
Em 14 de agosto de 2025 a Câmara dos Vereadores aprovou a criação da nova Zona Sudoeste do Rio de Janeiro, englobando 21 bairros da AP4 na Zona Oeste, como Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Grumari, Vargem Grande e Vargem Pequena. Representa uma área com histórico de mais de meio século de grandes projetos voltados para expansão imobiliária segregatória e condomínios de luxo, exemplificado nos períodos dos preparativos para os Jogos Pan-Americanos de 2007 e as Olimpíadas de 2016.
Dois meses depois, a Câmara aprovou o Projeto Imagine, Lei Complementar nº 284/2025, em 18 de outubro, que autoriza a prefeitura a conceder o antigo Parque Olímpico, hoje Parque do Legado Olímpico, à empresa Rock World, do Rock in Rio. Ali está prevista “a criação de um parque de diversões, além de um complexo de lazer, esporte, cultura e negócios, que deve se tornar o maior da América Latina, distribuído por 1.180.000 m². O local também se consolidará como sede permanente do Rock in Rio, um dos maiores festivais de música do mundo”, segundo a Câmara dos Vereadores do Rio. A empresa terá até 60 meses para concluir as obras de infraestrutura e, após esse período, poderá operar o espaço por 30 anos, “por meio de uma Operação Urbana Consorciada (OUC), com transferência do potencial construtivo para outras áreas da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá. A Rock World projeta movimentar mais de R$274 bilhões e gerar 143.000 empregos ao longo do período de concessão… Antes disso, a concessionária terá até 12 meses, contados a partir da publicação da lei, para apresentar um ‘masterplan’ detalhado de toda a área de implantação, que deverá ser aprovado pela Prefeitura”.
Ambas as leis reacendem debates sobre urbanismo, especulação imobiliária, direito à cidade e direito à favela na região, e no espaço vizinho à Vila Autódromo, que em 2024 se tornou parte do mais recente bairro carioca, seu 166º bairro: nomeado Barra Olímpica, o bairro formado por partes de Jacarepaguá, Camorim e Barra da Tijuca.
Vila Autódromo se tornou ícone mundial da luta contra remoções graças à sua resistência de décadas e veemente e, apesar dos poderes associados, parcialmente bem-sucedida, resultando em 20 famílias que permaneceram na área ainda voltada para seus moradores de baixa renda. Todas as novidades recentes na região voltam a preocupar os moradores com o que já foi seu principal problema: ameaças ao direito à permanência, seja através de remoções violentas, seja por conta da especulação imobiliária.

Sandra Maria Teixeira, de 57 anos, é moradora da Vila Autódromo há 32 anos. Para ela, a Barra Olímpica foi criada por motivos bem óbvios.
“Criam esse bairro, um novo bairro, que já traz essa referência de ‘Barra’. É um projeto muito claro de valorização da região, que já vem recebendo investimentos e reformas que claramente atendem aos interesses da especulação imobiliária… Nesse projeto, fica muito claro isso [os interesses econômicos e políticos]. Você vê um desmembramento dos bairros que vêm recebendo investimentos [com essa nova zona]. É a continuidade desse projeto [especulativo] deles.” — Sandra Maria Teixeira
Um medo que a população já está vivendo é a elevação dos preços voltados para moradia e permanência na região. Sandra ressalta: “Você tem uma região valorizada, com investimento público maior, o que vai justificar o aumento do IPTU e de várias outras coisas”.

Para Luiz Claudio Silva, professor de educação física de 62 anos, este aumento do custo de vida está a caminho: é uma questão de tempo após as mudanças sendo realizadas.
“Depois que internalizar, que a galera se conscientizar de que mudou de zona, de bairro, que é a Zona Sudoeste… Por enquanto, acredito que não, mas para um futuro e talvez muito próximo, é um caminho para o aumento de taxas.” — Luiz Claudio Silva
Com a nova nomenclatura simbólica, os moradores temem que os recursos sejam destinados apenas aos bairros mais ricos da região.
“A nossa luta é sempre contra o apagamento. Aqui não chegou nada de benefício. Quando essas casas [compensatórias construídas na Vila Autódromo antes dos Jogos de 2016] foram entregues, no dia 29 de julho de 2016, foi acordado com a Prefeitura que ela tinha que devolver tudo o que ela destruiu nas remoções… a quadra poliesportiva [por exemplo], tudo com liminar do juiz.” — Luiz Claudio Silva
“Foram 58 liminares que nós sofremos aqui. Nessa, foi a associação, foi a horta, foi o parquinho…foi a quadra”, acrescenta o morador, que afirma que a Prefeitura recorreu das decisões, mas a Justiça ordenou a reconstrução dos aparelhos públicos de uso comunitário que foram demolidos. No entanto, mesmo com decisões judiciais, a Prefeitura demorou anos para começar as obras, sempre fiscalizadas não oficialmente pelos moradores.

