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18 de março de 2024—No último mês, comunidades integrantes da Rede Favela Sustentável (RFS) e o Painel Unificador das Favelas (PUF)* realizaram na Galeria Providência, os últimos lançamentos de dados do relatório “Justiça Hídrica e Energética nas Favelas: Levantando Dados Evidenciando a Desigualdade e Convocando para Ação” dos territórios: Providência no Centro do Rio de Janeiro; Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (PPG) na Zona Sul; e Complexo da Pedreira e Morro dos Macacos, na Zona Norte. Os dados são resultado do curso “Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas”, realizado em 15 favelas do Grande Rio ao longo de 2022. Participaram da pesquisa 30 jovens e 15 lideranças de 15 favelas espalhadas pelo Grande Rio: no município do Rio de Janeiro foram Cidade de Deus, Complexo da Pedreira, Itacolomi, Jacarezinho, Morro dos Macacos, PPG, Providência, Rio das Pedras e Vila Cruzeiro; na Baixada Fluminense foram Coréia, Cosmorama e Jacutinga em Mesquita; Dique de Vila Alzira em Duque de Caxias; Éden em São João de Meriti; e Engenho em Itaguaí.
Dados Sobre Água e Luz em Quatro Favelas, Lançados em Último Evento do Tipo
Os lançamentos locais de dados do relatório “Justiça Hídrica e Energética nas Favelas: Levantando Dados Evidenciando a Desigualdade e Convocando para Ação“, realizados nas próprias comunidades estudadas pela Rede Favela Sustentável ao longo de 2023-2024, vão contra o censo comum do que fazer com dados de pesquisa. Ao invés de focar em apresentar a pesquisa aos governantes e tomadores de decisão, ou deposita-lá em bibliotecas e acervos, o foco foi debater seu conteúdo, aprimorar o conhecimento, e fortalecer o acesso à informação da população local, para que juntos possam se unir, informados, para incidir em prol destes seus direitos.
São momentos de intensa troca entre os jovens pesquisadores, lideranças e moradores, neste último caso, em 24 de fevereiro, da Providência, PPG, Macacos e Pedreira, além de várias outras favelas presentes do Grande Rio. Em seus territórios puderam pesquisar os desafios enfrentados por moradores no serviço de abastecimento de água e fornecimento de energia elétrica pelas concessionárias Águas do Rio e Light, revelando uma alarmante falta de acesso de qualidade a esses serviços. Os depoimentos no lançamento deixaram evidente a piora na prestação dos serviços desde que a pesquisa foi feita, em 2022, com ênfase particular no acesso e qualidade da água.
Pesquisa Feita da Favela, para a Favela
Quando ocorre a negligência do poder público na realização de pesquisas que forneçam dados para embasar políticas públicas e prestação de serviços básicos, cabe a quem realizar a pesquisa? Em mais um campo, é o nós por nós que oferece a única possibilidade de retorno à população. Cabe aos moradores do território se auto organizarem, para que eles próprios possam gerar suas pesquisas. Foi assim que deu origem ao relatório “Justiça Hídrica e Energética nas Favelas”.
“Historicamente a gente estava sempre lutando com as forças que a gente tinha, mas eu acho que poder lutar dessa forma, traz uma outra postura. Ter informações e dados a respeito do lugar onde a gente mora, tem um fator de dignidade e de respeito que nos coloca em outro lugar.” – Hugo Oliveira, Galeria Providência
Os dados do relatório, de forma geral, revelam que a água é um recurso mais escasso do que imaginávamos nas favelas, que dependem de bombas e cisternas para garantir o seu acesso. Os dados sobre energia elétrica são igualmente preocupantes num contexto de mudanças climáticas, e quando para se acessar água necessita de luz. Entre outras questões, muitos moradores não conseguem ser atendidos pela Light, e quando são, os casos de valores abusivos na conta são relatados com frequência, além de apagões, picos de luz, queima de equipamentos e falta de energia elétrica por dias.
