoras, que fazem o transporte de água, romperam no Rio de Janeiro, capital e Baixada [Fluminense]. Inclusive, uma delas deixou uma vítima fatal em Rocha Miranda [Marilene Rodrigues, 79 anos na época]. [Durante a madrugada,] a adutora [da Águas do Rio] explodiu, derrubou a casa com a vítima, que dormia dentro, e ela morreu.” — Roberto Carlos de Oliveira

Para Caroline Rodrigues, professora de Serviço Social da UERJ e moradora de Botafogo, a empresa se contradiz quando alega defender os princípios do ESG—sigla do inglês para os princípios de preocupação Ambientais, Sociais e de Governança assinados por algumas corporações para designar suas boas práticas. Segundo a professora, os resultados da Águas do Rio quanto à qualidade do serviço ou à sua universalização não fazem jus à sigla.

“Não há essa conexão entre saneamento, água e clima. Para eles, é um serviço urbano para atender quem pode pagar. Essa conexão é muito mais a gente [movimentos populares] que vem fazendo, apesar deles terem um discurso ESG. Hoje, a gente tem notícia de que tinha morador com acesso à água por meio de fontes alternativas e que a empresa tem obstaculizado esse uso ou impedido [acesso à cachoeiras e a poços por quem tem usado, inclusive de forma sustentável, por gerações]. Isso é só um exemplo de que esse modelo privatista aprofunda ainda mais as privações e a precariedade do uso da água.” — Caroline Rodrigues

Cida Rodrigues, do projeto socioambiental Ecoa Maré e do Museu da Maré, explica que a união dos movimentos é extremamente necessária para superar a negação do direito à água e prevenir que ela continue a assolar a população favelada e periférica no futuro.

“Sem água dentro de casa, a pessoa tem que pegar seu balde, sua vasilha, tem que juntar água dentro de casa. É um desrespeito total com a população… E aí, a gente entende que é somando, é estando junto com quem entende essa necessidade,… estar dentro [dessas mobilizações, que podemos avançar]. Tem que estar junto. Sozinho a gente não vai conseguir. Como a água é uma questão para todo mundo, todo mundo tem que estar junto.” — Cida Rodrigues

Mobilização popular denuncia água como mercadoria e reivindica água como bem comum. Foto: Amanda Baroni
Mobilização popular denuncia água como mercadoria e reivindica água como bem comum. Foto: Amanda Baroni

Embora a legislação brasileira promova e garanta o acesso universal à água, a luta pelo cumprimento destas leis ainda percorrerá um longo caminho. O ex-morador do Morro dos Macacos e membro da Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, Bruno França, defende que o direito à água precisa ser assegurado como um bem público.

“A água é um bem que precisa ser garantido enquanto bem público para que, daqui a pouco, isso não esteja sob controle total das empresas e que só consiga acessar água quem tem recursos. Essa relação entre crise hídrica e climática é muito forte e precisa ser cada vez mais reforçada. É nesse sentido que a gente defende a água como bem comum. Ela não pode estar subordinada a uma empresa. Ela não pode ser um gerador de lucro, ela precisa ser do povo.” — Bruno França

Perante a lei, o direito à água é universal e tem como fim reconhecido o bem comum. É fundamental para a saúde, na alimentação e na promoção do bem-estar social. Em permanente vigilância pelo cumprimento deste direito, a mobilização popular continuará lutando para que Lata d’água na cabeça—frase do famoso samba interpretado pela cantora Marlene, em 1952—seja apenas uma obra musical e nunca mais uma realidade das favelas e periferias do Rio de Janeiro.

Leis que Garantem ou Abordam o Direito à Água:

  • Lei 14.898/2024 que institui diretrizes para Tarifa Social de Água e Esgoto em âmbito nacional (conta de universalização de acesso à água) e prioriza o acesso à água potável para famílias de baixa renda.
  • Decreto nº 7.535, que cria o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Água, também conhecido como “Água para Todos”.
  • Lei nº 9.433/1997, que trata sobre a Política Nacional dos Recursos Hídricos, um dos instrumentos que orienta a gestão das águas no Brasil, que trata de promover sua disponibilidade, qualidade e gerenciar sua demanda.
Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é formada em jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.

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