
Lançado em 2016, a página Samba Abstrato surgiu para documentar a apropriação e o embranquecimento das escolas de samba, bem como fazer frente a invasão de “musas abstratas“, que denuncia descaracterizar o carnaval, uma festa negra de favela.
Seja no carnaval carioca, paulistano ou de outros lugares do Brasil, as chamadas musas abstratas estão, através do dinheiro, tirando lugares de beldades negras, crias do chão das escolas. Não é coincidência que as musas abstratas sejam majoritariamente brancas e que as musas concretas, que têm cada vez mais perdido espaço, sejam negras. É exatamente a mulher negra sambista quem mais tem sido invisibilizada com o avançar da chamada abstratolândia.
No entanto, é fundamental entender que as musas abstratas são apenas o sintoma mais visível dessa colonização do carnaval pela abstratolândia, pois, infelizmente, ela se entranha em várias instâncias das escolas. Esse processo afasta cada vez mais as agremiações de suas comunidades, transforma quilombos modernos em empresas, que fecham grandes negócios com celebridades brancas, traçam estratégias de marketing e visam o lucro nos convites que fazem às musas abstratas—ao invés de samba no pé e o amor pelo pavilhão.
A Dinâmica do Ativismo contra a Abstratolândia nas Redes Sociais
Logo que surgiu, em 2016, já caiu nas graças do público. Hoje, a comunidade Samba Abstrato tem 112.000 seguidores no Facebook. No Instagram, onde a conta atual tem só 9 meses, são 4.389 seguidores. A conta anterior foi derrubada e tiveram que começar do zero.
A comunidade Samba Abstrato foi apresentada de maneira anônima para o público do carnaval nas redes sociais por anos. Foi estratégico, “por segurança e para não personificar a luta”. No entanto, em 2025, porque outras pessoas estavam sendo ameaçadas e até mesmo agredidas fisicamente, a diretoria entendeu ser necessário vir a público e enfrentar os holofotes e os processos judiciais movidos pelas musas abstratas.
Foi preciso declarar publicamente que a crítica às musas abstratas não deve se confundir com violência. Da mesma forma é esperada uma compreensão das mesmas sobre o seu privilégio branco e de classe, que não acusem pessoas negras sem provas. Portanto, para enfrentar ataques recebidos por pessoas negras do samba devido à suposta ligação com o Samba Abstrato, a fundadora decidiu sair dos bastidores.
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‘Bateu, Levou’: Subvertendo o Racismo Recreativo Através da Arte
Há alguns carnavais, a fundadora do Samba Abstrato serviu de “cavalo”—veículo com o qual o mundo espiritual se comunica com o mundo terreno no candomblé e na umbanda—para a sátira que denunciou e combateu as fantasias de “Nega Maluca” nas ruas de São Paulo: “Lolo, A Paneleira”.
Luanna Teófilo, que se fantasiou de “Lolo, A Paneleira”, é formada em direito pela Universidade Mackenzie, em São Paulo, e é mestre em Linguística pela Universidade de Sorbonne, na França. Fundadora da comunidade Samba Abstrato, manteve-se anônima nos bastidores da página por quase dez anos. Hoje, no entanto, até o Chat GPT reconhece a empresária paulistana como sua fundadora.
A personagem inventada por Luanna é “Lolo, Heloisa Clarice Figueiroa dos Santos, uma paulistana da gema e representante da família tradicional brasileira. Uma paneleira que protesta contra ‘tudo o que está aí’, embora não saiba exatamente o que é esse tudo. Essa é a Branca Maluca”.
Vilões do Carnaval, Identificados no Samba Abstrato, Recorrem à Justiça
O Primeiro Livro é o título do livro da própria plataforma do Samba Abstrato, em pré-venda desde 2024, com sua entrega atrasada devido à indenização paga a uma bailarina branca que processou o Samba Abstrato. O podcast O Processo Abstrato também se encontra fora das plataformas digitais devido a questões burocráticas e legais.
Há três anos, o Samba Abstrato começou a escolher o livro da temporada. O primeiro foi Samba Negro: espoliação branca de Ana Maria Rodrigues. Essa obra foi lançada em 1984, fruto da dissertação de mestrado da mesma autora na Universidade de São Paulo em 1981. Segundo Luanna, a autora “não contava com a Musa Abstrata, ela fala como a branquitude vai se apropriar do valor econômico [gerado pela negritude]”.
Em 2024, o livro da temporada foi o Desde que o Samba É Samba de Paulo Lins “um mergulho profundo pelos pontos cardeais do samba, como o Largo do Estácio, a Praça Onze, os Terreiros de Candomblé, de Umbanda ou às festas na Tia Ciata e no Buraco Quente da Mangueira… uma incrível cartografia da malandragem”, segundo afirma a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda.
