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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
Narrativas perpetuadas pelas mídias tradicionais e empresariais, como, por exemplo, a indústria do cinema hollywoodiano, vêm construindo memórias e narrativas que reforçam a tese de que o “fim do mundo” acontecerá de forma repentina, arrasando o planeta Terra todo de uma única vez, atingindo tudo e vitimando todos os seres humanos ao mesmo tempo. À espera de um fim estratosférico do planeta, ignoramos os mundos que se acabam diariamente ao nosso redor. Se nos permitirmos ter um olhar mais realista para o fim do mundo, vamos ver que cada evento pontual com potencial de levar vidas—cada omissão do poder público, cada evento climático extremo, cada filho assassinado pelo Estado—já é o fim do mundo, para muita gente.
“À luz do dia, televisionada por canais de mídia, a Polícia Civil do Rio de Janeiro mata 24 pessoas no Jacarezinho, a favela mais negra do Rio de Janeiro.” — 7 de maio de 2021
Ao invés de esperarmos passivamente por um cataclisma global, é crucial adotar um olhar realista e reconhecer que cada evento destruidor com potencial de levar vidas, já representa o “fim do mundo” para alguém. Só no Brasil, 48.000 brasileiros morreram em consequência de ondas de calor entre 2000 e 2018. Sem contar aqueles fins do mundo que se acabam e ninguém vê, fala, escreve ou lê sobre. Quantos finais de mundo ocorrem diariamente sem serem noticiados? Num olhar mais próximo e atual, só no último mês nas favelas, por diversos motivos vários mundos se acabaram.
“Somente em uma noite, morreram 12 pessoas, a maioria delas moradoras da Baixada Fluminense… O bairro de Anchieta teve a maior chuva já registrada desde 1997, foram 1 bilhão de litros de água em 24 horas. Em Acari, a água passava do pescoço.” — 15 janeiro de 2024
Nas favelas, o “fim do mundo” se manifesta de diversas formas: enchentes, deslizamentos, impactos das chuvas, falta de luz e água, de acesso à saúde e educação de qualidade e pública. Tudo isso causado pelo racismo estrutural e ambiental, pela estigmatização das favelas e pela negligência generalizada do Estado com relação aos territórios.
“A escassez de água atinge dezenas de milhares de moradores há, em média, 14 dias. Em outras residências da Maré, na torneira, chega uma água escura e com cheiro de esgoto, imprópria para o consumo.” — 10 de dezembro de 2022
Vítimas do descaso, nossas vidas viram estatística. A narrativa sistêmica mantém no coitadismo nossas vozes silenciadas. Ocupamos o espaço de dor que eles reservaram para a gente.
“Entre o fogo e o chicote, ficam nossas memórias
Num país especialista em como deletar histórias
Museu em chamas, o luto é sempre dobrado
Na pele de quem já nasceu com o passado apagado.” — Eles Não Ligam Pra Gente, de Cesar Mc, Ducon, Azzy & Diomedes Chinaski (Prod. Slim)
Eles, os donos da caneta e da engrenagem, através de um racismo que é estrutural e estruturante, conseguem nos colocar à margem. Permanecemos ali, nas encostas, margens de rios, mangues e alagados, vítimas dos fins de mundo, impostos a nós. A narrativa deles endossa nossas principais dores, escancaram-nas em cadernos jornalísticos do cotidiano, sem considerar, de fato, a nossa vida, que pulsa, no meio dos escombros do modelo de desenvolvimento e da economia, que mantém a caneta em suas mãos e a morte na nossa.
A Memória É o Passo Mais Importante na Promoção de Justiça nas Favelas do Brasil
A pensadora Grada Kilomba nos confronta, afirmando que a própria ausência da nossa voz—da mulher negra—no centro das dinâmicas da vida, é uma confirmação de que não há espaços onde possamos falar livremente. A memória é um elemento central para a construção da identidade e, no Brasil, foi violentamente usurpada durante a colonização, sobretudo, de povos negros e indígenas. Os resultados vão além dessa invasão das terras de Pindorama e do extermínio físico de milhões de indígenas e de milhares de povos originários: o epistemicídio afro-indígena, a colonização e o embranquecimento das formas remanescentes de resistência, o que inclui aqui nossas histórias e perspectivas de mundo.
A ausência de vozes e memórias negras como protagonistas nas narrativas já é em si uma denúncia contra as estruturas de opressão, que impedem que sejamos de fato ouvidas e vistas como de fato somos. Essa perpetuação da “história única“, a partir do ponto de vista dos donos do poder, como pontua a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, limita nossa compreensão do mundo e perpetua a nossa marginalização.
