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Em 2023, a Pastoral de Favelas completa 46 anos de existência. Organização vinculada à Igreja Católica, a Pastoral carrega uma longa história de apoio às lutas dos moradores de favelas do Rio de Janeiro, um marco sendo a bem-sucedida defesa dos moradores do Vidigal, na Zona Sul do Rio, em resposta a uma tentativa de remoção ocorrida em 1977. Como aconteceu com milhares de moradores de favelas por toda Zona Sul e Zona Norte nos anos anteriores, sem diálogo, os moradores foram avisados por técnicos do governo do Estado que teriam que deixar a favela, de onde seriam transferidos para a Santa Cruz, Zona Oeste, a 50 quilômetros de distância.
É necessário dar atenção especial ao contexto social no qual este episódio ocorreu. A favela do Vidigal se localiza numa montanha à beira mar, com uma das vistas mais belas do Rio de Janeiro. Desta montanha, avista-se o mar e vários pontos turísticos, como as praias do Leblon, Ipanema e parte da Baía de Guanabara. Além da bela vista, a favela está localizada numa via importante para a ligação entre a Zona Sul e a Barra da Tijuca: a Avenida Niemeyer, que na época estava se tornando o novo eixo de expansão imobiliária, destinada às classes média e alta.
Além disso, o Vidigal também é próximo aos bairros da Gávea, Leblon, Lagoa, e São Conrado, os bairros hoje de maior poder aquisitivo do Rio de Janeiro e que, entre 1969 e 1973, vivenciaram a maior parte das remoções de favelas da cidade. Grandes favelas como a Praia do Pinto, Parque Proletário da Gávea, Catacumba, Macedo Sobrinho, entre outras, foram completamente eliminadas. Estes bairros sofreram drásticas mudanças demográficas, pois antes eram compostos por fábricas e habitados, em grande parte, por operários negros. Este programa de remoção foi um processo de limpeza étnica, que transferiu dezenas de milhares de famílias para a periferia da cidade do Rio. Essas remoções foram feitas no auge da ditadura militar, instaurada no Brasil em 1964, ocorrendo sempre com um forte aparato repressivo e com ameaças a qualquer morador que ousasse resistir. Não raro, uma prisão se transformava em tortura e desaparecimento de moradores, lideranças e ativistas.
É necessário destacar que a organização dos moradores do Vidigal contra a remoção assume um caráter duplo. Por um lado, foi um teste para o processo de abertura democrática que o Brasil começava a viver. Nas palavras de Ernesto Geisel, o quarto dos cinco ditadores que presidiram o Brasil entre 1964 e 1985, a democracia voltaria ao país de forma “lenta, gradual e segura“. Foi preciso muita coragem para desafiar uma ação do Estado que poucos anos antes implicava num sério risco. Por outro lado, a resistência em si foi um fator que acelerou o processo de redemocratização.
Os moradores do Vidigal, organizados, buscaram o apoio do Padre Ítalo Coelho, pároco em Copacabana, que tinha como frequentadores de sua missa militares, empresários e suas esposas. Padre Ítalo, homem de profunda cultura e sensibilidade com as causas sociais, fundou a Pastoral de Favelas como uma forma de assistência e caridade cristã da parte formal da cidade com os moradores das favelas. Ao receber os moradores do Vidigal, Padre Ítalo os colocou em contato com advogados ligados às causas dos direitos humanos, como Sobral Pinto, Bento Rubião e Eliana Athayde. No fim de 1977, esses advogados conseguiram na Justiça que o despejo dos moradores fosse interrompido: os moradores do Vidigal permaneceriam em suas casas.
A vitória do Vidigal repercutiu nas favelas do Rio e a Pastoral assumiu um caráter cada vez mais expressivo em auxiliar a mobilização comunitária e prestar apoio à luta dos moradores pela permanência das favelas. Diversos moradores organizados, em territórios sob ameaça de despejo buscaram a Pastoral, que passou a organizar comissões e, posteriormente, a assessorar na criação e nas disputas democráticas pelas associações de moradores, até então, sob forte controle do Estado, fruto ainda de uma institucionalidade montada sob a ditadura militar, que permitia que o Estado intervisse e destituísse as diretorias das associações.
A Pastoral de Favelas foi um guarda-chuva acolhedor para muitos moradores, que viram nela uma forma de se organizar e se mobilizar coletivamente. Além disso, a ação dos advogados consistia no estímulo à organização dos moradores, auxiliando-os na formação política e no despertar para a luta. Este processo consolidou ainda mais pessoas que até hoje são referências na mobilização comunitária de favela, como Itamar Silva, do Santa Marta, Eliana Sousa e Silva, da Nova Holanda, Paulinho, do Vidigal, entre muitos outros.
