No dia 17 de junho de 2023, será realizado o lançamento da Exposição de Memória Climática da Rede Favela Sustentável (RFS)*. Para dar um gostinho, estaremos até lá publicando uma série de matérias que resumem a dinâmica de cada roda de memória realizada, em cinco museus comunitários, entre janeiro e março deste ano, que compõe a exposição. Esta terceira matéria da série apresenta a terceira roda, realizada no dia 11 de fevereiro, pelo Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH), em Antares. O projeto foi desenvolvido pelo Eixo Cultura e Memória Local da RFS, composto por museus comunitários integrantes, aliados técnicos e mobilizadores de diversas favelas do Grande Rio.
As Rodas de Memória Climática da Rede Favela Sustentável têm como objetivo resgatar e registrar as memórias e histórias que guardam os moradores de longa data das favelas do Rio de Janeiro, sobre o tema do clima, para que possamos enxergar formas de nos preparar para as mudanças climáticas que estão por vir. O tema tradicionalmente é raramente abordado, apesar de, como mostraram as rodas, ser muito presente no cotidiano das favelas.
Em uma série de rodas que acontecem ao longo de um dia, desenvolvidas para focar e aprofundar este assunto, os moradores convidados pelos museus trocam visões sobre suas vivências e experiências com as mudanças climáticas, resgatam memórias sobre a relação da formação de suas comunidades com a natureza e clima, dialogam sobre a relação do clima com a realização do direito à moradia, e abordam as soluções e mobilizações feitas pelos próprios moradores, destacando as prioridades equivocadas do Estado, que tende a ver remoção como uma solução.
No dia 11 de fevereiro de 2023, aconteceu a terceira Roda de Memória Climática, realizada pelo Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH) em Antares, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
As rodas de conversa aconteceram no espaço de uma antiga creche comunitária, a Sonhar Conceição, e contaram com a presença de moradores—majoritariamente idosos—e mobilizadores, o que trouxe uma característica bastante especial às abordagens, pois o principal objetivo era recordar e registrar a relação da favela com as suas origens e a natureza, além dos acontecimentos socioambientais desde então.
O anfitrião do evento, Leonardo Ribeiro de Sousa, integrante do NOPH, historiador e morador nascido em Antares, fez uma breve apresentação do evento e ressaltou as lutas de anos ocorridas no local, seja por via das instituições ou através dos filhos e netos dos moradores, e que aquele era um dia para apresentar essas e tantas outras questões, memórias e tensões.
O Que Significa Mudança Climática pra Você e Sua Comunidade?
Abrindo a primeira roda de conversa com a pergunta: “O que são mudanças climáticas para você?”, o coordenador do NOPH, Bruno Almeida, se apresentou e refletiu sobre a importância de falar da história de Santa Cruz.
“Normalmente, a gente fala sobre outros aspectos da história [em Santa Cruz]. Uma história mais ligada à presença dos jesuítas, às casas de veraneio do imperador, e às vezes a gente esquece as histórias dos outros lugares aqui do bairro de Santa Cruz [para além do Caminho Imperial]. Então, há pouco tempo, a gente passou a estudar a origem dos sub-bairros e das comunidades, João 23, Cesarão e etc. [É importante] entender o lugar que a gente ocupa, não só para superar os preconceitos, mas para propor melhorias. Se a gente sabe a origem do lugar e a história do que nos trouxe até aqui hoje, consegue se armar melhor para poder testar melhorias. Uma dessas melhorias é esta roda de conversa com os moradores de Antares, para a gente poder dialogar tendo como ponto principal essa questão das mudanças climáticas.” — Bruno Almeida
Os participantes iniciaram suas falas deixando evidente que muitos habitam a localidade há muito tempo e que suas vidas foram pontuadas por eventos climáticos. Sandra Regina de Oliveira, moradora da Travessa há 58 anos, passou por uma enchente que nunca esqueceu, em que perdeu tudo. Outra moradora, Vera Lucia Rodrigues relatou uma trajetória semelhante e repetida. Sua família, que chegou à localidade de Vila Verde, uma área precária e pantanosa, em 1985, já perdeu tudo mais de uma vez durante as enchentes na região.
“Sofri várias enchentes, perdi tudo. Mas, tô aqui de pé, na luta aqui de novo. Guerreiro não morre… guerreiro vive!” — Vera Lucia Rodrigues
A memória de eventos climáticos destrutivos foi alinhavando muitos dos relatos posteriores. Como o de Leny Martins, que chegou com 16 anos na comunidade de Antares e hoje está com 61. Apesar das dificuldades que passou, reafirmou seu amor pela comunidade.
“Sofri muito neste local aqui. Perdi tudo na minha casa, teve enchente. Não tinha água, não tinha luz… mas eu amo muito Antares.” — Leny Martins
Eufrosina Silva, conhecida como Dona Flor, uma das mais antigas moradoras presentes, agradeceu pela oportunidade de falar um pouco sobre a sua relação com a comunidade.
