Divas da Resistência: Refletindo o Legado de Marielle Franco, Grupo Empodera Mulheres de Conjuntos Habitacionais de Maricá

Cultura, Educação, Empreendedorismo e Autocuidado São Legados de Marielle

Divas unindo e reunindo forças. Andreia Araujo, Nízia Felix de Souza, Vanessa Malaquias, Ana Claudia Francisco Moreira, Aline Leite Valentim, Claudinha Moreira e Neide Felix da Silva. Foto: Arquivo Pessoal
Divas unindo e reunindo forças. Andreia Araujo, Nízia Felix de Souza, Vanessa Malaquias, Ana Claudia Francisco Moreira, Aline Leite Valentim, Claudinha Moreira e Neide Felix da Silva. Foto: Arquivo pessoal

“Uma palavra de ordem para nossa vida, em meio a essa crise: Que nós possamos viver com respeito a todas, cada uma com seu corpo, cada uma à sua maneira, cada uma na sua forma de resistência diária!… Precisamos sempre nos perguntar: o que é ser mulher? O que cada uma de nós deixou de fazer ou fez com algum nível de dificuldade pela identidade de gênero, pelo fato de ser mulher? A pergunta não é retórica, ela é objetiva, é para refletirmos no dia a dia, no passo a passo de todas as mulheres, no conjunto da maioria da população… que, infelizmente, é sub-representada.” — Marielle Franco

Em seu último discurso na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, em 8 de março de 2018, Marielle Franco jamais imaginaria que sua fala causaria uma revolução, principalmente feminina, entre mulheres pretas de favelas e periferias. Junto às suas falas, o legado de seu mandato inspira até hoje mulheres para além do Rio de Janeiro. Na cidade de Maricá, no Leste Fluminense, mais um projeto inspirado no legado de Marielle tem auxiliado a mudança de vida de pessoas: o Grupo Divas, que empodera mulheres dos conjuntos habitacionais Minha Casa, Minha Vida (MCMV) de Inoã e Itaipuaçu.

“A morte da Marielle causou um boom. Foi depois da morte dela que passamos a ver deputadas, vereadoras, mulheres de favela na Câmara. Eu, como uma mulher negra de comunidade, antes não via isso, da gente poder entrar em certos espaços, e foi depois da morte da Marielle que passamos a ver isso. Pra mim, esse foi um grande legado que ela deixou: a gente poder estar em certos espaços.” — Vanessa Malaquias, idealizadora do Grupo Divas

Criado em 14 de maio de 2023, o Grupo Divas celebrou sua fundação no Dia das Mães, servindo mocotó para as comunidades dos condomínios de Inoã e de Itaipuaçu. Para se saber mais a respeito do projeto, RioOnWatch conversou com as fundadoras e integrantes sobre suas histórias de vida, perspectivas, sonhos e, principalmente, sobre o que é e como é ser uma “Diva”.

Divas de Maricá reunidas para o Dia das Mães. Foto: Arquivo pessoal
Divas de Maricá reunidas para o Dia das Mães. Foto: Arquivo pessoal

Vanessa Malaquias relata que sua luta começou em 2017, quando uma enchente atingiu o condomínio Minha Casa, Minha Vida Itaipuaçu, onde morava na época. Desesperada, Vanessa saiu de casa às pressas para socorrer vizinhos mais vulneráveis. Dentre as pessoas que socorreu, havia muitas mães com crianças de colo—algumas com deficiências e atípicas, além de pessoas idosas. Segundo a idealizadora do projeto, aquela situação despertou em Vanessa a necessidade de fazer algo que impactasse os moradores do local.

