‘Hoje, em Terra Firme, Ninguém Vai Dormir com Fome!’ Em Meio à Adversidade, Chalé da Paz, Coletivo Tela Firme e Cozinha Solidária da Cúpula dos Povos Distribuem 2.200 Quentinhas em Favela de Belém

Segurança Alimentar em Meio às Adversidades

O Chalé da Paz, o Coletivo Tela Firme, o MST e a Cúpula dos Povos distribuíram 2.200 refeições para os moradores de Terra Firme durante três dias. Foto: Bárbara Dias
O Chalé da Paz, o Coletivo Tela Firme e a Cúpula dos Povos distribuíram 2.200 refeições para os moradores de Terra Firme durante três dias. Foto: Bárbara Dias

Esta reportagem faz parte da cobertura especial do RioOnWatch sobre as comunidades periféricas de Belém do Pará e os movimentos da sociedade civil local pelo enfrentamento ao racismo ambiental, à injustiça climática e às violências estruturais durante o período da COP30.

O Poder das Cozinhas Comunitárias e da Agricultura Familiar

Nas noites dos dias 13 e 14 e na tarde de 15 de novembro de 2025, o Chalé da Paz, o Coletivo Tela Firme e a Cozinha Solidária da Cúpula dos Povos da COP30 distribuíram milhares de quentinhas aos moradores de uma das maiores baixadas (como chamam suas favelas) de Belém, a comunidade de Terra Firme. Nas três ocasiões, em pouco menos de duas horas, as quentinhas haviam se esgotado. A ação dos movimentos sociais visava atender comunidades pouco alcançadas pelas atividades da 30ª Conferência das Partes (COP30) da UNFCCC (Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) com carinho e atenuar a insegurança alimentar de pessoas a poucos quilômetros do local onde delegações de Estado estavam reunidas. “Isso é muito grave”, aponta Fabrício Assunção de Souza, 24 anos, cria da Terra Firme, voluntário do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme, e estudante de Educação Física da Universidade Paulista (UNIP), no Centro de Belém.

“Foram distribuídas [quentinhas] no Chalé da Paz e no Abrigo, no bairro vizinho do Guamá. É uma ocupação de famílias em um local onde o governo do estado estava preparando moradias, mas abandonou as obras. Então, famílias sem casa ocuparam… [E distribuímos também na] Paróquia Santa Maria de Belém, em Terra Firme, porque queríamos atingir um outro público, que eram os idosos.” — Fabrício Assunção de Souza

O ponto de distribuição de refeições na Terra Firme foi em frente ao Chalé da Paz, um ponto de referência na Baixada da Terra Firme pelo trabalho educacional com crianças, com justiça climática e direitos humanos. Foto: Bárbara Dias
O ponto de distribuição de refeições na Terra Firme foi em frente ao Chalé da Paz, um importante ponto de referência da comunidade pelo trabalho educacional duradouro, com crianças e famílias, visando à justiça climática e direitos humanos. Foto: Bárbara Dias

Francisco Batista, 46 anos, geógrafo e especialista em educação, ambos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), fundador do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme, detalha o processo de comunicação sobre a ação e como ela foi articulada.

“No total, foram 2.200 quentinhas distribuídas no Conjunto Habitacional Abrigo, na Liberdade II, extremo sul do bairro, Chalé da Paz e Paróquia Santa Maria de Belém. Fui contactado por nossa parceira do MST estadual, uma das coordenadoras da cozinha comunitária que alimentou os participantes da Cúpula dos Povos. Ela me contactou para ver a possibilidade de trazer [quentinhas] pra cá. Acionei os vizinhos pelo nosso grupo de WhatsApp… entramos em contato com lideranças de Liberdade II e fomos deixar quentinhas no Abrigo… Só aqui na Terra Firme [essa ação distribuiu]… 600, 1.000 e 800 entre Chalé e Paróquia Santa Maria.” — Francisco Batista

Da esquerda para a direita, Fabrício de Souza e Francisco Batista, lideranças do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme, em meio à distribuição de refeições na Terra Firme, parte das atividades da Cúpula dos Povos em Belém. Foto: Bárbara Dias
Da esquerda para a direita, Fabrício de Souza e Francisco Batista, lideranças do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme, em meio à distribuição de refeições na Terra Firme, parte das atividades da Cúpula dos Povos em Belém. Foto: Bárbara Dias

Esse cenário mostra a importância das cozinhas comunitárias nas favelas de Belém e a força da comunicação comunitária de favela, onde o boca a boca pode garantir a comida no prato de um vizinho que talvez não comesse naquela noite.