“Tenho 81 anos e moro aqui há 45. A luta foi grande. Trabalhei na associação de moradores. Depois eu estudava à noite para ser professora de creche. Graças a Deus eu trabalhei na creche 25 anos, lá em Santa Cruz. Saía meio-dia e trabalhava com idosos até às cinco da tarde. Trabalhei muito e agora estou descansando. Mas estou viva. Estou aqui no meio de vocês e estou aqui presente. E Antares tem muita coisa pra fazer.” — Eufrosina Silva
Esse “fazer” foi algo que Dona Flor demonstrou de forma local e comunitária, quando falou que ela e outros moradores solucionaram a falta de água na região.
“Passei fome. Ficamos sem água. A gente não tinha água na bica. Corremos atrás, conseguimos a água. Conseguimos luz. Com a nossa luta, a gente consegue as coisas. Parados, não!” — Eufrosina Silva
A moradora Carmem Lúcia contou que veio conhecer a comunidade e se apaixonou:
“Vim pra cá em 1976 trabalhar na escola… Antares foi a estrela que mudou a minha vida. Sou apaixonada por Antares. Aqui eu voltei a estudar. Gostei da escola e fiquei trabalhando. E quando a comunidade religiosa veio, a gente construiu a primeira ponte que dividia as comunidades. Tô aposentada, mas vim ajudar no que for necessário na comunidade.” — Carmem Lúcia
Outra moradora, Rosimar Paixão, contou como foi chegar a Antares na década de 1970, sem infraestrutura e a história de luta da comunidade por melhorias. Para ela, o território foi um esteio, local que serviu de guia e onde fez vários amigos ao longo das décadas.
“Vim pra Antares pequena, em 1975. A amizade de vocês é fundamental na minha vida… Foi uma infância bem difícil… Não tinha luz, não tinha água, era barro… Amo minha comunidade e tudo que eu puder fazer por ela eu farei. Construí um convívio muito bom com minha comunidade. Quero a comunidade do meu lado e, juntos, cresceremos. De 1975 pra cá, tivemos várias perdas. Independente da gestão [pública], nós, moradores, sempre perdemos. Só conseguiremos se estivermos juntos. Somos uma família! Temos muita força. Só precisamos saber usar.” — Rosimar Paixão
Como Se Deu a Ocupação e Qual é a Relação do Território com o Clima e Natureza?
Os eventos climáticos se tornaram evidentes em muitas das falas, com menções às enchentes e suas consequências na história da comunidade e a relação dessa história com suas vidas e as trajetórias familiares. Na segunda roda, foi perguntado aos presentes como foi a ocupação de Antares e qual era a relação do território com o clima e com a natureza. Leonardo Ribeiro contextualizou que Antares é uma comunidade que viu suas raízes crescerem a partir da remoção de moradores advindos de outras favelas de outras partes da cidade, sobretudo das zonas Sul e Norte. Origem comum a outras grandes favelas de variadas áreas da Zona Oeste. Muitos dos moradores mais velhos não são crias de Antares, mas ajudaram a fundar a comunidade como é e são mães, pais e avós dos crias.
A mãe de Leonardo, Maria José, explicou que ela e sua família moravam no Morro dos Macacos, na Grande Tijuca, de onde foram despejados. De lá, foram para o Complexo da Maré, de onde também foram retirados e mandados para Antares. Relato parecido com o de muitos moradores presentes na roda, como Iolanda da Silva, que chegou a Antares há aproximadamente 50 anos, vinda da Rocinha.
“O Pantanal [localidade de Antares] estava abandonado, era tudo mata, vala. Hoje, tá tudo asfaltado. Mas tenho visto mudança. Lembro da enchente que carregou a ponte com tudo. Mas creio que deveria ter mais melhoras, mais projetos para a comunidade. A juventude não tem expectativa.” — Iolanda da Silva
O nome Pantanal, por sua vez, não é por acaso, explica Léo. É um nome intimamente ligado com a história local de Santa Cruz.
“A comunidade de Antares fica numa área que historicamente é uma bacia e sempre alagava. A maioria dos canais que estão hoje no bairro de Santa Cruz foram construídos pelos padres jesuítas, quando ocuparam o bairro. Eles fizeram plantações, mas acabavam perdendo elas porque alagava. Aí, construíram os canais, pela força das pessoas escravizadas. Os padres idealizaram e os negros escravizados construíram.” — Leonardo Ribeiro
Como as Questões Climáticas e Ambientais Dialogam com o Direito e Acesso à Moradia?
A explicação fez com que Leny Martins lembrasse de uma situação dramática durante uma enchente em Antares, uma situação que dialoga com outra pergunta norteadora da roda: como as questões climáticas e ambientais dialogam com o acesso à moradia. Muitos moradores, assim como ela, têm traumas associados aos eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes.
