
No dia 26 de outubro, a comunidade do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro comemorou seus 85 anos. A comemoração organizada pelo Núcleo de Memórias do Vidigal realizou uma roda de conversa junto da exposição Memória Climática das Favelas, a entrega da homenagem Comendador Armando Almeida, e trouxe uma roda de capoeira realizada pelos grupos Laje Cultural Rocinha e Acorda Capoeira, o “Memórias do Vidigal em Cordel”, a atividade “Vidigal em poesia”, e apresentações musicais pelos grupos Vidiga na Social e Batuca Vidi.
em parceria com a , a exposição foi inaugurada com uma roda de conversa com moradores, mobilizadores comunitários e demais participantes. O dia de atividades contou ainda com apresentações culturais e artísticas, incluindo a Lima a personalidades, coletivos e projetos sociais vidigalenses que transformam a comunidade.
A exposição Memória Climática das Favelas, fruto de rodas de conversa realizadas por 10 museus e projetos de memória da Rede Favela Sustentável*, já circulou este ano pela Maré, Acari, Cidade de Deus e Rio das Pedras. Bárbara Nascimento, cria do Vidigal e protagonista do Núcleo de Memórias do Vidigal, que realizou a roda da comunidade que ajudou a gerar e está refletida na exposição, introduziu e mediou uma troca inspirada da exposição.
“A gente hoje vai falar sobre memórias do Vidigal, relacionando com a questão climática, que é uma questão comum a todas as favelas. Quem passou aqui pela exposição conseguiu perceber isso, porque [a questão climática] ou é motivo para nos remover, ou nos remove, de qualquer forma, devido às tragédias, às desgraças. Então, eu convido todos aqui para falar.” — Bárbara Nascimento

Guti Fraga, cria do Vidigal e fundador do Grupo de Teatro Nós do Morro, foi homenageado. Ele compartilha suas percepções sobre as mudanças no Vidigal ao longo dos anos.
“A gente, que é do Vidigal, tem lembranças e dá uma saudade, né? Muita saudade! Não é pouca, não. Eu estava lembrando… Aí, fica voltando na cabeça todos os grandes momentos que a gente viveu aqui no Vidigal. Uma das coisas muito engraçadas que eu falo, que eu me lembrava muito quando eu ia jogar sinuca no Largo do Santinho: que a gente via a Avenida Niemeyer e parava um pouquinho para curtir o visual na pedrinha, né? O outro lado era só mato. Quando fala essa coisa do ambiente, imagina, tudo ali era mato. Só tinha uma casa, que era do Cabeça, que morava ali. E a gente vê essa evolução que o Vidigal foi tendo. [Por] um lado dá uma saudade muito grande na gente, mas também a gente não pode fugir do Vidigal de hoje, um Vidigal, que também nos orgulha muito. De ver pessoas combatentes, resistentes e tão jovens, e isso deixa a gente muito orgulhoso.” — Guti Fraga

Osias Peçanha, também morador do Vidigal, advogado e doutorando em Ciências Sociais, analisa a importância da preservação das memórias e das lutas contra as remoções, recordando do protesto de fechamento da Avenida Niemeyer nos anos 1970.
“A memória é importante, tanto para os eventos bons como para os eventos ruins, para que eles não se repitam. O que aconteceu com os negros escravizados e os ex-escravizados? Queimaram nossa memória. Eu gostaria de saber qual foi a tribo [de onde] eu vim, que a minha mãe veio, minha avó que veio pra cá, uma das primeiras famílias a vir pro Vidigal. A memória é muito importante. Quem faz a História, quem estava ali na História, por exemplo, aqueles aqui do Vidigal que participaram da resistência, as professoras que levaram os alunos para fechar a Niemeyer.” — Osias Peçanha
Durante a roda de conversa, o grupo recordou os impactos das chuvas e dos deslizamentos no Vidigal. Conhecida como Bigu, Maria Custódia, moradora do Vidigal, lembra desses eventos e seus impactos.
“Em 1996, as pessoas lá em cima [do morro] diziam ‘bora fulano’, chamando os vizinhos, ‘vamos, tem gente soterrada’, e as pessoas desceram pra ajudar, até mesmo antes do bombeiro chegar. Então, essa união do Vidigal não pode ser perdida. A união do Vidigal tem que permanecer, porque as pessoas que estão chegando hoje não têm amor à nossa terra, à nossa raiz, à nossa semente… E nós, como moradores antigos, a gente não pode perder essa essência. Vamos fazer aparecer as histórias do Vidigal para que essas pessoas que estão chegando agora respeitem.” — Maria Custódia
Rita Machado, também moradora, relembrou as remoções de 1970 e a enchente de 1988 como eventos que marcaram a história da comunidade.
“Antes da enchente de 1996, teve outra grande… aqui em cima também teve soterramento, que foi a de 1988… Teve muita gente soterrada, mortos e tudo mais… Então, o Vidigal sempre viveu isso pela sua geografia, essas tragédias Eu tava olhando, e tá muito bonita, realmente emocionante a exposição. Às vezes, a gente não tem noção do trabalho que a gente faz ao longo de uma vida… Eu entendo que o importante é a gente estar sempre reavivando a memória, porque quem perde a memória, perde a História, perde a essência, fica desterritorializado.” — Rita Machado