Denúncias dos Participantes Deram o Tom do Evento
A maioria dos depoimentos trouxeram relatos sobre a piora do acesso à água desde que a pesquisa foi realizada em 2022. Desde o abastecimento e qualidade da água, até vazamentos, valores impagáveis de conta e o não atendimento pela concessionária Águas do Rio foram relatados. Os dados apresentados sobre energia elétrica foram também preocupantes, já que muitos moradores não conseguem atendimento pela Light, relatam valores abusivos nas contas, e sofrem com regulares apagões e picos de luz, que danificam equipamentos.
Um morador do PPG contou que o serviço de água piorou bastante com a privatização da CEDAE.
“A gente percebeu que houve um grande problema de abastecimento, com aumento de desperdício, pois o material que a Águas do Rio utiliza é um material de baixa qualidade e em muitos casos a gente percebeu que além do desperdício e a falta de água, talvez esses números [do relatório] até tenham aumentado. Eu, por exemplo, já fiquei sem água por causa da falta de abastecimento da Águas do Rio.”
Outro morador do PPG, artesão, explicou que nem sempre a manobra da água consegue abastecer a todos na favela.
“Sobre a manobra [de água], nem todos conseguem essa água, porque são três dias [esperando].”
Letícia da Silva, moradora da Providência, relatou a piora na situação da entrega de água em sua residência após a privatização da CEDAE.
“A água é zero! Para a gente ter acesso à água, a gente acorda de madrugada pra encher tudo que é vasilha, lavar louça, lavar roupa. Quando dá seis e pouco da manhã já não tem mais água. Tem que ficar sentada lá, é muito pouca água… A gente arruma nossos filhos para ir para escola, não tem água na escola… Aí a gente tem que arrumar alguém para olhar as crianças e correr pro trabalho, para fazer as coisas do dia a dia… depois que entrou a nova empresa, não temos mais água, pelo menos na minha rua e na escola que meus filhos estudam.”
Outros moradores seguiram relatando que o acesso à água piorou muito com a nova empresa, com ineficiência de distribuição, inclusive nas partes baixas das favelas, situação que não ocorria anteriormente. Houveram relatos também de aumentos nas contas de água e cobranças indevidas.
Sobre o hidrômetro, os moradores do Complexo da Pedreira disseram que 96% não possuem o equipamento e, no Morro dos Macacos, o número é ainda maior, chegando a 99%. Uma moradora do PPG relatou que possui hidrômetro em sua residência e que paga a conta em dia, mas que, mesmo assim, sofreu ameaças de corte de água pela concessionária.
“Eu sou do PPG, temos o hidrômetro, mas temos muitos problemas. Muitas das vezes, eles passam dizendo que irão cortar a nossa água, sendo que nós pagamos certinho e, mesmo assim, nós estamos tendo esse tipo de problema, de irem lá e falar que vão desligar. Aí, a gente tem que correr lá na Associação [de moradores] para provar que nossa conta está paga. Eu acho que isso é uma desorganização da Águas do Rio… às vezes, falta água uma semana, mesmo a gente pagando.”
Já na Providência, as instalações dos hidrômetros trouxeram cobranças abusivas, segundo moradores. O acesso à água piorou com a nova empresa, inclusive em partes que antes não sofriam tão frequentemente com a falta d’água, como as partes baixas da favela.
“Então, quando era a CEDAE, a gente tinha esse tipo de problema, mas era mínimo, era bem pouco. Depois que passou para a Águas do Rio, eu moro numa parte baixa da comunidade e, na minha casa, em vários dias a água fica bem pouca. Eu tenho duas caixas de 1.000 litros cada e, muitas vezes, quando eu dou conta, a minha água está acabando. A minha mãe também mora num local onde tem seis casas… são casas de vila… Quando era CEDAE, a conta lá vinha R$700 pra dividir entre seis casas. Agora, a água falta mas a conta continua o mesmo valor… Na minha casa, tem hidrômetro e tem dias que a água vem fraca e, por isso, a medição do hidrômetro deveria ser menor, né? Porque a água chega com menos força… A Águas do Rio entrou e não houve nenhum benefício para o morador, não houve nenhuma troca de tubulação, não houve suporte e a gente continua pagando [mesmo sem receber um serviço decente].”
