Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena.
Não há como contar a história do Vidigal, Zona Sul, e não mencionar Carlos Raimundo Duque, importante liderança desse território. Nascido em 26 de abril de 1945, aos cinco anos de idade, Duque mudou-se com a família para o Vidigal.
“Era tudo mato. O total era de umas 25 casas pegando toda a área da favela. Geralmente, o cara tinha uma casinha aqui e cercava toda a área como se fosse um sitiozinho. O pessoal criava gado, porco, cabrito… tudo solto!” — Carlos Duque
Seu Duque e a Luta pela Permanência do Vidigal
Seu Duque, como é conhecido por gerações mais novas, participou da fundação da Associação de Moradores da Vila do Vidigal (AMVV) em 1967. Antes mesmo da instituição ser inaugurada, sua presença era certa nas reuniões comunitárias que ocorriam na área do 314, no terreiro de candomblé do babalorixá conhecido como Pai Modesto.
A AMVV foi fundada para coibir as tentativas de remoção que o Vidigal sofria desde a década de 1950. Porém, foi em 1977 que a tentativa de retirada dos moradores foi mais contundente. Havia o interesse de construir moradias de luxo na área do morro denominada 314, local de moradia do Seu Duque.
Ele e outras lideranças, como Armando Almeida Lima, Carlos Pernambuco e Mário Sérgio, que compunham o quadro da AMVV, comandaram a resistência dos moradores. Na época, foi comprovado que o iminente risco de deslizamento de terras naquela região era uma artimanha para a substituição de favelados por populações mais abastadas, que pretendiam erguer mansões no lugar.
Carlos Duque foi o idealizador de várias estratégias usadas para construir o sentimento de coletividade e pertencimento. Por exemplo, a fim de conquistar a adesão dos moradores para a luta comunitária que a AMVV vinha estruturando, Seu Duque apelou para a paixão nacional: o futebol.
Durante a segunda formação de dirigentes, ocupou o cargo de vice-presidente e usou como estratégia de desenvolvimento e fortalecimento da identidade vidigalense a criação de um time de futebol local, o Niemeyer Futebol Clube. Devido à cor do calção do uniforme ser vermelha e os jogadores serem na maioria negros, o time ficou conhecido como “Saci”. Dizem por aí que os jogadores não possuíam muita habilidade com a bola, mas o intento do Seu Duque de criar um espírito de coletividade foi conquistado.
Em outubro de 1977, as cartas de remoção emitidas pela Instituição Leão XIII chegaram. Caminhões da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB) levaram os moradores do 314 e seus pertences para Antares, Zona Oeste do Rio. O conjunto habitacional oferecido pela Prefeitura do Rio não dispunha de aparelhos públicos e infraestrutura, sem falar que era distante dos locais de oferta de emprego e dos laços de sociabilidade até então desenvolvidos na favela da Zona Sul.
Seu Duque elaborou mais uma estratégia de resistência. Entrou em contato com Eneida Brasil, diretora da Escola Municipal Almirante Tamandaré, localizada no Vidigal, e solicitou apoio.
“Falamos com a Diretora Eneida Veloso Brasil [nome de rua hoje no Largo do Santinho], ela concordou e colocamos as crianças do Almirante Tamandaré na frente. Quando o caminhão da COMLURB chegou, não tinha mudança alguma na rua. Isso era em outubro; então, alegamos ao prefeito que na época era o Marcos Tamoyo, que se fôssemos para Antares, as crianças perderiam o ano.” — Carlos Duque
As tentativas de remoção persistiam. Duque era motorista do colégio católico Stella Maris, localizado aos pés do Vidigal. Católico, bom profissional no traslado dos abastados alunos da escola vizinha à favela, conquistou o apoio das religiosas que administravam a instituição à causa favelada. Então, a pedido de Carlos Duque, as freiras declararam um dia sem aulas e cederam os ônibus de transporte dos alunos para ele, que levou os moradores que sofriam ameaça de remoção para conhecerem Antares. A estratégia se mostrou bem sucedida.
“Eles começaram a convencer as nossas mulheres dizendo que, em Antares, teriam uma casa duplex, para que não se apegassem à vista. Eu pedi um ônibus emprestado para a madre superiora do Stella Maris e levei as pessoas para conhecerem as casas. Não teve aula na escola. Pegamos os sete ônibus e levamos muita mulher e criança para Antares. Parecia um campo de concentração. Um mar de nada. Não tinha uma árvore. As casas pareciam casas de pombo. Uma caixa d’água de ferrugem… Soltamos a mulherada lá e falei: ‘Vocês têm uma hora’. Já tinha gente lá, saindo da Praia do Pinto e outras favelas [removidas]. Ah, as mulheres voltaram de lá bravas. Levamos umas trezentas pessoas. Depois disso, nem precisamos fazer campanha. Elas não queriam ir nem a pau!” — Carlos Duque
Essa aproximação entre as lideranças vidigalenses e a Igreja chamou atenção de outros setores católicos. Sobral Pinto, renomado jurista, católico e amigo pessoal de D. Eugênio Sales, nomeou o advogado Bento Rubião, membro de seu escritório de advocacia, como o representante da causa favelada. Em 1980, os moradores conquistaram a permanência. Segundo os moradores, esse foi o primeiro caso em que a remoção de favelados foi vencida por via judicial na História.
