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No dia 6 de novembro, a Coalizão O Clima é de Mudança organizou um evento de dia inteiro no Circo Voador, icônico local de shows da Lapa, Centro do Rio. Cinco organizações sediaram o evento (DataLabe, LabJaca, Realengo Agenda 2030, Visão Coop e a Plataforma CIPÓ) para aumentar a conscientização sobre a justiça climática.
Na parte da manhã e no início da tarde, 150 participantes pré-inscritos participaram de diversas oficinas. Em seguida, às 16h, o evento abriu as portas ao grande público para dois painéis focados na justiça climática no Brasil.
À medida que o público entrava no local do evento, ia passando por barracas organizadas pelos anfitriões que ofereciam informações relacionadas à justiça climática. O estande da Casa Fluminense distribuiu suas Agendas 2030, cobrindo diferentes regiões do Grande Rio.
Depois do público se sentar, foi recebido por Gabrielle Alves da Plataforma CIPÓ, um instituto liderado por mulheres com foco em clima, governança e construção da paz na América Latina e no Caribe. Gabrielle apresentou o programa e destacou a importância das discussões em torno da justiça climática, principalmente neste momento crucial da história brasileira com a recente eleição de Luiz Inácio Lula da Silva.
Respeitando as Comunidades e Abraçando Soluções de Base
Intitulado Do Local para Global: O Papel do Internacional para Soluções Locais na Construção da Justiça Climática, o primeiro painel recebeu os convidados Eloy Terena, advogado indígena e representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) do estado de Mato Grosso do Sul; Thais Santos, do conselho do WWF Brasil; e Junior Aleixo, pesquisador e especialista em justiça climática da ActionAid Brasil.
Como representante dos povos indígenas do Brasil, Eloy destacou que garantir a proteção dos direitos humanos indígenas deve ser uma prioridade no combate às mudanças climáticas. As comunidades indígenas são afetadas desproporcionalmente pela crise climática, sofrendo deslocamentos devido ao aumento do número de desastres ambientais decorrentes das mudanças climáticas—como incêndios florestais—e também devido ao aumento da incidência de ameaças a seus territórios por madeireiros ilegais durante o regime de Bolsonaro. Terena destacou a injustiça da situação, afirmando que “os povos indígenas, com suas próprias práticas de vida, já conservam o meio ambiente”, mas que também estão entre os que mais sofrem as consequências das mudanças climáticas. Ele também argumentou que o deslocamento ou a imigração de comunidades indígenas para áreas urbanas não alivia a luta do grupo. O racismo ambiental que os indígenas enfrentam quando confrontados com a crise climática deve ser tratado como independente do local, uma vez que aqueles dentro do contexto urbano também são um grupo marginalizado que foi afetado de forma desproporcional.
“Existem mais de 350.000 indígenas no contexto urbano. Nem por isso ele deixou de ser indígena; nem por isso ele deixou de praticar a sua cultura. Ele é ele em qualquer lugar: na aldeia, na cidade, fora do país, no tribunal.”
Depois de Terena, Thais Santos lançou luz sobre a questão do racismo ambiental. Como cofundadora da Comunidade Cultural Quilombaque—movimento que aborda os problemas e dilemas enfrentados por moradores de áreas periféricas por meio da arte, cultura e conhecimento—grande parte da fala de Thais se concentrou na forma como o racismo ambiental afeta desproporcionalmente os quilombolas, que muitas vezes vivem em áreas rurais com pouco acesso à tecnologia moderna. Assim como os grupos indígenas, Thais descreve como os quilombolas no Brasil são “invisibilizados quando se fala sobre o ambiente”.
Thais enfatizou que a crise climática é um assassino silencioso de minorias. A violência tradicional e direta contra as minorias não é o único meio pelo qual a discriminação pode ocorrer: hoje, a crise climática também possibilita o genocídio desses grupos. A conselheira do WWF declarou: “Porque nós estamos morrendo e existe um grande esforço quando a gente fala em genocídio dos negros, dos povos originários. Mata-se muito e não é só com bala na testa. Mata-se contaminando as nossas águas, contaminando o nosso ar, colocando agrotóxicos nos nossos alimentos…”
Por fim, Thaís argumentou que as estratégias para a solução da crise climática—como as reuniões da Conferência das Partes da ONU (COP)—fazem muito pouco para enfrentar os problemas decorrentes da crise. Governos e conferências internacionais sobre o clima mantêm-se muito alheias à realidade enfrentada cotidianamente por aqueles que se encontram na base.
“A crise climática já está internacionalizada. Todo mundo sabe que estamos em crise, que é um risco gigante, mas nós precisamos estar preparados para a denúncia. Para mostrar que os quilombos não estão no passado, que as aldeias não estão no passado. Eles são o nosso presente e são estratégias para o nosso futuro. Porque se alguém vai conseguir mitigar e segurar essa crise, não vai ser numa COP com essas pessoas sentadas com suas canetas… Enquanto eles não tiverem a humildade de descer pro chão e perguntar nas aldeias, nos quilombos e nas favelas: Como é que vocês se viram? O que é que tem que fazer com esse solo? Como é que vocês plantam?”
