No dia 17 de junho de 2023, será realizado o lançamento da Exposição de Memória Climática da Rede Favela Sustentável (RFS)*. Para dar um gostinho, estaremos até lá publicando uma série de matérias que resumem a dinâmica de cada roda de memória realizada, em cinco museus comunitários, entre janeiro e março deste ano, que compõe a exposição. Esta segunda matéria da série apresenta a segunda roda, realizada no dia 4 de fevereiro, pelo Museu Sankofa, na Rocinha. O projeto foi desenvolvido pelo Eixo Cultura e Memória Local da RFS, composto por museus comunitários integrantes, aliados técnicos e mobilizadores de diversas favelas do Grande Rio.
As Rodas de Memória Climática da Rede Favela Sustentável têm como objetivo resgatar e registrar as memórias e histórias que guardam os moradores de longa data das favelas do Rio de Janeiro, sobre o tema do clima, para que possamos enxergar formas de nos preparar para as mudanças climáticas que estão por vir. O tema tradicionalmente é raramente abordado, apesar de, como mostraram as rodas, ser muito presente no cotidiano das favelas.
Em uma série de rodas que acontecem ao longo de um dia, desenvolvidas para focar e aprofundar este assunto, os moradores convidados pelos museus trocam visões sobre suas vivências e experiências com as mudanças climáticas, resgatam memórias sobre a relação da formação de suas comunidades com a natureza e clima, dialogam sobre a relação do clima com a realização do direito à moradia, e abordam as soluções e mobilizações feitas pelos próprios moradores, destacando as prioridades equivocadas do Estado, que tende a ver remoção como uma solução.
No dia 4 de fevereiro de 2023, aconteceu a segunda da série: a Roda de Memória Climática da Rocinha, realizada pelo Museu Sankofa, no CIEP Ayrton Senna. Durante todo o sábado, integrantes do museu conduziram as riquíssimas discussões, entre 50 moradores e ativistas da Rocinha, entre jovens e mais velhos, e contando com a presença de colaboradores e amigos dos outros museus participantes do projeto.
O primeiro a falar foi o anfitrião e organizador do encontro, cofundador do Museu Sankofa, Antonio Firmino. Morador da Rocinha há 30 anos, Firmino iniciou o dia apresentando a história e o desenvolvimento da Rocinha e do museu, criado em 2008. As raízes da instituição, porém, são bem mais antigas, tendo início décadas antes, com o trabalho de Lygia Segala, antropóloga, que começou um projeto de alfabetização na Rocinha, na década de 1970, engajando os alunos na coleta de histórias e depoimentos dos moradores, com a ajuda de Antônio Oliveira, presidente da União-Pró Melhoramentos dos Moradores da Rocinha (UPMMR), e de Tânia Regina da Silva, outra liderança local.
O Que São as Mudanças Climáticas?
Durante a primeira roda, cujo tema foi a relação da comunidade com as mudanças climáticas, a moradora do Trampolim, uma de várias áreas da Rocinha, Magda Gomes, 28, relembrou as chuvas torrenciais de 2019, que causaram um deslizamento no Laboriaux, região alta da favela. Ela expôs que “ a gente se reuniu assim numa condição emergencial… Infelizmente a gente [sempre] se reúne em torno do debate de urgências e mudanças climáticas a partir da perda e do prejuízo.” Magda relatou sua tristeza pela “ausência de políticas públicas que consigam compreender que discutir mudança e emergência climática é sobretudo discutir qualidade de vida e gerações futuras”.
Maria Helena Carneiro de Carvalho, outra moradora, há décadas da localidade da Rua Dois, comentou que lembra de ter uma infância dentro da mata, com cachoeiras espalhadas pela comunidade, hoje escondidas pelos prédios e vielas. Maria clamou por ação coletiva da comunidade, inclusive com envolvimento dos bairros vizinhos.
“A Rocinha ainda têm um grave problema, porque fica na bainha da Floresta da Tijuca. Estamos destruindo o nosso pulmão verde da cidade. O nosso pulmão. A gente está destruindo totalmente a Rocinha. Então você não respira há muito tempo, não circula há muito tempo e tá cada vez pior.” — Maria Helena Carneiro de Carvalho
A Rocinha é tão grande que alguns presentes propuseram debater e entender as realidades específicas de cada localidade, de cada sub-bairro que forma a favela, pois são muito diversos entre si.
“A gente não fala ‘a favela da Rocinha’ porque é muito extensa. Eu falo ‘as Rocinhas’ porque tanto a ocupação quanto às políticas públicas chegam aos moradores de forma diferente. Quem mora no Bairro Barcelos, área mais urbanizada, tem uma condição de vida diferente de quem mora na Macega, Roupa Suja. É importante individualizar. Pensar em cada bairro com a realidade de cada local.” — Izabel Carvalho
Leandro de Castro, militante do A Rocinha Resiste, compartilhou sua opinião de que atualmente se vive em uma Rocinha saturada, onde a busca dos seus moradores por garantir moradia pode ter chegado a proporções que geram riscos iminentes.
