Neste Mês da Mulher, em um dos territórios mais vulneráveis da Baixada Fluminense, uma iniciativa está transformando a realidade de mulheres negras de baixa escolaridade. O projeto Pega Visão – Empreendedorismo para o Futuro, do Baixada Lab, busca fortalecer a autonomia financeira e a educação antirracista entre mulheres de 18 a 50 anos no bairro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias.
Desde 2023, o Pega Visão atende mães e jovens que já possuem ou que desejam criar seu próprio negócio, promovendo o empreendedorismo como ferramenta de emancipação e geração de renda. Em um território onde milhares de pessoas vivem com menos de R$3 por dia, iniciativas como essa representam, mais do que oportunidades econômicas: espaços de fortalecimento pessoal e comunitário.
O projeto, que já impacta cerca de 100 mulheres, conta com oficineiros e colaboradores que já empreendem nos ramos da educação, mídia, papelaria, maquiagem e espaços colaborativos. O Pega Visão também já atuou em parceria com organizações locais como a Pamen Cheifa ao longo de seus 12 meses. Às participantes, o projeto oferece oficinas, palestras e exercícios práticos sobre desenvolvimento de marca, soluções criativas e marketing digital. Cinco mulheres receberam investimentos diretos para seus negócios por meio do Baixada Lab, com o apoio da Open Society Foundations e do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
O projeto hoje está em sua segunda fase, iniciada em agosto de 2024, com foco maior para as redes sociais e nas temáticas raciais, com a presença de duas empreendedoras negras, uma na área da beleza e outra na área de gestão de negócios. Atualmente, o projeto acontece dentro de uma unidade da igreja Assembleia de Deus.
“Trabalho na área de Nail Designer, de manicure desde os meus 12 anos. Um tempo atrás eu estava desacreditada, até eu entrar no curso… No começo [eu pensei]: é muita coisa que a gente não tem aqui [em Jardim Gramacho]. [Por isso é importante] um curso gratuito, pra abrir nossa mente e [nos ajudar] a seguir nossos sonhos e nossa carreira.” — Lorrane de Pontes, aluna do Pega Visão
Uma das oficineiras adotou uma abordagem de contação de histórias para conduzir sua didática. Ela iniciou compartilhando sua própria trajetória, descrevendo sua vivência em uma favela, onde morava com sua mãe e irmãs em condições extremamente precárias. Ao longo do relato, destacou a importância dos projetos sociais, explicando que, desde a infância e adolescência, participou de diversas iniciativas desse tipo, que foram fundamentais para seu avanço educacional e para o acesso ao ensino superior. Apesar do percurso acadêmico, ela sempre teve o desejo de empreender no ramo da maquiagem. Durante a oficina, ao ensinar as meninas, enfatizou a necessidade de disciplina e rigor na construção de uma postura que as afastasse de caminhos como a prostituição, relacionamentos abusivos e envolvimento com drogas.

O Letramento Racial e o Jardim Gramacho
O projeto tem impulsionado mulheres que atuam em diversas áreas, como manicure, confeitaria, papelaria criativa, comércio de roupas e alimentação. Além de oferecer qualificação profissional, a iniciativa incorpora uma abordagem de letramento racial em todas as suas atividades, ajudando as mulheres a se reconhecerem e se fortalecerem a partir de sua identidade racial e do contexto social em que estão inseridas.
“Aprendi que eu sou capaz, que eu posso, que eu consigo… através do projeto estou conseguindo me reinventar, abrindo novas janelas e aprendendo a cada dia mais. Tinha muito receio de tentar e errar. [Com os] professores aprendi que, através dos meus erros, nos aperfeiçoamos e crescemos.” — Camila Trindade, aluna do Pega Visão
Em seu artigo Letramento racial crítico através de narrativas autobiográficas: com atividades reflexivas, a linguista e professora Aparecida de Jesus Ferreira afirma que o “letramento racial crítico é refletir sobre raça e racismo, e nos possibilita ver o nosso próprio entendimento de como raça e racismo são tratados no nosso dia a dia, e o quanto raça e racismo têm impacto em nossas identidades sociais e em nossas vidas, seja no trabalho, seja no ambiente escolar, universitário, seja em nossas famílias, seja nas nossas relações sociais”.