Sandra avalia que um dos impactos sofridos na região, que também é escolhida para grandes eventos e festivais na cidade, ocorre na oferta de transporte público. “A gente está sempre sofrendo com o impacto disso. No Rock in Rio, a gente fica sem transporte. Temos que andar até [o condomínio] Rio 2, que é uma boa distância. Tiram as poucas linhas [de ônibus], que ficam impedidas de passar por aqui. Eles entendem que essa região é valorizada e que todo mundo tem carro. Basta dar uma autorização e está resolvido o problema”, ela critica.
Para a Vila Autódromo, existem impactos também psicológicos: o bairro tem nome do evento responsável pelas sucessivas remoções de 700 famílias vizinhas dos que permaneceram. Seus amigos foram remanejadas para outros lugares da cidade ou simplesmente postas na rua.
“Com relação a endereços… era Jacarepaguá. E, agora, você tem que dar ‘Barra Olímpica.’” — Luiz Claudio Silva
Ao longo de sua história, a Vila Autódromo foi vítima de diversas táticas de remoção notórias aplicadas pela Prefeitura: cavalo de Tróia, corte de serviços, desculpa ambiental, desinformação, dividir para conquistar, intimidação e perda de pertences.
“Nós ainda somos uma área de especial interesse social. A gente sabe que, na remoção, eles usam estratégias diversas. Eu não sei te dizer o que a gente terá de futuro.” — Sandra Maria Teixeira
Questionado sobre a participação da população local em processos de decisão, o psicólogo Michael Soares do Nascimento, de 38 anos, morador, afirma que a população da Vila Autódromo não foi consultada sobre o novo zoneamento da cidade.
“Aqui, na Vila Autódromo, só soubemos quando já tinha sido, já tinha acontecido. E eu só descobri porque eu li uma notícia na internet: ‘Ué, mudou alguma coisa?’. Não temos participações na política, nem informação alguma.” — Michael Soares do Nascimento

Na história da Vila Autódromo, a população local lutou contra as remoções perpetradas pela Prefeitura de Eduardo Paes em seus primeiros governos municipais. Sua gestão foi responsável por remoções em diversas favelas da cidade em razão dos megaeventos, sempre através de processos nada participativos, que colocavam o interesse do mercado imobiliário à frente dos interesses da população. Esse medo, de tudo isso voltar, permanece entre moradores de favelas da nova Zona Sudoeste, como evidenciam os recentes casos de tentativas de remoção da comunidade Santa Luzia e da Vila da Lagoa, ambas perpetradas pela Prefeitura de Eduardo Paes, agora em seu quarto mandato.
No caso da Vila Autódromo, o futuro ainda é incerto, diz o psicólogo. Do que, no entanto, diz ter certeza é que o governo não tem políticas públicas voltadas para a permanência—que inclui investimentos públicos adequados para a urbanização sustentável—das favelas da nova Zona Sudoeste, favelas como Vila Autódromo, Cidade de Deus, Rio das Pedras, Muzema, Tijuquinha, entre outras.
“A gente não tem nenhuma ideia, a gente está no escuro. Não sabemos o que vai acontecer. A gente tá rezando e torcendo para que se mantenha em paz… Mas… não tem nenhuma proposta [de política para garantir moradia acessível em um possível cenário de especulação imobiliária].” — Michael Soares do Nascimento
Para Sandra Teixeira, a articulação da favela na criação do Museu das Remoções contribui muito para uma memória coletiva, que sustenta a luta dos moradores contra políticas de remoções de qualquer tipo. No entanto, ela diz não ter boas expectativas para as favelas da região de acordo com o histórico de ação do Estado e do mercado imobiliário.
“Aqui na Vila Autódromo, o que a gente vem fazendo, desde 2016, quando cerca de 700 famílias foram obrigadas a sair daqui, foi esse trabalho do Museu das Remoções, de fortalecimento do território e da identidade local. Vamos tentando proteger o nosso território [da especulação]. Por parte do poder público, foi ele quem impactou e dilacerou a nossa comunidade. O que a gente pode esperar do poder público? Certamente, não há boas expectativas, não é uma relação boa.” — Sandra Maria Teixeira
Sobre o autor: Igor Soares é cria do Morro do Borel e jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão, do Portal iG e produzido reportagens para a Folha de São Paulo..
