Ansiedade Climática nas Favelas É Eco do Racismo Ambiental #OQueDizemAsRedes [REFERÊNCIA]

Dona Norma de Morais, 70, uma idosa aposentada moradora de Jardim América, na Zona Norte do Rio, desolada, senta no sofá de casa e observa, sem acreditar, a destruição que vê em sua sala, em janeiro de 2024. Aquivo pessoal
Dona Norma de Morais, 70, uma idosa aposentada moradora de Jardim América, na Zona Norte do Rio, desolada, senta no sofá de casa e observa, sem acreditar, a destruição que vê em sua sala, em janeiro de 2024. Arquivo pessoal

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Centro Behner Stiefel de Estudos BrasileirosEsta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses. Esta matéria também faz parte da série #OQueDizemAsRedes que traz pontos de vista publicados nas redes sociais, de moradores e ativistas de favela sobre eventos e temas que surgem na sociedade.

Ansiedade Climática Vira Termo Comum

O termômetro, hoje, sobe antes mesmo da primavera dar as caras. Antes montadas só no verão, piscinas de plástico viram presença certa nos quintais, lages e becos das favelas e periferias cada vez mais cedo. O banho de mangueira, chuveirão, em caixas d’água ou em córregos, nem sempre limpos, vira brincadeira das crianças, que passam o dia se refrescando. Ao fim da tarde, a vizinhança coloca as cadeiras nos portões para pegar um ar fresco e conversar. Cenas assim são parte do repertório cotidiano, afetivo e familiar de muitos de nós, nascidos nas favelas e periferias cariocas em dias de calor.

Apesar das estratégias populares criadas para enfrentar o calor escaldante, essa época carrega consigo também muita preocupação, fazendo as pessoas relembrarem e reviverem traumas de diversas enchentes anteriores, que já devastaram os territórios em verões passados. Estes são fenômenos bastante comuns nessa época do ano. Contudo, têm se agravado em frequência e intensidade com a crônica negligência do Estado e as mudanças climáticas.

As abordagens frente a esses eventos têm sido as mesmas há décadas e já se provaram ineficazes. Nos noticiários e nas redes sociais de autoridades e instituições públicas, somos informados de que a nova onda de calor da semana virá ainda mais forte. Os indicativos são sempre os mesmos: “hidrate-se”; “passe filtro solar”; “não saia de casa desprotegido”; decerto dicas importantes, mas a que realidades elas estão sendo direcionadas? Por que não tratam da raiz da questão ou compartilham estratégias e soluções reproduzíveis e eficazes para o problema? Essa comunicação está a serviço de quem?

Crises de calor, enchentes e deslizamentos geram cada vez mais medo, incerteza e desmobilização. Alguns especialistas em emergências climáticas têm chamado esse fenômeno de ansiedade climática. O termo não é exatamente uma novidade, marcando presença nos registros da ecopsicologia desde meados dos anos 1990. No entanto, sua relevância tem sido cada vez mais evidente à medida em que o debate sobre as emergências climáticas avançam, impondo consequências significativas em nosso bem-estar mental. A Associação Americana de Psicologia (APA) caracteriza a ansiedade climática como um “um medo crônico da destruição ambiental”.

Em pesquisa desenvolvida em fevereiro de 2020, descobriu-se que dois terços dos adultos estadunidenses disseram sentir pelo menos um pouco de ansiedade climática. Quase metade das pessoas com menos de 34 anos disse que o estresse causado pelas alterações climáticas já afeta suas vidas.

Também descrita como ecoansiedade, ansiedade climática é o medo crônico de catástrofes e mudanças ambientais irreversíveis que afetam nossa sensação de segurança. Ela pode ser caracterizada por sentimentos de perda, desamparo e frustração diante dos impactos ambientais, exacerbados pela sensação de que esforços individuais são insignificantes frente à magnitude do problema.

O conceito também não tem uma única origem ou um único criador. Ansiedade climática é uma expressão natural humana que se desenvolve organicamente e sempre existiu, mas que cresce à medida em que as preocupações sobre as mudanças climáticas e com o impacto da devastação socioambiental aumentam.

A Emergência Climática É um Catalisador de Desigualdades

No início de 2024, a cientista ambiental e professora de yoga Tainá Antônio publicou em seu perfil uma reflexão importante sobre como o racismo ambiental impacta a vida das pessoas pretas e faveladas. Sua publicação rapidamente viralizou nas redes. A cientista revelou que, no cotidiano carioca, a chuva não é apenas um evento meteorológico, mas um catalisador de desigualdades, onde alguns enfrentam a cruel realidade de perder tudo: móveis, carros e até a própria vida e a de entes queridos.