Abordando o letramento racial crítico em suas atividades, o projeto Pega Visão ajuda empreendedoras negras a compreenderem como raça e racismo afetam suas trajetórias e oportunidades de negócio. Ao reconhecer essas dinâmicas, elas podem fortalecer sua identidade, valorizar seus saberes e criar estratégias para superar barreiras estruturais.
“Falar de autonomia financeira no território de Jardim Gramacho é importante, porque nós estamos falando de um território impactado por mais de 30 anos do principal aterro sanitário da América Latina. Esse impacto gerou uma série de problemas de infraestrutura, ausência de saneamento básico, política pública de habitação… Ali [o poder público] não atende à necessidade dos moradores das áreas mais precarizadas. Pensar a autonomia financeira é romper com a lógica assistencialista, que é muito forte no território, e ajudar a organizar, de maneira coletiva, uma consciência empreendedora em diálogo com uma prática paulo-freiriana de leitura do mundo, precedendo a leitura do texto. Logo, uma leitura social que gere responsabilidade com as finanças, uma perspectiva de empreendedorismo em rede, porque se o problema é estrutural, nenhum empreendedor vai conseguir resolver isso sozinho, então, ele vai ter que criar um ecossistema com outros empreendedores e empreendedoras, a fim de fomentar uma economia local robusta, forte, que possa prover de maneira significativa os negócios e seus clientes do território e para além do território.” — Vladimir de Oliveira, coordenador pedagógico do Baixada Lab

Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, é, historicamente, uma das regiões mais empobrecidas da Baixada Fluminense, marcada por décadas de vulnerabilidade social e econômica. O território ganhou visibilidade internacional com o documentário Lixo Extraordinário (2010), do artista plástico Vik Muniz, que retrata a dura realidade dos catadores de materiais recicláveis do antigo aterro sanitário—por muitos anos, o maior da América Latina.
Mesmo após o fechamento deste aterro em 2012, as condições de vida da população local permaneceram precárias, com altos índices de desemprego, falta de infraestrutura básica e com serviços públicos de péssima qualidade. Em meio a esse cenário, Jardim Gramacho abriga diversas organizações do terceiro setor que atuam, principalmente, em assistência social, distribuição de alimentos e projetos de educação popular. O projeto Pega Visão busca preencher a lacuna de iniciativas que promovam autonomia financeira e capacitação empreendedora com metas estruturadas, acesso a recursos e acompanhamento contínuo.
Da Correria à Construção: A Influência da Universidade da Correria no Pega Visão
O projeto Pega Visão nasceu por influência da iniciativa denominada Universidade da Correria, do escritor e ativista Anderson França, que promoveu encontros, workshops e palestras gratuitas com o objetivo de ensinar jovens a empreender e desafiar os padrões tradicionais do mercado. Em seu blog Coluna de Terça, ele compartilha relatos e reflexões sobre a experiência e o impacto da iniciativa:
“[Universidade da Correria foi um] projeto que criei quando morava no Morro do 18, e fiz a primeira turma no [Complexo da] Maré, em 2013. Vendia camisetas com a logo do projeto por R$39. Com o dinheiro, fiz a primeira turma. Ao fim de cinco anos, tinha formado 4.300 afroempreendedores. Nossa escola começou no beco. Dei aula em viela, bar, igreja, presídio, dentro da minha casa e no galpão da Ação da Cidadania. A proposta era o fortalecimento de negócios pretos e a criação de uma classe média negra no Brasil, o que ainda não há. O maior reflexo da escravidão. Vivia de favela em favela dando aula. Era um educador popular. Era feliz, ensinando pessoas a controlar suas finanças, montar estratégia de negócio. Éramos a aceleradora e incubadora de negócios de pessoas que eram rejeitadas. Montávamos um pitch e muitos alunos conseguiam investimento. Fizemos aquilo que estava dentro dos ideais de Marcus Garvey.”