“Hoje a gente vive numa cidade onde o concreto tomou lugar da floresta. A Rocinha era um lugar de classe operária que queria morar mais próxima do seu trabalho, mas hoje a Rocinha tá no seu limite… A gente já sabe o que cada um [que desconhece a luta local] vai falar. Esse movimento [da comunidade tentando se preservar] é histórico já. O Rocinha Sem Fronteiras faz isso, os mutirões de limpeza… [Mas] estamos no limite do adensamento. A natureza tem dado e vai continuar dando a sua resposta. Fico com muito receio, nessa época do verão, quando fecha o céu no final da tarde, fico com muito medo. Fico muito preocupado porque a gente está presenciando, o estado criou um costume, que só cria respostas, [e não previne]. Não queria que elas viessem só quando o Laboriaux descesse. Ou a Dionéia. Esse é o momento da gente poder fazer uma incidência de falar que a Rocinha tá no seu limite. Quando a natureza der essa resposta vai ser um caos. Eu queria que a gente pudesse se organizar antes disso acontecer.” — Leandro de Castro
Nesse debate, as chuvas acabaram sendo os principais motores de lembranças relacionadas às memórias climáticas. Alguns lembraram do terror que sentem ao ouvir a sirene que avisa o risco de deslizamentos. Outros tiveram perdas materiais extensas ou mesmo souberam por seus pais que nasceram em meio a uma enchente.
Como Se Deu a Ocupação e Qual é a Relação do Território com o Clima e Natureza? e Como as Questões Climáticas e Ambientais Dialogam com o Direito e Acesso à Moradia?
Na introdução da segunda roda do evento, que acabou se acoplando com a terceira, sobre como se deu a ocupação da comunidade, sua relação com a natureza e a conexão deste processo com o direito à moradia, Firmino destacou que roda acontece com a mesma metodologia que sempre aconteceu a ocupação da Rocinha: através da coletividade. Firmino também aproveitou para explicar aos presentes as razões pelas quais ele defende o uso dos termos favela e favelado. Ele se posiciona contra eufemismos que ele vê como invisibilizando esses espaços e sua histórica luta por moradia.
“Sou morador de favela, favelado. Introduzi[ram o termo] comunidade no mesmo período das UPPs que entram de fora para dentro. Todos nós que moramos em favelas sempre fomos comunidades porque a luta pelo bem comum passa por ser uma comunidade! Favela continua! Do meu ponto de vista sou favelado. Porque tem todo um significado de luta e resistência. Fui negado o direito à moradia!” — Antônio Firmino
Respondendo à pergunta sobre a ocupação da comunidade e a relação com o direito à moradia, a moradora Rita Smith ficou visivelmente incomodada.
“Esquecemos uma palavra. Vida! Quantas pessoas a gente perdeu? A gente criando acesso a nossa moradia sem orientação nenhuma, muitas vezes nem técnica.” — Rita Smith
Outros enfatizaram problemas fundiários na base das questões mais urgentes da Rocinha, e sua relação com identidade e pertencimento.
“Nós como moradores de favela, o que a gente quer? A nossa casa. E ela é o que? A nossa identidade. E ela tem que estar documentada, não é assim? Você pode morar no asfalto, mas o que a gente quer é a nossa identidade. A nossa identidade tá aqui. Quando a gente nasce a gente sai com uma identidade que vira certidão. E a certidão que a gente quer é essa: regularização fundiária.” — Maria Helena Carneiro de Carvalho
No início da década de 1980, moradores da Rocinha estavam mobilizados reivindicando obras de saneamento básico, a não remoção compulsória de moradias e intervenções urbanísticas em prol de moradia digna, sobretudo para as famílias que sofriam com enchentes. Líder comunitário de longa data, Antonio Xaolin, compartilhou esta história com os participantes.
“No início dos anos 1980, queriam remover a Rocinha e o Vidigal. Começamos uma luta com a Fundação Bento Rubião… E a Igreja Católica entrou nessa briga… A partir do momento que o Papa subiu o Vidigal, o fantasma da remoção diminuiu.” — Antonio Xaolin
Xaolin continuou, expandindo sobre a importância da luta contínua e união dos moradores em garantir os seus direitos.
“Isso aqui que estamos fazendo é uma troca de saberes. As disputas políticas internas existem. Vão existir sempre. [Mas] quando o coletivo resolve lutar junto, o coletivo vence. Nós paramos a remoção da Rocinha. Conquistamos a saúde. Com uma luta coletiva, conseguimos o CIEP, o metrô. Fizemos praticamente uma luta de classes. Foi dedo na cara dos bacanas… A Rocinha tem saberes coletivos.” — Antonio Xaolin
Essa visão é necessária por conta do olhar de agentes externos e historicamente belicosos com as favelas ontem e hoje. Firmino apontou que certos horizontes nunca parecem se alargar.
