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Durante o que Mário Brum, em sua tese Cidade Alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro, chamou de “Era das remoções” (1960-1973), mais de 175.000 pessoas foram removidas de favelas no Estado do Rio. O Vidigal permaneceu. Porém, há exatos 45 anos, em 24 de outubro de 1977, moradores acordaram com uma marcação nas portas de seus barracos: “FL” (Fundação Leão XIII) e uma numeração.
Foi assim que a Fundação Leão XIII demarcou as moradias que seriam removidas da localidade conhecida como 314. Seus ocupantes seriam enviados para Antares, Zona Oeste da cidade, em caminhões da Comlurb, órgão responsável pela limpeza pública municipal. Seres humanos tratados como lixo!
A Associação dos Moradores da Vila do Vidigal (AMVV), através do apoio do deputado Aluísio Teixeira, conseguiu que a remoção daquele dia fosse suspensa. Ainda assim, alguns moradores desejaram sair. Acreditaram na promessa de um apartamento duplex para cada família. A fim de verificar se o local oferecido pelo Prefeito Marcos Tamoyo (apelidado no Vidigal de “Marcos Tramoia”) possuía condições estruturais que justificassem a substituição do local de moradia e convivência social, um grupo de mulheres foi até Antares. As habitações eram minúsculas. Não havia escola, creche, hospital. Nada. Segundo um dos líderes da época, Carlos Duque, “Antares parecia um campo de concentração”.
Os deputados Délio dos Santos e Flores da Cunha se somaram à luta dos moradores. Sobral Pinto, o célebre jurista conhecido como “Senhor Justiça”, assumiu a causa favelada e destinou seu representante, Bento Rubião, como defensor dos moradores ameaçados pela remoção.
Foram várias as estratégias elaboradas pelos líderes (Seu Armado, Carlos Duque, Carlinhos Pernambuco, Mário Sérgio e Paulinho) para retardar a remoção. Foi oferecido café da manhã para os funcionários da Comlurb, que a cada viagem para Antares levavam uma vassoura ou um balde e outros objetos de menor importância. Alunos da Escola Municipal Almirante Tamandaré, organizados pela diretora Eneida Veloso Brasil, fizeram um cordão humano impedindo a subida dos caminhões que retirariam os moradores. Até o desfile do Acadêmicos do Vidigal foi usado como argumento para se adiar a ordem de despejo. Afinal, o carnaval é a maior festa popular e a favela é o reduto do samba.
Enquanto os moradores elaboravam estratégias de resistência, as procurações eram expedidas. Assim, cada tentativa de remoção era contida por Bento Rubião. Aqueles que não acreditaram na capacidade do advogado ou no “poder” daquele documento, infelizmente, foram levados para Antares por não possuírem representação jurídica.
Um morador havia tido uma desilusão amorosa e aproveitou a ocasião para recomeçar a vida em outro lugar: aceitou ir para Antares, episódio retratado no filme de Sérgio Ricardo, Bandeira de Retalhos. O barraco desse homem virou sede da associação de moradores.
O Vidigal recebeu também o apoio de membros da Igreja Católica ligados à teologia da libertação. O próprio Arcebispo Dom Eugênio Sales era um entusiasta da luta favelada. Os moradores não possuíam ligação político partidária; eram apenas indivíduos pertencentes à classe oprimida, organizados na busca do direito à moradia. Devido a essa luta da população favelada vidigalense, em 1977, foi fundada a Pastoral das Favelas. Graças a esse órgão da Igreja Católica, o Vidigal conseguiu o apoio do renomado jurista citado anteriormente, Sobral Pinto.
A alegação para a retirada dos moradores era a iminência de deslizamentos da encosta. Um geólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi contratado pela Pastoral das Favelas e comprovou-se que a localidade não sofria risco de desabamento. Descobriu-se que o verdadeiro intento era imobiliário, pretendia-se construir habitações luxuosas destinadas à classe dominante.