Vanessa Malaquias durante o evento do outubro rosa. Foto: Arquivo pessoal
Vanessa Malaquias durante o evento do outubro rosa. Foto: Arquivo pessoal

“A criação do Grupo Divas surgiu quando a gente precisou se ajudar por conta de uma enchente. Teve uma enchente aqui no Minha Casa, Minha Vida e, depois disso, nós mulheres percebemos que precisávamos nos ajudar. E eu comecei a preparar comida na minha casa para distribuir para as pessoas. Esses alimentos vinham da igreja, da Prefeitura, de alguém que vinha doar mesmo, de várias instituições. Aí, comecei a criar um grupo de mulheres. Sem precisar pedir nada, vinha uma com uma vasilha de comida, outra me avisava de alguém que estava precisando. Eu sempre tive vontade de fazer ação social, trabalhar com essas coisas, e a gente já fazia sem saber, por conta da enchente. E aí, consegui avançar com as atividades, devido à demanda. Vinham me perguntar pra quem estávamos fazendo, quem era o vereador. E não era pra [nenhum político]. Era um grupo de mulheres querendo fazer essas ações, independente de Prefeitura, independente de alguma outra instituição.” — Vanessa Malaquias

Até ser oficializado em maio de 2023, o grupo já atuava continuamente no MCMV Itaipuaçu. Segundo Andreia Araujo, empreendedora e vice-presidente do Grupo Divas, até maio de 2023, para suprir a grande demanda da comunidade, elas compartilhavam e trocavam alimentos, numa espécie de ‘escambo’, uma prática típica de economia solidária.

“Nessa mesma época, ela (Vanessa), me deu a ideia, ‘Andreia, você tá fazendo o quê de doação’? E esse grupo, junto comigo, aproveitando a ideia que ela deu, começou a fazer trocas em Maricá e Itaipuaçu, uma troca geral. Aqui, em Itaboraí, Maricá e Itaipuaçu… fazíamos trocas com os comércios, com os colégios. Víamos onde estava fazendo doação, a gente aproveitava e fazia um compartilhamento e troca de alimentos. Trocávamos açúcar por farinha… ‘oh, tá tendo doação de farinha aqui’! Se a gente tinha muito açúcar, ia lá e trocava… foi muito bacana isso. E assim estamos até hoje.” — Andreia Araujo

Vanessa e o grupo seguiram com as atividades com a pretensão de expandir para outro conjunto habitacional, o MCMV Inoã. Em 2023, o grupo cresceu, assim como a demanda, já que mais mulheres integraram o projeto. Hoje, Divas de Maricá ultrapassa 100 participantes e colaboradoras. A expansão do grupo gerou uma reflexão àquele movimento. As integrantes perceberam que o projeto deveria ir além da distribuição de alimentos.

O objetivo dali em diante seria transformar a percepção sobre os conjuntos habitacionais, modificar o olhar das pessoas de fora dos condomínios e, sobretudo, o olhar das moradoras sobre seu próprio território. Mostrá-las, enfim, que era possível viver com mais dignidade, independentemente do lugar onde se mora. Além disso, mostrar que é possível ocupar espaços que achavam que nunca poderiam estar, mostrar conquistas e vitórias que elas poderiam ter ao adquirir mais conhecimento através de cursos, palestras, rodas de conversas, eventos culturais, entre outros. Finalmente, mostrar às mulheres da comunidade seu potencial para empreender e ter autonomia financeira.

Vanessa afirma que não consegue ficar indiferente a pessoas que necessitam de ajuda. Ela falou de sua tristeza ao ver um jovem negro morrer dentro do condomínio. Quando viu a mãe aos prantos e uma pastora orando ao lado do corpo daquele jovem, Vanessa conta que se desesperou, mas procurou fazer o que podia para ajudar. Ficou muito triste ao ver que ninguém falava nem fazia nada, agindo como se fosse algo banal.