O Pega Visão então nasce do mesmo espírito: a valorização do conhecimento periférico, da autonomia empreendedora e da potência criativa das quebradas, buscando fortalecer trajetórias de resistência e inovação, conectando saberes populares, oportunidades e redes de apoio para ampliar o impacto de negócios e iniciativas lideradas por pessoas das periferias.
“Percebo que Anderson França, em alguma medida, foi pioneiro… essa perspectiva pode muito bem flertar com esse discurso utilitário, esse discurso da individualidade, da meritocracia. Mas cabe a gente fazer a nossa contranarrativa, fazer a nossa crítica. A gente tem leitura para isso, a gente não é bobo. Mas eu só estou deixando claro para você que o que a gente está disputando é um campo que a esquerda demoniza. O empreendedor é tratado como uma espécie, digamos assim, de classe trabalhadora que foi cooptada pelo discurso da extrema-direita. Eles não estão errados em alguma medida. Só que a gente está lá furando a bolha.” — Vladimir de Oliveira, coordenador pedagógico do Baixada Lab

O coordenador pedagógico também destaca um ponto que considera fundamental e que tem sido tema frequente em suas conversas com as alunas. Menciona que, em sua atuação, trabalha com um conceito chamado “prosperidade compartilhada”, algo que considera um dado relevante. Segundo ele, no universo das alunas, a palavra prosperidade é extremamente presente, pois cerca de 90% delas vêm de igrejas pentecostais e neopentecostais, onde essa terminologia é amplamente utilizada em contextos teológicos. No entanto, o que geralmente não está presente nesses discursos pentecostais é o elemento do compartilhar—dividir, repartir e multiplicar—não apenas recursos financeiros, mas também informações, tecnologia, conhecimento, redes de contato e de apoio e, sobretudo, oportunidades.
Assim, o projeto Pega Visão se destaca como a única iniciativa voltada para a formação empreendedora de mulheres negras e jovens em Jardim Gramacho, oferecendo capacitação prática, fortalecimento de redes de apoio e investimento direto em negócios locais. Apesar dos desafios, como a falta de financiamento e a ausência de equipamentos públicos para sediar as atividades, a iniciativa segue capacitando mulheres negras periféricas e mostrando que empreendedorismo, educação e rede de apoio são ferramentas poderosas para transformar realidades.
“[Como] moradora de Jardim Gramacho, o projeto Pega Visão foi um divisor de águas pra mim, porque me deu um norte no meu negócio. Eu estava muito sem direção, não sabia muito o que fazer, pra onde ir e precificar. O curso me deu uma expectativa melhor… sobre o que quero fazer…O curso foi muito didático, com exercícios pra fazer em casa, com professores do mercado de trabalho… Eu consegui ser contemplada com uma quantia [no final do curso]; esse valor foi abençoado pra mim. Pude dar entrada no meu maquinário novo de trabalho, que eu precisava muito, que é uma prensa plana 40×60… Só tenho a agradecer a toda equipe e a todos os colaboradores, que nesse período nos deram muita força pra não desistir. Mesmo estando num bairro precário como Jardim Gramacho, a gente tem potencial de trabalho, somos potência, somos mulheres empreendedoras. Precisamos muito trabalhar e dar o nosso melhor ” — Monique Costa, aluna do Pega Visão
Sobre a autora: Janaina Tavares é cria de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, sociolinguista, revisora, orientadora de projetos e doutoranda no PIPGLA-UFRJ. Integra o Coletivo de Estudos em Letramentos Contemporâneos (UFRRJ). Investiga narrativas e letramentos de sobrevivência e esperança em igrejas evangélicas antifundamentalistas.