A resistência popular contra a remoção de barracos localizados entre dois bairros da Zona Sul, São Conrado e Leblon, em plena ditadura militar, despertou o interesse da imprensa da época. Indivíduos que não eram do morro colocavam-se como voluntários em prol da estruturação e desenvolvimento local. Estudantes universitários, médicos, advogados, arquitetos e jornalistas se ofereciam para o atendimento à população do Vidigal.
A luta conquistou o apoio de Ney Matogrosso, por exemplo, que realizou um show no Colégio Stella Maris para colaborar com as custas processuais contra a remoção dos moradores. Segundo Filomena Di Prínzio, integrante do grupo de mulheres da AMVV e colaboradora do Jornal O Mensageiro, importante veículo de comunicação local, foi inusitada a apresentação do cantor com um cacho de bananas cobrindo as partes íntimas, diante das religiosas da instituição católica que cederam o espaço.
A AMVV era forte, respeitada e atuante. Colaborou, inclusive, para a estruturação e implementação de várias associações de moradores de favelas. O órgão foi fundado em 1967 para inibir ações de despejo (as ameaças de remoção não se iniciaram em 1967, embora nesse ano tenham sido mais intensas). José Ferreira foi o primeiro presidente da AMVV. Modesto, vice-presidente, era babalorixá e tinha um terreiro onde hoje é a Rampa do 314. Como a instituição representativa da população favelada não possuía uma sede, as reuniões comunitárias ocorriam no Terreiro de Candomblé do Pai Modesto. Muitos desses indivíduos eram católicos, mas a religião dos membros não era uma questão: o objetivo era a união para a organização e a resistência da favela. Fé não se misturava com interesses comuns.
Na década de 1970, José Ferreira e Pai Modesto se mudaram do morro. As lideranças comunitárias se encontravam na Birosca da Conceição e na Birosca do Aluísio. Na década de 1980, a sede atual da AMVV foi construída, coletivamente.
O Vidigal foi vencendo as disputas jurídicas, mas a luta só foi findada em 1980, ano da visita do Papa João Paulo II ao Vidigal. O maior representante da igreja católica escolheu essa favela como um de seus destinos durante a passagem pelo Brasil, devido à repercussão da luta da população favelada e a relação dos seus líderes com a Pastoral das Favelas. Na véspera de sua visita ao morro, foi assinada pelo então Governador Chagas Freitas, a desapropriação do Vidigal para fins sociais. O Vidigal venceu. Há quem atribui essa vitória à vinda do papa. Porém, se a causa favelada despertou tanto interesse, é porque houve a união e luta dos moradores, liderados pela instituição que os representava.
Para Paulo Muniz, o Paulinho, a visita do líder da Igreja Católica foi a garantia de permanência dos moradores. Afinal, a vinda do Papa ao Vidigal foi noticiada em todo o mundo. Ninguém ousaria despejar a “favela do Papa”, como o morro ficou conhecido. Sua santidade quando aqui esteve surpreendeu a todos ao doar seu anel para o Vidigal. Hoje a joia está guardada no Museu da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Uma réplica fica guardada na Capela São Francisco de Assis e é exposta em eventos festivos da igreja.
A atual sede da AMVV, assim como outros prédios públicos como o posto de saúde, o centro cultural e a capela São Francisco de Assis foram construídos através de mutirões. O asfaltamento e instalação da tubulação de água eram feitos por moradores, aos finais de semana. Homens, mulheres e crianças se juntavam em meio ao barro, cimento e tijolos. As moradias também eram assim construídas: coletivamente. Inclusive, o barraco da minha família.
A união dos moradores e o espírito de luta diante da diversidade possibilitaram as conquistas que foram aos poucos alcançadas. Destaco as ações do Grupo Jovem e do Grupo de Mulheres da AMVV. O primeiro era responsável pelos eventos comunitários; o segundo incumbido de encaminhar e cobrar do poder público melhorias estruturais para o Vidigal, como abastecimento de água, eletrificação das ruas, construção de creche e posto médico.