Voluntários do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme preparam ponto de distribuição de refeições em Terra Firme, na noite do dia 14 de novembro. Foto: Bárbara Dias
Voluntários do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme preparam ponto de distribuição de refeições em Terra Firme, na noite do dia 14 de novembro. Foto: Bárbara Dias

Na distribuição do dia 14 de novembro, o RioOnWatch esteve presente. Francisco, que conhece bem a população da comunidade da qual é cria, por saber o tamanho das famílias, por vezes, estimulava os moradores a levarem duas, três ou até cinco quentinhas. A ação atendeu pelo menos 1.000 moradores de Terra Firme.

Um dos trabalhadores da distribuição das quentinhas, José Aragão*, muito perspicaz, fez uma análise certeira da situação: “O ideal seria os moradores da Terra Firme estarem lá na Cúpula dos Povos, lá na COP30, mas [poucos] estão, né?… Então, o movimento social tem que vir até o trabalhador”.

Os voluntários do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme, conhecendo os perfis de cada um dos moradores, garantiam refeições para cada necessidade. Enquanto algumas famílias monopessoais pegavam uma ou no máximo duas refeições, outras levaram até mais de cinco quentinhas. Foto: Bárbara Dias
Os voluntários do Chalé da Paz e do Coletivo Tela Firme, conhecendo os perfis de cada morador, ofereceram refeições para atenderem suas necessidades. Enquanto algumas famílias necessitavam de uma refeição, outras levaram até cinco quentinhas. Foto: Bárbara Dias

Todas as refeições foram preparadas por voluntários da Cozinha Solidária da Cúpula dos Povos, na UFPA.

Alguns moradores, notavelmente constrangidos, relutavam em se aproximar do ponto de distribuição para pegar quentinhas para si e suas famílias. Contudo, as lideranças locais, sempre muito atentas, faziam questão de resolver qualquer tipo de embaraço.

Francisco, Fabrício e os demais voluntários que participaram da ação deixavam os moradores à vontade, tentando acabar com a vergonha e o constrangimento de se aproximarem do ponto de distribuição. Foto: Bárbara Dias
Francisco, Fabrício e os demais voluntários que participaram da ação deixavam os moradores à vontade, tentando acabar com a vergonha e o constrangimento de se aproximarem do ponto de distribuição. Foto: Bárbara Dias

“Fazemos o Natal da Paz desde 2015… [Então] já tínhamos essa relação com a comunidade… Quando veio a pandemia, o Tela Firme fez uma campanha a partir de março para apoiar a população e arrecadar alimento, chamada Terra Solidária, com apoio de igrejas, terreiros, equipamentos culturais, etc…. isso nos deu uma certa expertise em fazer ações como essa que fizemos essa semana.” — Francisco Batista

Alguns jovens motociclistas da Terra Firme pediram quentinhas para distribuir em São Brás, uma outra comunidade onde há pessoas em insegurança alimentar, vizinha à Terra Firme. Foto: Bárbara Dias
Alguns jovens motociclistas da Terra Firme pediram quentinhas para distribuir em São Brás, uma outra comunidade onde há pessoas em insegurança alimentar, vizinha à Terra Firme. Foto: Bárbara Dias

Até Neste Contexto Aparece a Violência Policial: ‘Em Periferia, Você Sabe Como É’

Na noite do dia 13 de novembro, durante a distribuição de quentinhas, os presentes ficaram chocados ao testemunhar a Polícia Militar do Pará, durante a ação de entrega de quentinhas na Terra Firme, torturando um jovem, menor de idade, deixando, inclusive, marcas de queimaduras de cigarro em seu corpo. O menino depois foi liberado, pois não encontraram nada de ilegal em seu porte.

Da mesma forma, na segunda noite de distribuição de quentinhas, dia 14 de novembro, já do meio para o fim da ação, a polícia chegou. Dirigiam a viatura em alta velocidade, de maneira irresponsável, em uma rua estreita, de terra, com um trânsito de pedestres de todas as idades e ciclistas.