“Eu não me senti fora daquele contexto, daquela família. Não foi meu filho, mas eu estava ali naquele momento, vendo um jovem perder a vida. Um jovem negro. E ninguém falou nada, ninguém se incomodou. Só tinha uma pastora ali orando por aquele corpo, sabe? Então, são coisas que me impactam, principalmente quando se fala da violência dentro da favela. Então, nós que estamos dentro das comunidades, temos que fazer o outro entender o que estamos passando, o que estamos fazendo… Se eu resisto, é para fazer o outro entender que essas mulheres precisam se reunir, precisam ter outras formas de buscar o alimento, de buscar outras formas de renda.” — Vanessa Malaquias

Vanessa se emociona ao falar das transformações na vida das mulheres do grupo. Fala da importância de vê-las empreendendo ao lado de outros comerciantes e diz que uma valoriza e prioriza o trabalho da outra. Criou-se, portanto, uma economia em rede, onde todas prosperam juntas.

Finalizando o bate-papo com as Divas. Foto: Arquivo pessoal
Finalizando o bate-papo com as Divas. Foto: Arquivo pessoal

Uma das mulheres que foi impactada pela ação do grupo é Aline Leite Valentim. Mãe atípica de uma criança autista, morava na cidade do Rio de Janeiro e foi morar em Maricá para escapar de um ciclo de violência doméstica. Ela conta que fugiu do ex-marido com o filho ainda bebê e conseguiu uma casa no condomínio MCMV de Itaipuaçu. Passou por diversas dificuldades até conseguir um benefício para o filho. Fez cursos de culinária, de boleira e de confeiteira, uma de suas fontes de renda agora. Ela entrou para o Grupo Divas onde, hoje, coordena o grupo de mães atípicas. Além de promover a troca de experiências no grupo, é Aline quem orienta as outras mães quanto aos direitos das crianças do espectro autista e pessoas com deficiência em geral.

Aline lamenta o preconceito que os moradores dos conjuntos habitacionais sofrem ao procurarem por emprego ou divulgarem seus trabalhos. Ela mesmo conta que, certa vez, perdeu uma encomenda de bolo quando falou para a cliente onde morava.

“Eu estava fechando a encomenda e estava tudo tranquilo, até a cliente perguntar onde eu morava. Assim que eu falei, ela encerrou a conversa dizendo: ‘então, deixa’. Eu não entendi e ainda tentei argumentar, dizendo que eu faria a entrega. Mas, ela desligou e não quis nem saber, como se meu trabalho não tivesse valor nenhum. E até para conseguir emprego é difícil. Quando você diz de onde vem, diz que mora aqui, eles não te dão nem confiança.” — Aline Leite Valentim

Ana Claudia Francisco Moreira, Aline Leite Valentim e Claudinha Moreira. Foto: Arquivo Pessoal
Ana Claudia Francisco Moreira, Aline Leite Valentim e Claudinha Moreira. Foto: Arquivo pessoal

Outra mãe atípica do Divas é Ana Claudia Francisco Moreira. Mãe de Claudia Moreira, a Claudinha, como é carinhosamente chamada por todos, Ana Claudia se mudou de Teresópolis para Maricá em busca de uma vida mais tranquila com sua filha. Recém-chegada ao grupo, Ana Claudia relata que, quando soube do acolhimento para crianças pessoas com deficiências, começou a se aproximar do Grupo Divas. Ela nos conta que, por ser mãe solo, recebe um suporte emocional muito grande e importante por parte das outras Divas. Para complementar sua renda, Ana Claudia conta que sua filha Claudinha faz pulseiras e colares para vender dentro do condomínio, o que ajuda na compra de itens para a filha ou para a dispensa da casa.