O Vidigal tem uma característica peculiar em relação à denominação de suas ruas: dentre as medidas adotadas por esses grupos para a organização da favela, registrou-se as ruas do Vidigal com nomes daqueles que atuaram na luta contra a remoção dos barracos. Advogados, jornalistas, pessoas ligadas à Igreja Católica (Pastoral das Favelas), lideranças comunitárias (vários nomes aqui citados) e datas marcantes na trajetória do morro (entre elas, o dia 24 de outubro) foram homenageados. A favela escolheu seus registros.
No que se refere à denominação do território, o Vidigal apresenta outra particularidade: tem uma praia homônima. Em 1968, as obras do Sheraton Hotel previam acesso exclusivo de seus hóspedes. Os moradores protestaram. Em 1971, ganhamos legalmente o acesso livre à Prainha do Vidigal.
Outro marco na história do Vidigal foi a realização do Show Tijolo por Tijolo, em 1982, na Concha Acústica da UERJ, idealizado e dirigido por Sérgio Ricardo. O multiartista, morador do Vidigal, um dos articuladores das estratégias de resistência contra a remoção, e diretor cultural da AMVV produziu esse show com o propósito de angariar fundos para a construção de casas de alvenaria que substituiriam os barracos dos moradores, além da construção de moradias para as famílias atingidas pelas chuvas daquele verão. O espetáculo contou com a participação de renomados artistas como Zé Ketti, Zezé Motta, Gonzaguinha, João Bosco, Chico Buarque e outros.
O show foi reeditado em 2016, coletivamente, por lideranças e artistas locais. Dirigido pelo seu idealizador, Sérgio Ricardo, tinha o intuito de revisitar e celebrar momentos importantes nos 75 anos (oficiais) de história do Vidigal, comemorados em 2015 (devido a questões climáticas, o show foi realizado no ano seguinte). Assim como na primeira edição, contamos com a apresentação de grandes nomes da música que participaram da primeira edição, João Bosco e Chico Buarque, além da portuguesa Carminho e diversos artistas vidigalenses.
Nossa vocação cultural é inegável! Na década de 1980, bambas como Marcão, Marquinho, Vidigal Samba Show, e outros moradores locais, organizavam rodas de samba que atraíam para o morro nomes de prestígio. É o caso da grande dama do samba, Jovelina Pérola Negra, que homenageou a favela com o samba Catatau.
Outras gerações de sambistas surgiram no Vidigal, como, por exemplo o Fundo de Varanda. Bebendo na fonte do reconhecido grupo carioca Fundo de Quintal, jovens moradores apresentavam ao público do morro um samba “de gente grande”. De lá para cá, vários talentos da música surgiram, como Melanina Carioca, Só Jesus Salva, A Bronca, BatucaVidi, Thiago Martins, e Nifre Records.
Vale ressaltar que um dos maiores grupos teatrais e celeiro de atores do cinema atual, Nós do Morro, formou-se no Vidigal. O grupo, fundado em 1986, surgiu do sonho de Guti Fraga de proporcionar aos moradores acesso à arte e à cultura. Nesses 36 anos de atividades ininterruptas, o Nós do Morro conquistou notoriedade nacional e internacional. Beneficiou 12.000 pessoas, realizou 103 peças, 10 curtas metragens, 20 espetáculos profissionais e alcançou um público de 50.376 pessoas. É símbolo de resistência através da arte! Este ano os atores Babu Santana e Marcello Melo assumiram a direção. A gestão composta por frutos da instituição configura o espírito de renovação e comprova que a raiz é forte e a árvore, frutífera. Muitas sementes germinarão.
