‘Quem Perde a Memória, Perde a Essência’: Celebrando 85 Anos de História, Vidigal Realiza Evento de Homenagens e Cultura Inspirado pela ‘Memória Climática das Favelas’

'Vamos Fazer Aparecer as Histórias do Vidigal'

A Exposição Memória Climática das Favelas esteve na celebração de 85 anos do Vidigal. Foto: Bárbara Dias
A Exposição Memória Climática das Favelas esteve na celebração de 85 anos do Vidigal. Foto: Bárbara Dias

No dia 26 de outubro, a comunidade do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro comemorou seus 85 anos. A comemoração organizada pelo Núcleo de Memórias do Vidigal realizou uma roda de conversa junto da exposição Memória Climática das Favelas, a entrega da homenagem Comendador Armando Almeida, e trouxe uma roda de capoeira realizada pelos grupos Laje Cultural Rocinha e Acorda Capoeira, o “Memórias do Vidigal em Cordel”, a atividade “Vidigal em poesia”, e apresentações musicais pelos grupos Vidiga na Social e Batuca Vidi.

em parceria com a , a exposição foi inaugurada com uma roda de conversa com moradores, mobilizadores comunitários e demais participantes. O dia de atividades contou ainda com apresentações culturais e artísticas, incluindo a  Lima a personalidades, coletivos e projetos sociais vidigalenses que transformam a comunidade.

A exposição Memória Climática das Favelas, fruto de rodas de conversa realizadas por 10 museus e projetos de memória da Rede Favela Sustentável*, já circulou este ano pela Maré, AcariCidade de Deus e Rio das Pedras. Bárbara Nascimento, cria do Vidigal e protagonista do Núcleo de Memórias do Vidigal, que realizou a roda da comunidade que ajudou a gerar e está refletida na exposição, introduziu e mediou uma troca inspirada da exposição.

“A gente hoje vai falar sobre memórias do Vidigal, relacionando com a questão climática, que é uma questão comum a todas as favelas. Quem passou aqui pela exposição conseguiu perceber isso, porque [a questão climática] ou é motivo para nos remover, ou nos remove, de qualquer forma, devido às tragédias, às desgraças. Então, eu convido todos aqui para falar.” — Bárbara Nascimento

Moradores, mobilizadores comunitários, integrantes da Rede Favela Sustentável e do Núcleo de Memórias do Vidigal no evento de aniversário do Vidigal. Foto: Bárbara Dias
Moradores, mobilizadores comunitários, integrantes da Rede Favela Sustentável e do Núcleo de Memórias do Vidigal no evento de aniversário do Vidigal. Foto: Bárbara Dias

Guti Fraga, cria do Vidigal e fundador do Grupo de Teatro Nós do Morro, foi homenageado. Ele compartilha suas percepções sobre as mudanças no Vidigal ao longo dos anos.

“A gente, que é do Vidigal, tem lembranças e dá uma saudade, né? Muita saudade! Não é pouca, não. Eu estava lembrando… Aí, fica voltando na cabeça todos os grandes momentos que a gente viveu aqui no Vidigal. Uma das coisas muito engraçadas que eu falo, que eu me lembrava muito quando eu ia jogar sinuca no Largo do Santinho: que a gente via a Avenida Niemeyer e parava um pouquinho para curtir o visual na pedrinha, né? O outro lado era só mato. Quando fala essa coisa do ambiente, imagina, tudo ali era mato. Só tinha uma casa, que era do Cabeça, que morava ali. E a gente vê essa evolução que o Vidigal foi tendo. [Por] um lado dá uma saudade muito grande na gente, mas também a gente não pode fugir do Vidigal de hoje, um Vidigal, que também nos orgulha muito. De ver pessoas combatentes, resistentes e tão jovens, e isso deixa a gente muito orgulhoso.” — Guti Fraga

Guti Fraga, fundador do grupo Nós do Morro, fala sobre suas memórias da comunidade do Vidigal. Foto: Bárbara Dias
Guti Fraga, fundador do grupo Nós do Morro, fala sobre suas memórias da comunidade do Vidigal. Foto: Bárbara Dias

Osias Peçanha, também morador do Vidigal, advogado e doutorando em Ciências Sociais, analisa a importância da preservação das memórias e das lutas contra as remoções, recordando do protesto de fechamento da Avenida Niemeyer nos anos 1970.

