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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
O Morro Santo Amaro, no Catete, bairro da Zona Sul do Rio, vivenciou no dia 13 de junho, uma noite de conscientização ambiental através da arte e da cultura. Em sua quarta edição, Resenha Climática: O Clima é de Arte reuniu moradores, professores, ativistas, coletivos e demais interessados em pautas ambientais na favela. A proposta do evento, que recebeu cerca de 120 pessoas, foi aproximar as comunidades de assuntos climáticos, utilizando expressões artísticas e culturais. O encontro acontece anualmente e é uma realização do coletivo Coalizão O Clima é de Mudança.
Na edição 2024, teve Batalha do Conhecimento, comandada pela Roda Cultural Santo Amaro, onde MCs e rappers improvisaram rimas com o tema mudanças climáticas, um desfile sustentável com o Instituto Arteiros, a exposição Santuário, composta por dez artistas e a visita guiada da Galeria 2050, espaço expositivo de arte e tecnologia no Morro Santo Amaro. Além disso, a edição contou com a parceria do Festival de Arte de Imbariê, a presença dos coletivos Ademafia, 2050 e Simbiose e da Vereadora e ex-Secretária Municipal do Meio Ambiente e Clima Tainá de Paula.
Marcele Oliveira, criadora da Resenha Climática e uma das cofundadoras do Coalizão, cria de Realengo, bairro da Zona Oeste carioca, contou que a criação do encontro decorreu do desejo de debater o assunto dentro da favela:
“Esse evento é pra falar sobre o combate às mudanças climáticas nas periferias com quem está no dia a dia, sentindo na pele os efeitos dessas mudanças e sem esse caráter de ‘problemas dos outros’… As pessoas que mais sofrem não sabem dar o nome real do problema: racismo ambiental… Não conseguem prestar atenção por conta da correria da vida… A resenha climática é uma forma de falar descontraidamente sobre isso.”
O coletivo Coalizão O Clima é de Mudança reúne jovens de favelas e periferias para pensar e apontar ações ambientais dentro e fora das favelas. O grupo já esteve presente em importantes eventos ambientais como as COP27, no Egito, e COP28 (Conferência das Partes), em Dubai, nos diálogos amazônicos e de atividades do G20.
“A ideia é que isso é a ponta do que a gente precisa fazer, mas é o jeito dessa ponta chegar nas pessoas da comunidade, chegar na batalha de rima, que sempre rola, mas nunca usou o tema das mudanças climáticas, mas hoje vai usar. É o jeito de chegar na galera, que está sempre ali no bar, no barbeiro e vai ver ali uma parada. Se a gente pensar em resgaste histórico e ancestral e em tudo o que o colonialismo tirou das comunidades, a relação com ervas, a relação com o solo… A tendência é normalizar o absurdo e se distanciar de algo que era nosso, do nosso povo.” — Marcele Oliveira
A abertura do evento contou com performance poética do professor e curador Osmar Paulino, cria de Imbariê, bairro da cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde os participantes acendiam velas entre cubos de gelo. A cena remete ao derretimento das calotas polares em função do aquecimento global. A atividade compôs a exposição Sagrado, que projetou imagens de obras de dez artistas, sendo eles Alafumin, Albarte, Anav, Ayra Aziza, Mariana Maia, Pandro Nobã, Sofia Gama, Sofia Rocha, Tarso Tabu e Thais Basilio. Para Osmar, responsável pela criação artística da exposição, o papel da arte na promoção de uma nova consciência, como uma ferramenta diante dos desafios ambientais, é muito potente:
“A arte não está distanciada da sociedade, ela é produzida por esse meio. E toda arte parte de uma ideia, que, por sua vez, parte de uma cultura. A grande questão é saber que cultura e que ideias são essas. O que a gente tem hoje é uma cultura europeia hegemônica, que se sobrepõe às culturas e povos originários. Então, que arte é essa que se faz presente em galeria e museu? Será que essa é uma arte que produz ideias para a vida ou para a morte? O que a gente produz com a arte é importante demais, é para que a gente possa mudar a maneira de lidar com o mundo e com a gente mesmo.”