O padrão é claro e se repete anualmente, em especial no verão, evidenciando uma correlação entre negligência estatal, território e raça. É nas favelas que a face do racismo ambiental é revelada de forma mais trágica. No nosso contexto, está claro quais alguns vivenciam as consequências do medo e da degradação das condições de saúde mental graças ao clima.

Um levantamento da Confederação Nacional dos Municípios trouxe à tona a extensão dos danos causados pelas chuvas e secas no Brasil em 2023: 5,8 milhões de brasileiros foram diretamente impactados, enfrentando perdas humanas, desalojamentos e consideráveis prejuízos econômicos. Eventos climáticos extremos já prejudicam a infraestrutura e a economia, mas também afetam psicologicamente, profundamente, a vida de milhões de cidadãos. Este panorama reforça a urgência de abordagens preventivas e estratégias de adaptação diante das mudanças climáticas, visando proteger comunidades vulneráveis. É necessário e urgente construir favelas resilientes frente aos eventos climáticos extremos, que certamente irão acontecer de forma cada vez mais frequente.

Ao pensar nesses eventos climáticos, as favelas são atingidas, sobretudo, a partir de três eixos: ondas de calor, inundações fluviais e aumento do nível do mar. Em um estudo recente intitulado Análise de Riscos e Vulnerabilidades Climáticas do Conjunto de Favelas da Maré, conduzido pela Redes da Maré em parceria com Way Carbon, foram apresentados destaques para a distribuição desses riscos no Complexo da Maré, os pontos mais vulneráveis, os impactos na vida das pessoas e na infraestrutura local, além de exemplificar medidas que podem ser adotadas para mitigar esses impactos.

O estudo propõe como tática de enfrentamento a esses processos, por exemplo, o teto verde. Uma estratégia que envolve recobrir o teto das construções com vegetação, o que reduz a temperatura interna e melhora o microclima local, além de filtrar a água da chuva para sistemas de armazenamento inteligente de água. O estudo deixa evidente que não há política pública ou solução para as comunidades que não se dê a partir da escuta e participação ativa dos moradores. É preciso mapear as dores das populações que vivem nos territórios, para saber como aliviá-las. O caminho é a colaboração entre o poder público, sociedade civil organizada e as comunidades. Só assim se consolidarão ações eficientes para a mitigação dos impactos das emergências climáticas nas favelas e periferias.

No nosso contexto, a ansiedade climática não é apenas um estado emocional, mas um eco do racismo ambiental e das desigualdades socioambientais. À medida que enfrentamos a iminência de catástrofes, a ecoansiedade nos instiga a repensar nosso papel na proteção do planeta e na criação de comunidades mais resilientes. Tal como a ansiedade patológica, que, quando acompanhada, amplia nossa capacidade de concentração e motivação, a ansiedade climática também deve ser tratada da mesma maneira. Os aparelhos de saúde pública, como as clínicas da família, deveriam se preparar para oferecer opções de tratamento aos moradores de áreas climaticamente vulneráveis.

Dona Norma de Morais, 70, tenta seguir com o pouco que ainda é possível de sua rotina. Em meio ao desastre climático, causado pelo racismo ambiental e pela negligência do Estado, a idosa do Jardim América passa um café, mesmo com água pela cintura, quase chegando ao nível do fogo. Arquivo pessoal
Dona Norma de Morais, 70, tenta seguir com o pouco que ainda é possível de sua rotina. Em meio ao desastre climático, causado pelo racismo ambiental e pela negligência do Estado, a idosa do Jardim América passa um café, mesmo com água pela cintura, quase chegando ao nível do fogo. Arquivo pessoal

A partir desse olhar, é necessário analisar os riscos e vulnerabilidades de cada favela e criar soluções para esse problema coletivo que hoje tem nome de ansiedade climática. A saída é a conjunção de ações coletivas de conscientização socioambiental, e um leque interdisciplinar de políticas públicas voltadas para os mais distintos aspectos, como infraestrutura, saúde, meio ambiente, alívio humanitário, eficiência na gestão de crises, reparação e etc. Sem isso não é possível superar esse desafio da saúde coletiva das favelas e periferias.

 

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Sobre o autor: Cleyton Santanna é jornalista e roteirista, formado pela UFRRJ e pela CriaAtivo Film School. Em seu canal no YouTube, discorre sobre curiosidades, ancestralidade e cultura afro-brasileira. Em 2017, produziu dois documentários, “Entre Negros” e “Tudo Vai Ficar Bem”, e, em 2018, foi premiado como roteirista, com o curta-metragem “Vandinho”, pela Creative Economy Network. Atualmente, atua como comunicador no Museu do Amanhã e é o apresentador do podcast Influência Negra.


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