Simone Rezende é moradora do Santa Marta, outra comunidade na Zona Sul, no bairro de Botafogo. Professora de educação infantil, ela trabalhou no Vidigal e reconhece a melhoria nas condições da favela, porém questiona os processos de turistificação e gentrificação.
“Gente, eu sou do tempo de barraco, tempo que ‘tal vizinho que fazia a casa do favelado’. Caminho de pé de barro, eu sou desse tempo. Então, assim, [o Vidigal] evoluiu muito, graças a Deus, melhorou, mas outras coisas, infelizmente… É muito ruim porque as pessoas vêm subir a comunidade pra ver a vista, pra ver os locais lindos e maravilhosos desse Rio de Janeiro, mas não sabem da nossa luta. Se eles pelo menos conhecessem a nossa luta, a nossa história… Eu acho que o turismo tem que começar a contar a história da comunidade.” — Simone Rezende
Ana Lima, nascida e criada no Vidigal e guia de turismo, fala sobre a importância de um turismo que seja feito por guias locais que conhecem a história da comunidade.
“Meu irmão resolveu fazer o primeiro hostel do Vidigal. Algumas pessoas citaram o turismo e eu sou guia local aqui. É muito importante a gente, que é do lugar, ser o guia dos turistas… Eu vou contando toda a história de todas essas vivências, porque eu vivi tudo isso.” — Ana Lima
Evânia de Paula é artista plástica e cofundadora da ONG Horizonte. Nascida e criada no Vidigal, atualmente, hoje moradora de Pedra de Guaratiba, ela compartilha suas percepções sobre o crescimento da favela sem a infraestrutura necessária.
“Quando eu voltei, em 2021, como pesquisadora,… eu fiquei apavorada com a quantidade de gente que tinha aqui. Eu fiquei assustada com a verticalização que a comunidade tomou, eu acho que o Vidigal está esgotado e, por isso, está sofrendo as ondas urbanas de calor com tanta frequência, e esses impactos das mudanças climáticas estão afetando diretamente a falta de infraestrutura. [O Vidigal] não conseguiu acompanhar essa quantidade de gente e agora virou um ‘point’ turístico,… mas tem que ter infraestrutura.” — Evânia da Paula

Armando Almeida Lima, o Seu Armando, um dos moradores mais antigos do Vidigal conta como, junto a outros, criou a Associação de Moradores da Vila do Vidigal.
“Eu sempre digo que a Associação de Moradores é a minha filha mais velha. Nunca abri mão disso. Ela foi fundada em julho de 1967, com a participação de alguns moradores que hoje não estão mais em nosso meio. Exatamente para combater pessoas que se diziam ‘donos da área’ e que queriam nos tirar daqui… Com essa luta, nós conseguimos expulsar os supostos donos, embargamos uma remoção em pleno governo militar e conseguimos urbanizar a comunidade, que, naquela época, era ‘tudo mato’… Nós conseguimos botar água, luz, posto médico, sede da associação, asfaltamento.” — Armando Almeida Lima
Após uma manhã de trocas nas rodas de conversa, a programação da tarde seguiu com a visitação à exposição, a exibição de filmes e fotos antigas, e as apresentações culturais.

Além da roda de capoeira realizada pelos grupos Laje Cultural Rocinha e Acorda Capoeira, Ninho de Paula apresentou seu esquete teatral Saudando os Ancestrais, e o cordelista Victor Lobisomem trouxe sua poesia popular por meio da leitura de “Memórias do Vidigal em Cordel”. Num dos trechos, ele narra a vinda do Papa João Paulo II à favela, o que ajudou na luta dos moradores pelo direito à permanência.
“Nas vésperas da visita
Um fato tão esperado
O morro do Vidigal
Fora desapropriado
Para seus fins sociais
O documento assinadoA luta não foi em vão
A terra o povo ganhou
O direito à moradia
O Vidigal conquistou
Outras lutas continuam
A missão não terminou”— Victor Lobisomen
Na atividade “Vidigal em Poesia”, Rita Machado, Dandara Aleluia e Maya Wang declamaram poemas e João Gurgel e Tom Macaveli realizaram apresentações musicais. Os grupos Vidiga na Social e Batuca Vidi encerraram a programação com muita energia. Além de envolverem o público presente com sua percussão, ambos foram contemplados com a homenagem de reconhecimento por sua contribuição à comunidade.
Veja a Comemoração dos 85 Anos do Vidigal com a Exposição Memória Climática das Favelas:
*A Rede Favela Sustentável e o RioOnWatch são ambas iniciativas gerenciadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras. A exposição de Memória Climática das Favelas reúne 1.145 depoimentos de 382 moradores de dez favelas da capital fluminense, coletados e sistematizados ao longo de três anos de construção coletiva. A exposição foi desenvolvida por onze museus e coletivos de memória de favelas integrantes da RFS: Museu da Maré, Museu Sankofa, Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz, Museu de Favela, Núcleo de Memórias do Vidigal, Alfazendo (Cidade de Deus), Centro de Integração da Serra da Misericórdia, Museu do Horto, Fala Akari, Conexões Periféricas (Rio das Pedras) e Museu das Remoções.
Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.