Nas noites da Cúpula dos Povos, só na Terra Firme, foram distribuídas 2.200 refeições. Em frente ao Chalé da Paz, a rua ficou bastante movimentada, com muitos pedestres, sobretudo, mulheres e crianças. Foto: Bárbara Dias
Nas noites da Cúpula dos Povos, só na Terra Firme, foram distribuídas 2.200 refeições. Em frente ao Chalé da Paz, a rua ficou bastante movimentada, com muitos pedestres, sobretudo mulheres e crianças. Foto: Bárbara Dias

Testemunhado pela equipe do RioOnWatch, ao pararem o carro, os policiais militares já desceram apontando fuzis para um senhor de meia-idade que andava em sua bicicleta. Depois de muito tempo na revista violenta e de humilhações gritadas, para que todos ouvissem, os policiais o liberaram, pois não portava nada de ilegal. Sua atitude suspeita, segundo seu depoimento logo em seguida, “[era o fato de ser]… morador de uma baixada e de estar no meu território, na minha casa, onde nasci, andando de bicicleta, em uma sexta-feira à noite”.

Policiais militares já desceram da viatura apontando fuzis para um senhor de meia idade que andava em sua bicicleta.
Policiais militares já desceram da viatura apontando fuzis para um senhor de meia-idade que andava em sua bicicleta.

Enquanto revistavam e humilhavam o senhor, um dos policiais pegou duas quentinhas que estavam com ele. Com um tom de voz bem alto, andou de maneira confrontativa em direção à distribuição de quentinhas, gritando e agindo de forma desrespeitosa.

Após liberarem o senhor, os policiais, com o fuzil em riste e a mesma atitude violenta, entraram em um beco ao lado de onde a distribuição de quentinhas acontecia. Lá, encontraram um jovem e, enquanto o revistavam também com violência, começaram a espancá-lo. Outros moradores viram e ficaram revoltados com a sessão gratuita de violência, mas não puderam reagir, com medo de represálias.

“Estão metendo a porrada no Joaquim*… eu fiquei muito preocupado, porque ele estava aqui agora [na ação de distribuição de comida, pegando comida] e eu estava ao lado dele.” — João Almeida*

Os policiais militares pararam a viatura no meio da via, impedindo que o caminhão que trouxe as refeições pudesse sair da Terra Firme por aquela via por alguns minutos.
Os policiais militares pararam a viatura no meio da via, impedindo que o caminhão que trouxe as refeições pudesse sair da Terra Firme por aquela via por alguns minutos.

Depois que todas as quentinhas já tinham sido retiradas do caminhão, o veículo com os militantes da Cúpula dos Povos começou a manobrar para ir embora. No entanto, a viatura da PM-PA estava bloqueando o caminho. Assim, o motorista teve que esperar a boa vontade do policial em parar a tortura para liberar a via pública, que havia sido obstruída sem nenhum motivo.

Passado um tempo, os policiais entraram na viatura, deram ré e pararam em frente ao ponto de distribuição de quentinhas. Os policiais encararam lenta e profundamente cada um dos presentes, em tom ameaçador. Mas decidiram não sair do carro. Manobraram e, logo em seguida, atravessaram a ponte sobre o córrego e se dirigiram à outra área da comunidade.

Apesar da violência policial escancarada, a ação de distribuição de quentinhas seguiu como se os PM-PA nunca tivessem estado ali. Mesmo em meio a toda essa violência e adversidade, os coletivos da Terra Firme conseguiram garantir comida no prato do povo, junto da Cúpula dos Povos na COP30.

Veja as Fotos da Distribuição de Refeições da Cozinha Solidária da Cúpula dos Povos na Terra Firme Durante a COP30:

Cúpula dos Povos Entrega Refeições da Cozinha Solidária do MST na Terra Firme, 14 de novembro de 2025

*Alguns entrevistados receberam nomes fictícios para a proteção dos mesmos.

Sobre a autor: Julio Santos Filho é bacharel em Relações Internacionais (UFF) e mestre em Sociologia (IESP-UERJ), trabalha desde 2020 como editor no RioOnWatch. Em 2021, foi editor do Enraizando o Antirracismo nas Favelas, projeto medalha de prata no The Anthem Awards na categoria Diversidade, Equidade e Inclusão, como Melhor Programa de Conscientização Local, e ganhador do Prêmio Megafone Ativismo de melhor Reportagem de Mídia Independente e de duas moções de louvor e reconhecimento da Comissão Especial de Combate ao Racismo da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.


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