“É só eu e ela. O dinheiro que ganho com meu trabalho é pouco, não recebo benefício nenhum. Então, ela começou a fazer essas pulseirinhas para brincar, até que começou faltar o leite dela, faltar o dinheiro para comprar mais material para fazer as pulseiras. Foi quando tive a ideia de comprar mais material e fazer para vender. O que a gente conseguiu vender hoje já deu para comprar um leite, comprar pão. Não é muito, mas, ajuda bastante.” — Ana Claudia Francisco Moreira

Assim como Aline, Ana Claudia reflete sobre o preconceito externo com os moradores do condomínio MCMV de Itaipuaçu, onde vive atualmente. Nos conta que motoristas de aplicativos não entram para pegar ou deixar passageiros e que, algumas vezes, idosos e cadeirantes que moram longe da entrada do condomínio precisam caminhar uma distância bastante longa. Por conta de episódios como este, Ana Claudia aponta a falta de respeito com moradores e, principalmente, com as pessoas com deficiência que vivem no local.

Apesar de todas as adversidades que enfrentam, as mulheres do Grupo Divas resistem. Além do acolhimento que oferecem umas as outras, o projeto sedia cursos para adultos, como de empreendedorismo e artesanato, e aulas para crianças, de capoeira, de lutas, além de reforço escolar. Segundo Millena Torres, diretora e coordenadora do Divas, a inclusão de crianças e mães atípicas é uma prioridade.

“A gente já teve algumas ações aqui no condomínio. Tivemos, por exemplo, uma palestra do Outubro Rosa, onde a gente serviu um almoço comunitário. Falamos sobre a importância da vacinação e sobre a prevenção do câncer de mama. Fizemos o evento do Dia das Crianças com 100 crianças. Fizemos o Natal das crianças atípicas, atendemos 25 crianças e apadrinhamos elas. Também fizemos nosso Natal Solidário, com um almoço para quase 200 pessoas. Tivemos até o nosso Papai Noel.” — Millene Torres

Mulheres apoiando mulheres e fazendo a diferença na comunidade onde vivem, uma apoiando a outra, sem deixar ninguém para trás, é o cerne do Grupo Divas. Para a realização de eventos ou alguma comemoração, cada uma doa aquilo que pode, além de seu tempo. Janaina Torres, mãe de Millene, diz que prefere atuar na cozinha preparando pratos para os eventos, onde se sente mais à vontade, ao lado das colegas mãe e filha, Dona Nizia Félix de Souza e Neide Félix da Silva. Todas falam da satisfação de poder fazer algo por quem precisa.

Divas de Maricá reunidas. Foto: Arquivo pessoal
Divas de Maricá reunidas. Foto: Arquivo pessoal

Desde sua oficialização em maio de 2023, o Grupo Divas segue em expansão. Além de atuar nos conjuntos habitacionais MCMV Itaipuaçu e MCMV Inoã, as Divas já chegaram a outros territórios maricaenses, como Retiro, Marine e na Favela do Risca Faca, onde as atividades são realizadas dentro de igrejas evangélicas.

Em seu último discurso, a Vereadora Marielle Franco perguntou: “O que é ser mulher”? A isso o Grupo Divas responde com suas ações de cidadania e solidariedade dentro das comunidades e favelas de Maricá.

Refletindo sobre a época em que morava perto da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Aline, coordenadora do grupo de mães atípicas do Divas, conta: “Como vi várias [rodas de conversas de Marielle Franco] com mulheres negras e de favela, eu tento trazer isso pra cá, para as mães atípicas. Porque é aonde a gente desabafa e faz trocas de experiências”.

Para as Divas de Maricá, o legado de Marielle Franco encoraja e incentiva as mulheres a não serem indiferentes às questões de outras mulheres. É uma herança de luta cotidiana por melhorias de suas comunidades.

Sobre a autora: Carla Regina Aguiar dos Santos é jornalista comunitária, cria do Morro do Turano, que sempre prioriza o cotidiano das favelas em seu trabalho, mostrando além do que se vê nas mídias tradicionais. Já contribuiu para a Agência de Notícias das Favelas (ANF), A Pública, Portal Eu, Rio! e Terra. Recebeu os prêmios ANF de Jornalismo, na categoria cultura, e o Neuza Maria de Jornalismo.


Apoie nossos esforços para fornecer apoio estratégico às favelas do Rio, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatchdoe aqui.