Agora, em 2025, o livro da temporada é o de Francisco Guimarães, mais conhecido como Vagalume: Na Roda do Samba, lançado em 1933. Francisco é considerado um pioneiro por ter sido o primeiro a retratar o carnaval nos jornais impressos da época. Além disso, Francisco também foi o primeiro a criticar os “sambestros”, personagens que não fazem parte da roda de samba e que se utilizam do samba sem compromisso, comprando parcerias. Logo, o que hoje o Samba Abstrato critica como Vilão Carnavalesco ou Musa Abstrata, há 92 anos, Vagalume chamava de “Sambestro”.
Portanto, essa infiltração da branquitude no samba é um processo que vem se consolidando há 100 anos, perpetrado por uma elite que aparenta não refletir sobre o passado do país mais escravocrata do mundo, que construiu os privilégios sociais que, hoje, permite a ela comprar acesso a espaços e manifestações culturais negras, enquanto o povo que a produz, em sua grande maioria, continua marginalizado, subinvestido, e não reconhecido por sua gigante contribuição ao país.
Nos anos 1990, outra figura histórica do samba criticava a invasão das brancas do palco do samba. Dona Ivone Lara, a primeira Dama do Samba, por exemplo, se opunha publicamente às Rainhas de Bateria brancas. Na mesma época, outra personalidade do mundo do samba que não poupava críticas era o carnavalesco Joãosinho Trinta, que, durante entrevista no programa Roda Viva, contou que chegou a montar estratégias para defender a Beija-Flor, escola campeã do carnaval 2025, contra a “infiltração dos ETs do samba”, segundo suas próprias palavras.
“Hoje, as escolas de samba são todas de brancos… da alta sociedade, gente que não é do samba. Não que o branco não tenha direito a sambar. Eu tenho uma garotinha lá, filha de portugueses, que é uma passista extraordinária. [Agora] quando, é… toda essa invasão de alta sociedade, de estrangeiros, que não têm nada a ver com o samba…” — Joãosinho Trinta
Recentemente, após assistir o concurso da Corte Real do Carnaval 2025, realizado pela Prefeitura do Rio, que seleciona o Rei Momo, Rainha, princesas e musos, com premiações que variam de R$32.500 a R$45.500, Luiz Antonio Marcondes, filho de Neguinho da Beija-Flor, foi às redes sociais desabafar. O vídeo em que ele expõe sua frustração com os vilões do carnaval no concurso viralizou. Sua indignação era a de muitos baluartes e bambas, crias dos terreiros e barracões das escolas de samba: havia candidatos inscritos que sequer sabiam sambar.
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Entretanto, como se pode observar, a infiltração continua acontecendo e enfraquecendo a herança e o legado dos pretos e pretas que fundaram essas agremiações nas favelas, que bordaram seus pavilhões nas vielas e terreiros de seus territórios. Pouco antes do carnaval, revelou-se na coluna da Mônica Bergamo na Folha de São Paulo que Paulo Barros declarou: “São 12 escolas. Provavelmente você vai ver dez desfiles iguais… A maioria dos enredos desse ano são afro. Tudo já foi visto e revisto e eu posso te garantir que 90% de quem está assistindo o desfile não vai entender nada”. É curioso que Paulo Barros fale isso enquanto trabalha para uma escola de samba internacionalmente consagrada por um enredo afro: Kizomba, Festa da Raça, samba do desfile de 1988, no centenário da abolição formal da escravatura no Brasil.
Um dos exemplos mais emblemáticos da infiltração da abstratolândia no carnaval carioca pôde se ver com o rebaixamento da Unidos de Padre Miguel. A agremiação da Vila Vintém fez uma apresentação elogiada pela grandeza, pela evolução da comunidade e por um samba que marcou o Carnaval 2025. Nada disso foi capaz de impressionar os jurados. Com as notas surpreendentemente incompatíveis com o desfile, só restava à escola e à comunidade esperar a divulgação das justificativas dos jurados para entender o que aconteceu. No entanto, ao ler as justificativas, a razão para o rebaixamento ficou clara: a jurada Ana Paula Fernandes afirma ter descontado pontos da escola por haver no samba “excesso de termos em iorubá”.
Infelizmente, exemplos como estes não são isolados. É preciso respeitar o chão das escolas de samba, suas raízes e os corpos negros e favelados que organizam e dão ao Brasil a maior festa popular do mundo.
Sobre o autor: Paulo Mileno é cria da Taquara, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ator, cineasta, produtor cultural, escritor, conselheiro editorial da Revista África e Africanidades e foi pesquisador do Núcleo de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Paulo contribui para o Observatório da Imprensa, Brasil de Fato, Jornal do Brasil, Black History Month, Ufahamu: A Journal of Black Studies da Universidade da Califórnia em Los Angeles, San Francisco National Black Newspaper, Black Star News, Amsterdam News e Africa Business.