“Na época, meu neto tinha oito anos. Agarrei ele e vim, mas a água tava vindo tão forte, que veio na força mesmo. Ele tropeçou e fugiu da minha mão. Comecei a gritar: ‘Meu neto! Meu neto!’ E, então, veio um rapaz e pegou ele pelo pé, num buracão que fizeram ali na rua. Ali onde eu moro, qualquer chuvinha que dá, enche. Enche a casa, enche tudo. Horrível! Não tem vazão, porque quando enche o rio, invade. Vem água pelo vaso, pelo esgoto, vem tudo. Não tem como sair. Invade tudo. Perdi tudo, geladeira, televisão, sofá. Duas vezes que deu essa enchente. Eu fiquei com medo. Gente, vai encher de novo? Vou perder tudo de novo? Quando começa chover, o coração começa a bater, tenho medo.” — Leny Martins
Carmem Lúcia narrou como Santa Cruz, uma região essencialmente agrícola, foi se urbanizando. Regina contou um pouco sobre a ocupação e Leny Martins relembrou, especificamente, a ocupação que acompanha a linha do trem: “ali, na beira da linha ali era lixo puro. Agora que o povo invadiu não tem lixo.” Essa complexa relação com o lixo emergiu como um dos pontos principais da discussão, uma vez que o local foi assentado por conta do Estado que removia pessoas de outras regiões e as reassentava ali, porém na prática informalmente, com pouco ou nenhum planejamento urbano, inclusive sobre o manejo de resíduos sólidos. Esse abandono reflete a negligência estatal sistêmica com relação às favelas.
“A questão do lixo na comunidade é um problema. Na estação não havia construção, nem árvores. Para onde ia o esgoto que as casas produziam? Tudo [ia] para atrás do morro, onde passava um córrego. Eu pescava lá atrás. Hoje em dia, não se pesca mais, só tem lixo. E isso ocasiona no quê? Com o verão, incêndio, queimadas… porque ali se joga de tudo. Eu acho que a comunidade tem que ter mais consciência sobre isso. Quer construir? Vê a melhor forma, o melhor projeto e para onde vai a saída do esgoto. Se nós não preservarmos, o governante vai chegar e falar ‘eles [os moradores] não ligam, para que eu vou ligar?’” — Rosimar Paixão
Para outros moradores e lideranças, ainda dentro desse tema, há outras questões urgentes a serem solucionadas, como o impacto do descarte de óleo de cozinha in natura no sistema de esgotamento improvisado e inadequado da comunidade.
“Um dos problemas que eu identifiquei é o óleo dentro do esgoto. O pessoal faz a fritura, joga na pia. Quando chega lá no esgoto, tá frio. Vira [sólido] ali dentro e entope o esgoto… O maior problema de esgoto que a gente tem na comunidade de Antares é o óleo.” — Leonardo Ribeiro
Leonardo lembrou também que, com o tempo, Antares foi perdendo as árvores, algo muitas vezes influenciado pela necessidade de moradia das famílias.
A moradora Vera Lúcia lembrou que Antares foi assentado por influência da Prefeitura, mas que era para ser usado, ao menos na teoria, só como triagem de famílias despejadas de outros locais. Algo que não aconteceu. “Antares era [para ser moradia de] triagem. Botaram o povo aqui numa casinha de pombo. Tinha uma cerca, não podia fazer nada… Não era para ninguém ficar aqui. Foi passando quarenta anos. Não tomaram providência.”
“É muito fácil culpar a comunidade de Antares pelas enchentes. Mas as pessoas que aqui estão, estão sempre ligadas no que é melhor para a comunidade. O problema aqui é na educação, no lazer, no esporte. Eu sei que fiz a minha parte… Precisamos fazer um trabalho maior aqui na comunidade para as pessoas entenderem que têm que olhar para amanhã e para todos.” — Sérgio Sodré
Quais Saberes a Comunidade Já Desenvolveu para Responder aos Desafios Impostos pela Natureza e pelo Clima?
Leonardo finalizou a roda comentando que, no início da década de 1990, houve projeto da Prefeitura dos garis comunitários, advindos das próprias favelas. “Eles que faziam o trabalho de conscientização. Mas as associações de moradores começaram a ser estigmatizadas por envolvimento com os poderes paralelos. E foram prejudicadas. E é neste período que a gente sofre mais”, lembrou.
Todavia, segundo Leonardo, a troca e o diálogo são imprescindíveis, mesmo que levem a vitórias que muitos considerariam pequenas. Léo lembrou de quando foi a uma reunião do Conselho de Segurança de Santa Cruz, com representantes municipais e das forças de segurança, para falar sobre os perigos de fazer operações em horário de entrada e saída de alunos das escolas. “Foi uma solução que fomos desenvolvendo empurrando mesmo. O diálogo da favela com o batalhão da área é um tabu. E sabe qual o resultado disso tudo? O posto virou biblioteca comunitária. O espaço foi doado, baseado nessa relação que foi feita com o batalhão”, ele contou. O diálogo ajudou a atenuar a tensão entre a comunidade e a polícia, algo que pode ser estendido a outras discussões.
Leia toda a série “Memória Climática das Favelas” aqui.
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