“A memória é importante, tanto para os eventos bons como para os eventos ruins, para que eles não se repitam. O que aconteceu com os negros escravizados e os ex-escravizados? Queimaram nossa memória. Eu gostaria de saber qual foi a tribo [de onde] eu vim, que a minha mãe veio, minha avó que veio pra cá, uma das primeiras famílias a vir pro Vidigal. A memória é muito importante. Quem faz a História, quem estava ali na História, por exemplo, aqueles aqui do Vidigal que participaram da resistência, as professoras que levaram os alunos para fechar a Niemeyer.” — Osias Peçanha 

Durante a roda de conversa, o grupo recordou os impactos das chuvas e dos deslizamentos no Vidigal. Conhecida como Bigu, Maria Custódia, moradora do Vidigal, lembra desses eventos e seus impactos.

“Em 1996, as pessoas lá em cima [do morro] diziam ‘bora fulano’, chamando os vizinhos, ‘vamos, tem gente soterrada’, e as pessoas desceram pra ajudar, até mesmo antes do bombeiro chegar. Então, essa união do Vidigal não pode ser perdida. A união do Vidigal tem que permanecer, porque as pessoas que estão chegando hoje não têm amor à nossa terra, à nossa raiz, à nossa semente… E nós, como moradores antigos, a gente não pode perder essa essência. Vamos fazer aparecer as histórias do Vidigal para que essas pessoas que estão chegando agora respeitem.” — Maria Custódia 

Rita Machado, também moradora, relembrou as remoções de 1970 e a enchente de 1988 como eventos que marcaram a história da comunidade.

“Antes da enchente de 1996, teve outra grande… aqui em cima também teve soterramento, que foi a de 1988… Teve muita gente soterrada, mortos e tudo mais… Então, o Vidigal sempre viveu isso pela sua geografia, essas tragédias Eu tava olhando, e tá muito bonita, realmente emocionante a exposição. Às vezes, a gente não tem noção do trabalho que a gente faz ao longo de uma vida… Eu entendo que o importante é a gente estar sempre reavivando a memória, porque quem perde a memória, perde a História, perde a essência, fica desterritorializado.” — Rita Machado

A vista e localização do Vidigal, na orla da Zona Sul do Rio de Janeiro entre Leblon e São Conrado, levou ao seu crescimento populacional, à verticalização, à turistificação e à gentrificação. Foto: Bárbara Dias
A vista e localização do Vidigal, na orla da Zona Sul do Rio de Janeiro entre Leblon e São Conrado, levou ao seu crescimento populacional, à verticalização, à turistificação e à gentrificação. Foto: Bárbara Dias

Simone Rezende é moradora do Santa Marta, outra comunidade na Zona Sul, no bairro de Botafogo. Professora de educação infantil, ela trabalhou no Vidigal e reconhece a melhoria nas condições da favela, porém questiona os processos de turistificação e gentrificação.

“Gente, eu sou do tempo de barraco, tempo que ‘tal vizinho que fazia a casa do favelado’. Caminho de pé de barro, eu sou desse tempo. Então, assim, [o Vidigal] evoluiu muito, graças a Deus, melhorou, mas outras coisas, infelizmente… É muito ruim porque as pessoas vêm subir a comunidade pra ver a vista, pra ver os locais lindos e maravilhosos desse Rio de Janeiro, mas não sabem da nossa luta. Se eles pelo menos conhecessem a nossa luta, a nossa história… Eu acho que o turismo tem que começar a contar a história da comunidade.” — Simone Rezende

Ana Lima, nascida e criada no Vidigal e guia de turismo, fala sobre a importância de um turismo que seja feito por guias locais que conhecem a história da comunidade.

“Meu irmão resolveu fazer o primeiro hostel do Vidigal. Algumas pessoas citaram o turismo e eu sou guia local aqui. É muito importante a gente, que é do lugar, ser o guia dos turistas… Eu vou contando toda a história de todas essas vivências, porque eu vivi tudo isso.” — Ana Lima

Evânia de Paula é artista plástica e cofundadora da ONG Horizonte. Nascida e criada no Vidigal, atualmente, hoje moradora de Pedra de Guaratiba, ela compartilha suas percepções sobre o crescimento da favela sem a infraestrutura necessária.