“Parece que todos nós moradores de favela moramos em outro país. Estamos sempre em guerra. Porque o Estado brasileiro fala que vai ‘retomar o território’? O Estado sempre nos trata assim… parece que somos um outro país.” — Antônio Firmino
Voltando ao tema da moradia, um dos moradores cria mais antigos da roda prestou depoimento sobre mudanças estruturais pouco pensadas mas que impactam e muito na resiliência local: a perda do investimento por moradores, e consequentemente do pertencimento, ferramenta necessária para o cuidado com o espaço.
“20 anos para cá fez com que o crescimento que era lateral e desmatava um pouco, ficou lateral e vertical. Subiram muitos prédios inclusive, transformando [a Rocinha] em um dos locais com mais pessoas morando de aluguel… da nossa cidade.
Como isso afeta o clima local? Se antes eram proprietárias, elas se sentiam cuidadoras do espaço em torno da sua casa. De aluguel, não fica da responsabilidade dele. O proprietário de muitos imóveis não vai ficar tão preocupado com o ambiente em volta daquela casa. Se preocupam [só] com o valor do aluguel.” — Ulisses José da Silva
O bombeiro civil, Ricardo Ramos, problematizou ainda mais a situação da moradia hoje na comunidade.
“Uma pessoa [de fora] vem com dinheiro e compra um prédio de dois andares e levanta mais quatro. [Ela] não precisa pagar água e taxa da prefeitura. E nós, nativos daqui que nunca fizemos isso agora [estamos] aqui resolvendo essa situação, e ainda temos que resolver com uma tremenda cautela… A realidade é que eles lá [os governantes, os proprietários de fora] não estão nem aí para a gente.” — Ricardo Ramos
Pouco depois, outra referência comunitária, o Mauricio Fagundes da Silva, conhecido como “Soca”, reiterou que o tempo está curto e os termos têm mudado com as vulnerabilidades climáticas aumentando enquanto a Rocinha se consolida demasiadamente.
“Não dá mais para resolvermos em reuniões como essa. Por quê? Cada governo que passa, não está preocupado conosco. Se a gente não tomar vergonha na cara e botar o pé na porta pra resolver essa tragédia anunciada, a Cachopa, a Dionéia vai descer. É muito peso em cima, as pessoas cavam, mas não chegam na pedra. O tempo da natureza não é nosso tempo. Os futuros vão sofrer com isso. Nós temos que tomar uma atitude. ” — Mauricio Fagundes da Silva
Quais Saberes a Comunidade Já Desenvolveu para Responder aos Desafios Impostos pela Natureza e pelo Clima?
Como Antônio Firmino disse ao RioOnWatch em 2016, apresentar esses documentos históricos mostra aos moradores mais novos que “o que você tem hoje é fruto dessa luta passada”. O museu trabalha com a deliberada intenção de construir uma ponte que ligue o passado ao presente. O nome Sankofa vem do símbolo Adinkra do povo Akan do Oeste Africano, que significa um retorno ao passado para compreender o presente e transformar o futuro.
No entorno da roda de debate, cartazes do Museu Sankofa mostravam ações coletivas da comunidade ao longo do tempo, tais como os mutirões de limpeza das valas e canaletas, memórias vividas por alguns dos participantes da roda que ajudaram a controlar problemas sanitários graves na Rocinha e foram essenciais no diálogo e entrada do Estado no bairro.
Foram as imagens perfeitas para a ilustrar a roda final, focada em relembrar as soluções desenvolvidas pela comunidade ao longo de sua história. Fernando C.F., morador da Rua 3 há 63 anos, prestou depoimento.
“Hoje em dia, eu graças a Deus, tenho a minha água. Da fonte mesmo, potável. Começamos ali colocando manilha, depois da manilha colocamos concreto. Antigamente não tinha isso.” — Fernando C.F.
A integrante do Museu Sankofa responsável por facilitar a última roda, Rose Firmino, questiona o senso comum de onde podem vir as soluções para a sociedade.
“Eu posso ter uma casa sustentável que se adapta às mudanças climáticas e posso sim procurar um ponto de apoio e ser feliz [na favela]. E [posso] acreditar que nós favelados não somos menores do que ninguém. Pelo contrário, nossos saberes fazem e fizeram a maior diferença. Nós negros e favelados nos perdemos do aquilombar-se.” — Rose Firmino
Sobre a busca por soluções estruturais e reais, ouvimos novamente a Magda.
“É um problema social com começo, meio e fim. Precisa[mos] trocar ideias, projetos e investimentos… A gente precisa de uma forma interseccional entre todos os poderes e [precisamos] chegar num lugar que a gente tá ensaiando aqui. Transformar a Rocinha num lugar saudável, digno, no qual a pessoa possa respirar. É um direito à minha vida.” — Magda Gomes
Leia toda a série “Memória Climática das Favelas” aqui.
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