Vale dizer que, ao longo da ditadura, diferentes setores da Igreja Católica assumiram posições antagônicas. A alta hierarquia da Igreja no Brasil havia apoiado o golpe militar de 1964, que destituiu o Presidente João Goulart. No entanto, poucos anos depois, alguns padres e freiras davam abrigos a estudantes, sindicalistas e demais opositores da ditadura, havendo até mesmo padres que optaram em apoiar guerrilhas de esquerda, padres presos, torturados e assassinados pelos militares.
De qualquer modo, no final da década de 1970, a Igreja Católica na América Latina viveu o impacto das II e III Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano, realizadas em 1968 em Medellín, na Colômbia, e em 1979 em Puebla, no México, bem como do Concílio Vaticano II. Esses são marcos da mudança de postura pastoral da Igreja Católica na América Latina, que passa a assumir a Opção Preferencial pelo Pobre, princípio doutrinário que serviu de base para o desenvolvimento da Teologia da Libertação, que pregava uma Igreja atenta à luta dos mais pobres por liberdade, direitos e justiça social, que mobilizou clérigos e leigos no auxílio à mobilização popular.
No Brasil, isso se refletiu no intenso apoio de parte da Igreja Católica a movimentos sociais, como o apoio a sindicatos e a greves, à refundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), colocada na clandestinidade pela ditadura, à criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e à fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).
Assim, no final da ditadura, na virada das décadas de 1970 para 1980, a Pastoral de Favelas desempenhou um papel importantíssimo para a defesa das favelas cariocas. E, em uma escala maior, foi fundamental para o processo de redemocratização do Brasil, ao formar lideranças, estimular a organização comunitária e auxiliar moradores na luta pelo direito à moradia.
Tendo cumprido esse papel, a Pastoral passou por um período de menor mobilização a partir de meados da década de 1980, visto que muitas lideranças que estiveram a frente passaram a ocupar outros espaços, como a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), partidos políticos e cargos no Estado, fruto do processo de redemocratização.
A intensa mobilização comunitária do fim dos 1970 e início dos anos 1980 deu lugar a associações de moradores, caracterizadas pela articulação direta com canais do Estado onde quem tivesse melhor relacionamento com o governante da ocasião conseguia mais benefícios para sua comunidade através de obras, ações e programas diversos nas favelas. Não deixa de ser positivo que as lutas do período anterior, por permanência, tenham garantido um novo patamar de desafios, já que, para as favelas cariocas, agora, em sua maioria, as demandas giram não em torno do direito à permanência e sim em torno da consolidação da sua permanência no território através de infraestrutura, serviços públicos e melhores condições de vida.
O principal desafio do movimento comunitário, a partir da década de 1990, foi a atuação das quadrilhas de tráfico de drogas nos territórios de favela e a reação do Estado. A guerra às drogas é marcada pela ação violenta do Estado, confrontos armados, muitas chacinas e pouca inteligência policial. Nos anos 2000, no entanto, o problema foi ainda mais agravado, com a expansão das milícias.
O fim da primeira década do século XXI, com a cidade do Rio de Janeiro buscando uma nova vocação, de uma cidade anfitriã de eventos, somado à expansão do crédito imobiliário nos primeiros governos do Partido dos Trabalhadores (PT), fez com que as favelas fossem novamente alvo de projetos de remoção. Sob a justificativa da segurança, do dano ambiental ou ainda, da necessidade de obras para adequar a cidade aos megaeventos, como a Copa do Mundo de 2014 ou as Olimpíadas de 2016, favelas como Vila Autódromo, Metrô-Mangueira, Providência, Vila Harmonia, Largo do Campinho, Tanque, Vila União de Curicica, Pavão-Pavãozinho/Cantagalo, Indiana, Horto, entre tantas outras, entraram na lista da Prefeitura para serem total ou parcialmente removidas.
Uma vez mais, a Pastoral de Favelas assumiu, ombro a ombro com moradores, a luta pela defesa de seus direitos. Agora, em uma nova conjuntura, há conquistas legislativas como o direito à indenização, o usucapião urbano, a garantia de que a remoção só se efetiva em último caso, além, da possibilidade de usar o Poder Judiciário e de articular os moradores com a imprensa, com o poder legislativo, as universidades, arquitetos, engenheiros e etc. Infelizmente legislação não basta, e a luta através da organização e união dos moradores, juntos de apoiadores, permanece o modo mais importante de defesa. O que deu origem ao Conselho Popular, iniciativa ativa desde 2007 da Pastoral de Favelas como constante presença junto de lideranças comunitárias, oferecendo encontros mensais, rodas de troca, mobilização de protestos, e defesa jurídica em diversas instâncias estatais, com o objetivo de garantir de fato o direito à habitação habitação e à cidade, até hoje desrespeitado.
Sobre o autor: Mario Brum é historiador, urbanista, educador, e pesquisador de temas urbanos, fundiários, movimentos sociais, políticas públicas, identidade e estigmas. É membro do INCT Proprietas, coordenador do Projeto de Extensão Vozes da Luta (UERJ) e professor no Departamento de História e do ProfHistória – UERJ, além e Procieentista-UERJ.