“Quando eu voltei, em 2021, como pesquisadora,… eu fiquei apavorada com a quantidade de gente que tinha aqui. Eu fiquei assustada com a verticalização que a comunidade tomou, eu acho que o Vidigal está esgotado e, por isso, está sofrendo as ondas urbanas de calor com tanta frequência, e esses impactos das mudanças climáticas estão afetando diretamente a falta de infraestrutura. [O Vidigal] não conseguiu acompanhar essa quantidade de gente e agora virou um ‘point’ turístico,… mas tem que ter infraestrutura.” — Evânia da Paula

Seu Armando (à direta) concede certificado de homenagem a Seu Aleluia (à esquerda). Ambos são figuras históricas do Vidigal. Foto: Bárbara Dias
Seu Armando (à direita) concede certificado de homenagem a Seu Aleluia (à esquerda). Ambos são figuras históricas do Vidigal. Foto: Bárbara Dias

Armando Almeida Lima, o Seu Armando, um dos moradores mais antigos do Vidigal conta como, junto a outros, criou a Associação de Moradores da Vila do Vidigal.

“Eu sempre digo que a Associação de Moradores é a minha filha mais velha. Nunca abri mão disso. Ela foi fundada em julho de 1967, com a participação de alguns moradores que hoje não estão mais em nosso meio. Exatamente para combater pessoas que se diziam ‘donos da área’ e que queriam nos tirar daqui… Com essa luta, nós conseguimos expulsar os supostos donos, embargamos uma remoção em pleno governo militar e conseguimos urbanizar a comunidade, que, naquela época, era ‘tudo mato’… Nós conseguimos botar água, luz, posto médico, sede da associação, asfaltamento.” — Armando Almeida Lima

Após uma manhã de trocas nas rodas de conversa, a programação da tarde seguiu com a visitação à exposição, a exibição de filmes e fotos antigas, e as apresentações culturais. 

Grupo Batuca Vidi, que se apresentou ao público do evento dos 85 anos do Vidigal e do lançamento da Exposição Memória Climática das Favelas. Foto: Bárbara Dias
Grupo Batuca Vidi, que se apresentou ao público do evento dos 85 anos do Vidigal. Foto: Bárbara Dias

Além da roda de capoeira realizada pelos grupos Laje Cultural Rocinha e Acorda Capoeira, Ninho de Paula apresentou seu esquete teatral Saudando os Ancestrais, e o cordelista Victor Lobisomem trouxe sua poesia popular por meio da leitura de “Memórias do Vidigal em Cordel”. Num dos trechos, ele narra a vinda do Papa João Paulo II à favela, o que ajudou na luta dos moradores pelo direito à permanência.

“Nas vésperas da visita
Um fato tão esperado
O morro do Vidigal
Fora desapropriado
Para seus fins sociais
O documento assinado

A luta não foi em vão
A terra o povo ganhou
O direito à moradia
O Vidigal conquistou
Outras lutas continuam
A missão não terminou” 

— Victor Lobisomen 

Na atividade “Vidigal em Poesia”, Rita Machado, Dandara Aleluia e Maya Wang declamaram poemas e João Gurgel e Tom Macaveli realizaram apresentações musicais. Os grupos Vidiga na Social e Batuca Vidi encerraram a programação com muita energia. Além de envolverem o público presente com sua percussão, ambos foram contemplados com a homenagem de reconhecimento por sua contribuição à comunidade.

Veja a Comemoração dos 85 Anos do Vidigal com a Exposição Memória Climática das Favelas: 

Exposição 'Memória Climática das Favelas' no Vidigal, 26 de outubro de 2025

*A Rede Favela Sustentável e o RioOnWatch são ambas iniciativas gerenciadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras. A exposição de Memória Climática das Favelas reúne 1.145 depoimentos de 382 moradores de dez favelas da capital fluminense, coletados e sistematizados ao longo de três anos de construção coletiva. A exposição foi desenvolvida por onze museus e coletivos de memória de favelas integrantes da RFS: Museu da MaréMuseu SankofaNúcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa CruzMuseu de FavelaNúcleo de Memórias do VidigalAlfazendo (Cidade de Deus), Centro de Integração da Serra da MisericórdiaMuseu do HortoFala AkariConexões Periféricas (Rio das Pedras) e Museu das Remoções.

Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.


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