Esse contexto de luta dos moradores do Vidigal contra remoção motivou a fundação da Pastoral das Favelas, em 1978. A experiência bem sucedida de parceria com setores da Igreja Católica foi levada a outras favelas, que também contaram com o apoio jurídico de renomados advogados para a garantia de permanência em seus territórios. O documento Cadernos de Pastoral (1979) relata que, incluindo o Vidigal, as ações ajuizadas beneficiaram cerca de 10.000 famílias moradoras das favelas: Conjunto Cardeal Câmara, Senador Camará, Cantagalo, Morro São Bento, Loteamento Santa Rosa, Morro dos Cabritos, Chácara do Céu, Vigário Geral e Morro da Formiga.
Uma Vida Dedicada ao Direito à Moradia
Carlos Raimundo Duque, o Seu Duque, é figura fundamental na História do Vidigal, da luta e da organização favelada do Rio de Janeiro. Além de ter sido um dos líderes contra a remoção, foi presidente da Associação de Moradores da Vila do Vidigal (AMVV) e diretor da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), entre 1979 e 1988. Duque participou da reestruturação da instituição representativa das favelas no momento em que foram reabertas as organizações da sociedade civil que haviam sido colocadas na ilegalidade pela Ditadura Militar.
O período ditatorial durou até 1985, porém, nas favelas, a militarização perdura até hoje. A fim de que o Estado brasileiro reconheça e repare as perseguições sofridas por lideranças de favelas e integrantes da FAFERJ durante a Ditadura Militar, a instituição representativa encaminhou ao Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida um documento requerendo Declaração de Anistia Política Coletiva.
Seu Duque é parte dessa história, embora afirme que naquele momento não possuía inclinação política, apenas “defendia o direito à moradia”. No final da década de 1970, a FAFERJ estava fragilizada, devido às perseguições impostas pelo sistema político vigente. Duque, junto com lideranças como Irineu Guimarães, do Jacarezinho (favela na época conhecida pela atuação política junto ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB), rompeu com a postura clientelista que a instituição vinha adotando e fortaleceu a ação em rede, atuando com diversos seguimentos da sociedade, entre eles, a Igreja Católica.
No entanto, sua dedicação à FAFERJ requeria tempo. Logo, ele precisou da colaboração da juventude da época para dar continuidade ao trabalho realizado no Vidigal.
“Quando eu fui para a FAFERJ, vi que havia um grupo jovem. Cheguei aqui e disse para eles se organizarem, formarem passeios, propostas… Vi que o Paulinho se destacava. Pensei: pronto, já posso formar uma diretoria e me dedicar só à FAFERJ.” — Carlos Duque
Assim como várias pessoas que atuaram na luta contra a remoção, Seu Duque foi homenageado como nome de rua no Vidigal. Por ironia do destino, a Rua Carlos Duque, localizada na parte alta do morro, na localidade do Bagulheiro, sofre remoções e com a especulação imobiliária.
Desde 2003, há um auto de interdição de várias casas da rua. Apesar disso, a partir da implementação da UPP no Vidigal e o acelerado interesse de investidores externos, moradores da Rua Carlos Duque recebem propostas para que vendam suas moradias, que dispõem de uma vista deslumbrante para a Avenida Niemeyer e São Conrado.
Em fevereiro de 2019, fortes chuvas atingiram o Vidigal, resultando em uma vítima fatal e dezenas de desabrigados. Em abril do mesmo ano, casas localizadas na Rua Carlos Duque, que nunca receberam obras de contenção, desabaram e os moradores das casas vizinhas foram removidos.
A história de vitória favelada pela permanência na localidade onde está a Rua Carlos Duque não se repetiu. Por isso, é tão importante que a história dos nossos heróis seja preservada e difundida. Essas memórias são capazes de recuperar trajetórias de resistência do passado e adaptá-las ao presente com vistas a projetar um futuro mais digno para as favelas.
Em partes da África, o griot é aquele que detém o conhecimento e é encarregado de transmiti-lo às gerações futuras. Segundo o dicionário, “duque” é um título de nobreza que designa líder, chefe. No Vidigal, temos essa nobre liderança ancestral. Aqui no morrão, nosso duque é negão e griot!
Sobre a autora: Bárbara Nascimento, cria da favela do Vidigal, é professora de Língua Portuguesa das redes públicas municipal e estadual do Rio de Janeiro. É formada em Letras (UFRJ: 2002), e mestra em Memória Social (UNIRIO: 2019). Criou e dirige o Núcleo de Memórias do Vidigal, uma gama de ações, construção de acervos e variados registros, que buscam servir de suporte da memória.