Alguns moradores, buscando seus direitos, recorreram à Justiça para solucionar as cobranças indevidas e o serviço mal prestado. Uma moradora contou que, na vila em que mora, duas residências foram demolidas por problemas estruturais. Contudo, para a surpresa de todos, ao invés de diminuir a conta de água, que custava, em média, R$700, aconteceu o inusitado: ela quase dobrou.
“Para nosso espanto, as contas começaram a vir de R$1.200 a R$1.300 e fomos buscar conhecimento, fomos buscar nossos direitos, porque nós cumprimos com nossos deveres… Fomos até a Águas do Rio, tiramos fotos, quando as casas começaram a ser derrubadas, demonstramos, mandamos e-mails… [Para] nossa surpresa, eles disseram que seria aquele mesmo o valor cobrado e, portanto, tivemos que entrar na Justiça… Não temos vergonha nenhuma [de dizer que] estamos com 13 contas sem pagar, estamos na Justiça, brigando por nossos direitos.’’
Houveram relatos de instalação de hidrômetros sem a presença dos moradores em casa. Além disso, influencers digitais dos territórios e moradores são contratados para trabalhar para a concessionária Águas do Rio, se utilizando do seu conhecimento da vizinhança. Isso cria uma mácula no tecido social local, promovendo uma espécie de “delação dos vizinhos” para a empresa, causando desconfiança e desunião entre moradores.
“Contrataram moradores da favela, pessoas que estavam precisando trabalhar. Essas pessoas conhecem a intimidade dos moradores e aí, eles batem na porta dos vizinhos e dizem: ‘ó, vocês têm um hidrômetro, mas têm três famílias morando, então, vocês têm que pagar três taxas’.”
Os dados relacionados ao acesso à luz, qualidade da luz e eficiência da luz apresentados, revelaram outro dado alarmante, que 56% dos entrevistados vivem em situação de pobreza energética, ou seja, que suas contas de luz consomem mais de 10% da renda familiar mensal, quando o recomendado é que o valor não ultrapasse 7%. Desses que vivem em pobreza energética 69% informaram que se não gastassem tanto com a conta, eles gastariam mais com alimentos.
“Na parte alta… têm moradores que estão a uma semana sem luz. A nossa luz ontem mesmo, ela passou indo e vindo, nem à lâmpada se sustentava acesa. Se imagina sem um ventilador nesse calor. Eu tenho três crianças pequenas em casa e a gente não consegue dormir. Consequentemente, no dia seguinte está todo mundo cansado, tem que ir para escola, eu preciso trabalhar, meu marido precisa ir trabalhar, o dia não rende. Infelizmente está sendo assim, e agrava muito mais no verão.”
A luz se conecta com a água: é necessária para bombear e garantir acesso à água que vem tão inconstante, para manter os espaços de casa suportáveis no calor, e ainda por cima a conta de luz contribui para a insegurança alimentar.
Com a finalização da apresentação dos dados, as lideranças das favelas pesquisadas apresentaram propostas para alcançar a justiça hídrica e energética, dentre elas: a criação de um programa de postos comunitários de água e luz, com atendimento local nas comunidades, auxílios financeiros para aquisição de bombas, trocas de eletrodomésticos e lâmpadas por versões mais econômicas e o cadastramento de bombeiros e eletricistas locais.
Não Perca o Álbum por Bárbara Dias no Flickr:
Sobre a autora e fotógrafa: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.
*A Rede Favela Sustentável (RFS), o Painel Unificador das Favelas (PUF) e o RioOnWatch são projetos realizados pela organização sem fins lucrativos Comunidades Catalisadoras (ComCat).