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No dia 14 de março de 2018, há seis anos, um crime bárbaro tirou a vida da Vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Uma data que jamais será apagada da memória do Brasil e do mundo, que se uniu em luto e indignação, pedindo por justiça. No entanto, até hoje, este feminicídio político continua sem respostas. Afinal, não se sabe quem mandou matar Marielle Franco? E por quê? Daquela fatídica noite até agora, houve manobras e denúncias de que autoridades estariam atrapalhando as investigações deste crime hediondo. São seis anos de contínua revitimização das famílias desses dois crias de favela: Marielle, do Complexo da Maré, e Anderson, do Complexo do Alemão.
Sexto Ano de um Crime Político Sem Respostas
A falta de solução para esse crime político expõe como é frágil e inconsistente a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Não somente por não proteger uma parlamentar no exercício de seu mandato, mas também por tolerar articulações para encobertar os verdadeiros envolvidos. Hoje, ainda que haja presos supostamente responsáveis pela execução, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, as autoridades não identificaram o mandante do crime. A motivação também segue sendo um mistério.
“A execução brutal de Marielle e Anderson é uma afronta à democracia. É uma afronta à vida de todas as mulheres negras. É uma afronta a todas as LGBTQIAP+. É uma afronta à favela. É uma afronta aos mais pobres. Marielle foi executada de uma forma tão brutal que aterrorizou o mundo.” — Camila Marins, jornalista
A facilidade e senso de tranquilidade que os assassinos tiveram em arquitetar, seguir o veículo, fazer tocaia e atirar contra até uma representante eleita, perto do Centro da cidade do Rio de Janeiro, a poucos quilômetros da sede da prefeitura, mostra a vulnerabilidade a que os corpos negros são expostos.
Giniton Lages, primeiro delegado a investigar o crime e autor do livro Quem Matou Marielle?, disse, em entrevista ao Intercept Brasil, no início das investigações, que “alguém dava informações privilegiadas aos criminosos”. Na época do crime, Giniton ainda não era responsável pela Divisão de Homicídios, mas tornou-se delegado titular e assumiu as investigações do caso da vereadora três dias depois do assassinato da parlmentar. Ainda sob sua gestão, quase um ano depois dos assassinatos, os executores de Marielle foram presos. Giniton foi escolhido por ter tido sucesso na condução das investigações do assassinato da Juíza Patrícia Acioli, que aconteceu em 2011. No entanto, poucos dias depois das prisões, o delegado foi afastado do caso, ainda em março de 2019.
Ambos os presos não denunciaram seus contratantes durante anos. Até que, em 2023, Élcio Queiroz aceita falar e, em 2024, seu comparsa, Ronnie Lessa, segue o mesmo caminho e faz um acordo de delação premiada, onde apontou o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro Domingos Brazão como um “possível” mandante do crime. Brazão nega as acusações e o caso segue sem respostas, sem um mandante comprovado e em segredo de justiça.
Domingos Brazão, no entanto, não foi o primeiro político apontado como “possível” mandante, o que só reforça a tese de que o processo inquisitorial foi, durante bastante tempo, conduzido de maneira inconsistente, irresponsável e sofreu influência política.
Os afastamentos e trocas repentinas na condução das investigações chamam atenção nesse caso. Assim como na Polícia Civil (PCERJ), ainda em 2021, poucos meses depois do afastamento de Giniton, no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, houve trocas inoportunas à resolução do crime que levaram as promotoras Letícia Petriz e Simone Sibilio a pedirem afastamento do caso. Com a saída desses três personagens das investigações, os anos se passaram com poucos avanços.
“Essa demora… é, de fato, para que não saibamos quem está por detrás… [mas seguimos] de cabeça erguida e com toda a competência de governar. Então, saber quem mandou matar Marielle é também saber, não pra nós que já sabemos, mas para todo o país, uma cidade, um estado… do que o racismo institucional e estrutural faz com as nossas vidas.” — Monica Cunha, fundadora do Movimento Moleque e vereadora do Rio de Janeiro
Essa percepção de morosidade e interferência política sobre as investigações no nível estadual levou a muita discussão e até a campanhas sobre a federalização ou não do caso. Até que, em 2023, o ex-Ministro da Justiça Flávio Dino decidiu que o caso não seria federalizado, mas que a Polícia Federal (PF) atuaria em paralelo e em apoio à Polícia Civil e ao Ministério Público fluminenses. Para tal, o ex-ministro decretou a abertura de um inquérito na PF sobre o feminicídio da vereadora. Segundo fontes da PF, o caso finalmente está andando e é esperado que, ainda em 2024, haja uma resposta bem fundamentada sobre o mandante do assassinato de Marielle Franco.
Sobre Marielle Franco
Mas, afinal de contas, quem foi Marielle Franco? Hoje, esse nome ecoa pelos quatro cantos do mundo. Marielle Francisco da Silva era filha, irmã, mãe, esposa, parlamentar, militante comprometida com diversas causas e favelada. Foi essa a figura que tentaram calar. Foi filha de Marinete da Silva e Antônio Francisco da Silva Neto. Foi irmã de Anielle Franco, hoje ministra da igualdade racial. Foi mãe da jovem Luyara Franco. Negra, mulher, LGBTQ+, vinda de família pobre, filha de migrantes e moradora de favela, a educação foi vista como caminho para alcançar lugares inimagináveis.