A ineficiência das soluções atuais encontrou ressonância na fala de Junior Aleixo. O especialista em justiça climática da ActionAid Brasil criticou o uso dos mercados de crédito de carbono como solução para a crise climática. Junior condenou intervenções do mercado disfarçadas de soluções para o aquecimento global argumentando que soluções internas dos movimentos sociais brasileiros são mais apropriadas: “Nós [o Brasil] não somos a solução para o mercado de crédito de carbono. A gente é muito melhor do que isso. As nossas soluções, as nossas tecnologias sociais são muito melhores do que o mercado de crédito de carbono”.
O primeiro painel foi concluído após 80 minutos e a plateia assistiu a um curta realizado pelo LabJaca e pela Plataforma Cipó. O filme abordava a justiça climática pela perspectiva de diversas comunidades com ênfase especial para o saneamento e segurança hídrica.
Reivindicando a Justiça Racial e Climática
Enquanto a numerosa plateia ia retornando para seus assentos, três novos convidados foram chamados para a segunda palestra. Ao rapper, ator, escritor e ativista social MV Bill juntaram-se a ativista climática e comunicadora indígena Lídia Guajajara e a ativista de direitos humanos Lúcia Xavier para juntos discutirem justiça racial e climática.
Seguindo uma linha de pensamento parecida com a de Eloy Terena da primeira palestra, Lídia Guajajara enfatizou a importância do reconhecimento das lutas da população indígena do Brasil com relação à justiça climática. A comunicadora da Mídia Índia e ANMIGA argumentou que essa falta é, em si, um reflexo da injustiça climática: “A injustiça climática é justamente esta: a do não-reconhecimento da luta dos povos indígenas”.
Guajajara acrescentou que qualquer discussão ambiental que envolva a Amazônia não pode desconsiderar as lutas das comunidades indígenas porque ambas estão intrinsecamente ligadas: “Não tem como pensar numa Amazônia viva, num meio ambiente vivo sem pensar na luta dos povos indígenas”. É impraticável discutir-se um ambiente físico sem as comunidades que habitam e que estão ligadas a esse ambiente.
Criado na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, MV Bill concordou com o que disse Lídia sobre qualquer discussão sobre o meio ambiente precisar incluir os seres humanos que vivem nesses espaços.
“Eu nunca consegui pensar em desassociar seres humanos do meio ambiente. Eu sempre pensei que tendo pessoas mais educadas, mais preparadas, mais informadas, evoluídas… lógico que a gente poderia ter uma população mais envolvida na [prevenção da] degradação do meio ambiente.”
Com mais de um milhão de ouvintes mensais no Spotify, o influente rapper discutiu o racismo ambiental e como ele afeta a população majoritariamente negra nas comunidades mais pobres e marginalizadas do Brasil. Muitas favelas sofrem com a crise climática como consequência do acesso desigual aos recursos com rios poluídos, falta de saneamento e pouco acesso a água potável sendo apenas alguns exemplos do racismo ambiental enfrentado pelos moradores das favelas.
Recordando uma visita feita a uma comunidade quilombola na Bahia, MV Bill salientou como essas comunidades sofrem os efeitos do racismo ambiental nas mãos de agentes do governo que poderiam ajudar, mas que escolhem não fazê-lo. Segundo ele, “quem poderia ajudar a preservar, vai na verdade querendo destruir e construir.”
Lucia Xavier questionou se os governos algum dia cumprirão a promessa de proteger os mais vulneráveis. Considerando a exclusão daqueles ameaçados pelos processos decisórios, a ativista de direitos humanos argumentou que as mudanças estão acontecendo com tanta lentidão que os grupos que hoje lutam por melhorias talvez nem vivam para ver as promessas públicas serem cumpridas.
“Imagino que não terá mudanças se negros, se indígenas, se outros grupos sociais não puderem participar… não puderem decidir. Por que discutir? A gente já está discutindo, mas se a gente não puder decidir, pode esquecer, entendeu? Metade de nós vai para o outro mundo um dia. Não vai pegar aquele ônibus e nem vai viver nessa terra.”
O evento terminou de forma contundente quando, num local que já testemunhou as apresentações de alguns dos mais aclamados músicos de todo o mundo, MV Bill se pôs de pé para cantar um poético rap acapella refletindo sobre a experiência comum de muitos brasileiros cujas necessidades são frequentemente ignoradas pelos poderosos. Enquanto o país se prepara para embarcar numa nova jornada com um novo líder no comando, o evento O Clima É de Mudança serve como lembrete de que o tema da justiça climática terá de passar para primeiro plano e ser tratado com a urgência que ele exige.