“Só pode falar de vida quem vive
Só pode falar de sofrimento quem sofre
Só pode falar de amor quem ama
Só pode falar de flow quem desenvolve.” — Breáco, de Criolo
Sobre as favelas, a sociedade continua endossando um cotidiano de barbárie, com diversos reflexos negativos, como a necropolítica, a injustiça socioambiental e os desastres climáticos. Os moradores destes territórios ancestrais de resistência são especialistas em sobreviver, criam tecnologias, ciências e ainda sobrevivem ao fim do mundo, cotidianamente imposto a eles.
Os saberes produzidos nas margens emergem tendo como principais elementos a inventividade e a defesa à vida. Às margens, há diversas potências pouco narradas, histórias, vivências, coletividades e, sobretudo, o nosso amor como uma arma de guerra. É a nossa tecnologia de vida que reage à negligência do Estado e cria mecanismos contra a violência estrutural. Inovações e soluções surgem das nossas entranhas para enfrentar os fins do mundo.
O Futuro É Ancestral ou Não Será
Em 2019, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançou um dos seus mais importantes relatórios: Mudanças Climáticas e Terras: Um Relatório Especial do IPCC sobre Mudanças Climáticas, Desertificação, Degradação da Terra, Gestão Sustentável da Terra, Segurança Alimentar e Fluxos de Gases do Efeito Estufa em Ecossistemas Terrestres. Ali, a ciência ocidental reconhece sua falha em lidar com a crise ambiental e pede uma resposta ancestral para a crise ambiental, causada pela Era Moderna e pela Revolução Industrial. Assim sendo, é posta no centro do debate a urgência de olhar para os modos de viver tradicionais e originários, como uma ação importante para frear os avanços das mudanças climáticas.
Apesar de especialistas em resistir às mais adversas condições, ainda não são as nossas ciências e tecnologias que pautam as políticas públicas, as ciências da academia e os hábitos sociais atualmente vigentes. Afinal, se seguíssemos um modelo de desenvolvimento pautado no modo de vida e ciência indígena ou africana, estaríamos hoje discutindo as vidas perdidas pelas crises climáticas e os impactos do racismo ambiental? Certamente não.
Nas favelas, ainda é pelo coletivo que a vida se perpetua. E é nas ações de diversas mulheres e homens que não estão sendo narrados, salvas raras exceções, que combatem e enfrentam diariamente os impactos impostos por um Estado violento e omisso. A narrativa que só contabiliza nossa morte e esquece de falar sobre nossa potência, sobre como geramos vida, cria, até em nós, mulheres e homens negras e negros, o inconsciente de que somos um povo fadado à dor e que ela é intrínseca à nossa condição diaspórica. É necessário desafiar essa história única e divulgar exemplos de potência, de soluções locais.
Pensar em justiça climática nos confronta com a dura realidade dos riscos e impactos das mudanças climáticas, já sentidos em todo o mundo, mas não de forma igual. Elas atingem de forma mais destrutiva comunidades mais vulneráveis, como as favelas.
“Chuvas torrenciais e enchentes abalaram o Rio de Janeiro, cobrando um alto preço à cidade em geral, incluindo suas favelas. O aguaceiro, que começou no início da noite de segunda-feira, 8 de abril, e adentrou a madrugada, se prolongou até a noite de terça-feira e matou pelo menos dez pessoas, deixando várias outras desaparecidas.” — 8 de abril de 2019
Na estrutura do desenvolvimento das cidades, somos as vítimas de um sistema que conscientemente seleciona zonas de sacrifício e corpos a serem vulnerabilizados e expostos a riscos. E é por isso que majoritariamente nós, mulheres negras, somos as criadoras das estratégias locais de vida que resolvem ou amenizam problemas sistêmicos. Estamos articuladas e compartilhando soluções, adaptações e metodologias que nos possibilitem adiar novos fins do mundo que, infelizmente, enfrentamos todos os dias. Afinal, é importante seguir adiante.
Somos um povo potente, inteligente, inventivo e estratégico. Nossas memórias e histórias vêm de bibliotecas vivas, nossos mais velhos, que, incansavelmente, criaram formas de bem-viver para que, em meio ao racismo e à violência racialmente motivada, nós, seus descendentes, conseguíssemos transcender as barreiras socialmente impostas a nós. Apesar de nos associarem sempre àquela história perigosa e única, eu me recuso a aceitar a narrativa dada e amplamente contada por eles. Vejo na ação cotidiana dos nossos, diariamente, o mundo se reconstruindo, se reorganizando e se curando. Nesse sentido, é olhando para trás que seguimos rumo a um futuro melhor, pois, como a ONU afirmou, a saída está nos modos de vida ancestrais. Só a ancestralidade tem o poder de curar os males da modernidade.
Gisele Moura é mulher preta, filha do subúrbio paulista, que contrariou as estatísticas e se tornou Cientista Ambiental, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde foi co-fundadora do Núcleo Preto. Hoje, atua como coordenadora da equipe de gestão da Rede Favela Sustentável (RFS)*.
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos realizados pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).