“Agora, a gente tem um olhar lá dentro da ONU, a partir de muito desenrolar, de pensar cultura como algo que deve estar nos planos de adaptação. Pensar educação climática como algo que deve ter investimento, que não é trivial, pode fazer com que mais pessoas estejam envolvidas com o assunto e não caiam em fake news, não produzam desinformação e, principalmente, não se desesperem com o fim do mundo. A gente tem esse papel de adiar né, como falar Ailton Krenak. Adiar não é só fazer o nosso, é fazer várias outras coisas também, que inclui isso de articulação em rede, incidência, legislativo, política pública… até que ponto a gente pode salvar vidas e poupar desgastes com informação que tem que chegar antes. A sirene toca [em momentos de chuvas torrenciais] e as pessoas têm que saber para onde ir. Então, a arte é uma forma de conscientizar e é uma forma de salvar vidas também, porque você consegue passar a informação.” — Marcele Oliveira
Entre as atividades do evento, houve o desfile sustentável com modelos do Instituto Arteiros. Juliana Coutinho, produtora cultural e cria do Complexo da Torre, na cidade de Queimados, defendeu que a moda pode ter uma contribuição relevante para a construção de uma cultura de consumo sustentável e a transformação da relação que a favela tem com o tema:
“O vestuário traz a perspectiva de que você não precisa fazer investimento em coisas complexas, porque a moda tem outro papel social e ganha um significado diferente para cada pessoa. Se você [for] um garoto que nunca ganhou um tênis na vida e dizer que ele não deve comprar um tênis da Nike porque ele é fabricado de forma tal e tal [não amigável ao meio ambiente], isso não significa nada, porque, no final das contas, ele nunca teve. Mas, se a gente pensar em outras formas de reutilizar coisas palpáveis [que as pessoas já tiveram acesso] e desperdiçadas por um consumismo exacerbado, a gente apresenta uma outra forma de consumir.”
Nathan Nascimento, estilista e professor, também cria do Complexo da Torre, em Queimados, acrescentou que a mudança de mentalidade sobre o consumo tem o potencial de transformar toda a cadeia produtiva:
“Uma boa frase que a gente pode usar de estímulo é que a peça que você está procurando já existe. Ela pode estar no lixão, num lugar indevido, com uma pessoa que não está usando. Porque você joga uma peça fora junto com seu lixo da cozinha e seu lixo de casa? Então, são outras formas de impactar o planeta de fato, com o uso do brechó. A gente sabe que, hoje, a indústria da moda é a segunda maior em produção, só perdendo para a de automóveis. E, querendo ou não, ela também precisa de máquinas, assim como o setor de automobilismo. A moda usa água e terras em grande quantidade e também produz gás carbônico… Temos que pensar nas marcas que consumimos e se elas estão preocupadas com essa produção desenfreada.”
No eixo tecnológico, Gean Guilherme, um dos membros do Coletivo 2050, cria do Santo Amaro, explicou que a inserção da favela no mercado digital pode contribuir significativamente para o desenvolvimento das comunidades. A capacitação dos moradores, nesse sentido, é fundamental.
“Da mesma forma que a tecnologia é usada para o mal, a gente está nesse lugar de usar ela de forma consciente. A gente consegue criar novas soluções e caminhos através dessas novas tecnologias. Enquanto a gente não souber o que é esse idioma que os caras criaram e entender isso do nosso jeito, vai existir uma barreira muito grande sabe… Como é que eu consigo fazer a tiazinha do Hortifruti entender o corre que a gente tá fazendo e inovar no negócio dela? É um processo [que existe] a nível mundial, mas ela não sabe o que é isso.” — Gean Guilherme
Encerrando o evento, aconteceu a Batalha de Conhecimento. Os participantes foram desafiados a rimar sobre mudanças climáticas pela primeira vez no Santo Amaro. Além disso, houve também uma espécie de sarau, com recitação livre de poesias que estimularam a ação contra as mudanças climáticas.
“Chama, chama, chama que ela vem,
vai chama…chama que dá vida,
o fogo que destrói também é a saída.Não teve jeito, os ancestrais já manjavam dessa relíquia
o elemento que é a solução da contrapartida,
revolucionando através da tecnologia.Evolução social não tem igual,
o fogo chegou para a revolução industrial
que foi o grande propulsor da exploração do capital.
Seguimos assando dentro da minhoca de metal,
garantindo o arroz, o feijão, o leite e o mingau.Para não morrer de cansaço fazendo marquinha,
tomando uma gelada e pegando um sol na Praia do Pontal.Pra curtir isso, entender mudanças climáticas é fundamental,
já que as chuvas fora de época, tira a brisa de geral
e que, quando tem enchente, o bagulho fica doido e é claro que fica bem ‘escurecido’, a desigualdade letal.Também não posso deixar de falar das queimadas que com ou sem noção e autorizações,
destrói e ocasiona inúmeras complicações.
Por isso, pega a visão, aquecer nossa unificação
é trazer o acolhimento em todos os momentos a pessoas que, apenas por não pertencer a um padrão,
ouviram só o não.” — Juliana Coutinho
A maior lição dada pelo evento Resenha Climática: O Clima É de Arte é que é possível agir, cada um dentro de seu ofício, de variadas formas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Os moradores de favela, população mais atingida pelos eventos climáticos extremos, cada vez mais comuns, precisam ter protagonismo nesse debate, mas sem serem embranquecidos, resguardando suas próprias estratégias e tecnologias de vida, epistemologia, cultura e meios de engajamento. É urgente tornar as favelas resilientes ao clima, mas o racismo ambiental e climático só serão superados quando iniciativas como essa no Santo Amaro se tornarem políticas públicas, dotadas de orçamento e apoiadas pelo Estado.
Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é estudante de jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.