E por falar em raízes do morro, o Acadêmicos do Vidigal, antigo bloco fundado em março de 1976, hoje agremiação carnavalesca, é uma das maiores representantes da nossa cultura e espírito de resistência. Mesmo sem quadra para os ensaios e sem verba para a confecção de fantasias, leva todo ano o carnaval para a avenida. São gerações empenhadas em elevar o Vidigal à posição de destaque que chegou a ocupar na década de 1990.
Superação é uma marca vidigalense. Após deslizamentos de terras na área conhecida como Forte, algumas famílias foram desapropriadas. A área de aproximadamente 8.500m² passou a ser espaço de despejo de tudo que o entorno desejava se desfazer: móveis, pneus, eletrodomésticos e todo o tipo de lixo era ali abandonado. Um grupo de garis comunitários e outros moradores retiraram 16 toneladas de lixo e entulho, e transformaram o local no Parque Ecológico Sitiê. O que um dia foi um lixão, hoje é reconhecido como agrofloresta pela Secretaria de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, por preservar a mata nativa e cultivar o solo.
Bom de lutas, o Vidigal é destaque também nos ringues. O Instituto Todos na Luta, voltado para a prática do boxe, levou dois atletas para a Olimpíada do Brasil em 2016: Michel Borges e Patrick Lourenço. Em 2012, Esquiva Falcão foi medalhista na Olimpíada de Londres. Fundado na década de 1990 pelo professor de boxe Raff Giglio, o projeto já conquistou 37 medalhas: doze de ouro, oito de prata e 17 de bronze.
É claro que a história do Vidigal não é marcada só por vitórias. Como toda favela, nossa trajetória passa por movimentos expulsatórios: tentativas de remoção, disputa de grupos rivais pelo domínio do comércio de ilícitos, desabamentos, força policial e gentrificação.
Ainda hoje os moradores recebem ordens de despejo. No dia 6 de fevereiro de 2019, o Alerta Rio registrou 12 milímetros de chuva e ventos de mais de 100 km/h no Vidigal. Esses fenômenos provocaram deslizamento de encosta, desabamento de casas e uma vítima fatal. A favela, às escuras, se uniu em amparo às vítimas. Foi uma comoção. Atualmente, 30 famílias da área conhecida como Jaqueira recebem o aluguel social de ínfimos R$400 para sobreviverem em um espaço, que devido à gentrificação, não oferece moradias que esse valor possa pagar. Outros moradores nem isso recebem.
No último mês de agosto, 63 famílias dessa área foram informadas que suas casas serão demolidas. A indenização oferecida pela Secretaria Municipal de Habitação é de em média R$60.000. Foi oferecido R$11.942,69 por uma das moradias. É lógico que esse valor não é capaz de garantir a permanência dessa família no Vidigal e nem a transferência para um lugar digno.
Sendo assim, fica evidente que o Vidigal ainda tem demandas a serem superadas. Os rótulos que indivíduos externos dão ao local (Favela Grife, Favela Pop), a vista exuberante e a gentrificação acabam por camuflar problemas próprios de territórios periféricos. Enquanto isso, seus moradores elaboram estratégias de resistência através da arte, da educação, da cultura, do esporte e da consciência política.
Há 45 anos, o Vidigal resistiu em plena ditadura militar. Apesar do atual presidente da república ter a favela como território de bandidos, o Vidigal se configura como um lugar de potências, cidadãos que tradicionalmente elegem candidaturas implicadas com a classe trabalhadora. Temos a resistência como marca e a democracia como bandeira. Não nos afastemos disso. Precisamos preservar e difundir essa memória para que o presente tenha ferramentas de elaboração do futuro. Ainda é preciso resistir!
Sobre a autora: Bárbara Nascimento, cria da favela do Vidigal, é professora de Língua Portuguesa das redes públicas municipal e estadual do Rio de Janeiro. É formada em Letras (UFRJ: 2002), e mestra em Memória Social (UNIRIO: 2019). Criou e dirige o Núcleo de Memórias do Vidigal. Esse é uma gama de ações, construção de acervos e variados registros, que buscam servir de suportes da memória.