Marielle Franco pavimentou a sua educação com uma formação de base comunitária, contrariando as estatísticas. A partir do curso pré-vestibular do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), ela ingressou na graduação da PUC-Rio, como bolsista do Prouni, e cursou Ciências Sociais. Depois, tornou-se mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi durante anos assessora parlamentar de Marcelo Freixo e coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, até que, em 2016, foi eleita vereadora, sendo a quinta mais votada daquela eleição.
“A força e a coragem de Marielle continuam a ecoar, de forma desafiadora. E este legado é profundamente inspirado no estilo político e na identidade singular de uma mulher negra, ativista e feminista que se recusava a ser interrompida.” — Edmeire Exaltação, socióloga e diretora da Casa das Pretas
Segundo a jornalista e mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos pela UFRJ, Camila Marins, essa votação histórica não foi à toa. Isso se deveu ao fato de que multidões se sentiam representadas por Marielle Franco, viam-se a si mesmos através dela.
“Marielle representava muitas de nós, mulheres negras que ousam sonhar por um mundo justo e solidário. Representa mulheres negras que ousam desafiar e desestabilizar as estruturas, ocupar a política. Quando chegamos nesses espaços de poder, ocupamos do nosso jeito: com nossa ética, com nossa estética, com nossa ética feminista de quilombo.” — Camila Marins
Para a assistente social Ana Gilda Soares dos Santos, o assassinato de Marielle foi um recado para as mulheres negras e o reforço da intimidação para o povo preto e de favela. Contudo, para ela, depois deste crime político, a palavra de ordem é: “a cada uma de nós que cair, dez iremos nos levantar”.
Marielle sempre foi movimento. E é exatamente isso que Edmeire Exaltação, que dirige a Casa das Pretas, último lugar em que Marielle esteve em vida, relembra ao falar da parlamentar e ativista mareense.
“Ela foi uma mulher negra ativista, liderança incansável, de muita representatividade para o movimento feminista, mas principalmente para o movimento de mulheres negras do Rio de Janeiro. Infelizmente, foi vítima de uma violência covarde e misógina, refletindo os aspectos sombrios e desumanos da política brasileira. Como jovem vereadora negra, carregava a esperança e a determinação de lutar pela representatividade e pelos direitos das mulheres negras, tinha um futuro promissor que foi tragicamente interrompido. Sua morte foi um golpe devastador na luta das mulheres por justiça social e igualdade. Deixando um imenso vazio.” — Edmeire Exaltação
Sobre Anderson Gomes
E Anderson Gomes? Anderson Pedro Gomes era casado com Agatha Arnaus e pai de Arthur que, na época do crime tinha apenas um ano de vida. Cria de favela, assim como Marielle, nasceu e cresceu no Morro da Fazendinha, no Complexo do Alemão. Na noite de seu assassinato, trabalhava como motorista substituto para a parlamentar. Dirigindo, foi alvejado pelas costas na noite de 14 de março junto com a vereadora, enquanto a levava para casa depois de um exaustivo dia de trabalho.
Um pouco antes do crime, Anderson ligou para a esposa e comentou que estava ansioso para ver o Flamengo jogar na Libertadores. Um trabalhador, um homem de 39 anos, um cria cheio de sonhos, que teve sua vida interrompida pela emboscada de um crime político, com o qual nada tinha a ver.
Insurgência de Mulheres Negras
“Marielle Franco nasce para ser bússola, para determinar que não poderia mais ter uma mulher negra dentro do parlamento por vez: ou entrava como bonde ou entrava como bonde. Então, a representatividade e o legado de Marielle nos diz que nós temos que estar em todos os lugares que quisermos. Que nós, que nascemos negras, temos que ocupar de verdade o nosso lugar dentro dessa cidade, dentro desse Estado, dentro desse país que é nosso, que a gente construiu.” — Monica Cunha
Afirmando o compromisso com o legado de Marielle Franco, mulheres negras emergiram do luto à luta: Renata Souza, Monica Francisco, Camila Marins, Silvia de Mendonça, Thais Ferreira, Talíria Petrone, Tainá de Paula, Monica Cunha, Benny Briolly, Dani Monteiro e muitas outras que, mesmo diante da barbárie, não recuaram e seguem na construção da história e no embate constante para a garantia dos direitos humanos das pessoas pretas.
Da mesma maneira, os pedidos por justiça não recuarão. É preciso lembrar que a falta de respostas sobre o caso de Marielle Francisco da Silva e Anderson Pedro Gomes é uma vergonha para o Estado brasileiro que completa seis anos hoje. Seus assassinatos impunes põem em xeque a própria democracia brasileira. É por isso que, hoje, quinta-feira (14), na Praça Mauá, a partir das 17h, acontece mais uma edição do Festival Justiça por Marielle e Anderson. O evento é gratuito e reúne diversos artistas, alguns deles, crias do Complexo da Maré, berço de Marielle.
Sobre a autora: Cynthia Rachel Pereira Lima, carioca, moradora da Zona Norte, é mestra em Cultura e Territorialidades pela UFF. Atualmente, integra o Coletivo Encruzilhada Feminina, onde escreveu e dirige a peça “Encruzilhada Feminina” (2018); “O menino Omulu” (2019), “Até o fim – Mulheres, Memórias e Afins” (2020). Compõe o projeto Preto no Palco, que registra a cena negra.