No dia 17 de junho de 2023, será realizado o lançamento da Exposição de Memória Climática da Rede Favela Sustentável (RFS)*. Para dar um gostinho, estaremos até lá publicando uma série de matérias que resumem a dinâmica de cada roda de memória realizada, em cinco museus comunitários, entre janeiro e março deste ano, que compõe a exposição. Esta quarta matéria da série apresenta a quarta roda, realizada no dia 11 de março, pelo Museu de Favela (MUF). O projeto foi desenvolvido pelo Eixo Cultura e Memória Local da RFS, composto por museus comunitários integrantes, aliados técnicos e mobilizadores de diversas favelas do Grande Rio.
As Rodas de Memória Climática da Rede Favela Sustentável têm como objetivo resgatar e registrar as memórias e histórias que guardam os moradores de longa data das favelas do Rio de Janeiro, sobre o tema do clima, para que possamos enxergar formas de nos preparar para as mudanças climáticas que estão por vir. O tema tradicionalmente é raramente abordado, apesar de, como mostraram as rodas, ser muito presente no cotidiano das favelas.
Em uma série de rodas que acontecem ao longo de um dia, desenvolvidas para focar e aprofundar este assunto, os moradores convidados pelos museus trocam visões sobre suas vivências e experiências com as mudanças climáticas, resgatam memórias sobre a relação da formação de suas comunidades com a natureza e clima, dialogam sobre a relação do clima com a realização do direito à moradia, e abordam as soluções e mobilizações feitas pelos próprios moradores, destacando as prioridades equivocadas do Estado, que tende a ver remoção como uma solução.
No dia 11 de março de 2023, 30 moradores e mobilizadores comunitários do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (PPG), Zona Sul do Rio de Janeiro, reuniram-se para a quarta Roda de Memória Climática. Os participantes, além de moradores, incluíram integrantes do anfitrião Museu de Favela (MUF), e outras organizações locais como o Favela + Limpa, o Planta na Rua, PPG Informativo, Solar Meninos de Luz e jovens da comunidade engajados pelo Pacto pela Juventude, além de museus colaboradores integrantes do projeto de outras favelas.
Durante todo o sábado, o Museu de Favela coordenou as discussões ao redor dos temas: memória, ocupação do território, relações da comunidade com o território, água, resíduos sólidos, direito à moradia, remoções, saberes e soluções locais. A realização do encontro possibilitou a troca entre os moradores durante as quatro rodas de conversa do dia, respondendo às perguntas que vêm norteando os encontros.
Abrindo as atividades do dia, a psicodramista Rosana Corrêa convidou todos os participantes a se levantar, se movimentar, misturar e experimentar uma atividade lúdica chamada psicodrama, trazendo dramatizações e desafios corporais para induzir reflexões sobre como lidar com questões pessoais, interpessoais e coletivas.
Desde a sua formação, o Pavão, Pavãozinho e Cantagalo—localizados entre os emblemáticos bairros de Ipanema e Copacabana—são comumente considerados por vizinhos da cidade formal e pelo Estado, um estorvo. Ao contrário disso, o PPG é a resistência de um povo que não teve escolhas e nem direitos garantidos. E sua história vem sendo preservada, pelo trabalho do Museu de Favela, criado em 2008. Abrindo as discussões do dia, Márcia Souza, coordenadora do Museu, expôs o seu propósito.
“A gente descobriu a museologia social, que fala que museu não é só o que tá dentro, aquelas coisas antigas. É o que está em volta. Que pode ser acessado por qualquer pessoa, asfalto, favela, quilombola, ricos, pobres, jovens. Daí a gente fez o que ninguém sabia que podia fazer. A gente transformou a favela toda, PPG, em um museu. Então, vocês moram, vocês vivem num museu… No circuito das casas-tela, aquelas casas pintadas, a gente vai contando quem foi que criou, quem veio, de onde veio. A gente fala do modo como a gente vive, como a gente se relaciona, de onde viemos. A favela cresceu e nós crescemos juntos. Então, é o que a gente faz, contar nossa história, nosso crescimento. E o mais importante: se apropriar disso. Somos parte da cidade, somos patrimônio da cidade. É tudo nosso.” — Márcia Souza
Gisele Moura, coordenadora da equipe de gestão da RFS, falou em seguida relembrando a todos:
“A proposta de hoje é criar a memória climática do PPG. É muito importante vocês estarem aqui. Obrigada pelo convite de contar suas histórias… para ouvir tudo que tange memória, natureza e clima que vocês já vivenciaram aqui. É um momento especial para vocês falarem, é tudo de vocês. A gente sempre tem essas histórias contadas por outras pessoas; aqui é uma oportunidade de vocês contarem as suas histórias, suas memórias.” — Gisele Moura
Se todos os moradores possuem memória e uma história para contar, então, o acervo dessa roda seria constituído pelos próprios moradores. As questões centrais relacionadas à memória e ao clima no PPG envolvem entender como as pessoas que habitam a favela vivem, de onde vêm, como utilizam os recursos naturais para sobreviver e como o ambiente afeta positivamente e negativamente suas vidas.
O Que São as Mudanças Climáticas? E Como Se Deu a Ocupação e Qual é a Relação do Território com o Clima e Natureza?
O início da conversa foi marcado pela troca de saberes sobre as mudanças climáticas e a história de ocupação da comunidade. Segundo os moradores, um dos principais fatores geradores de impactos locais, como deslizamentos e enchentes depois de fortes chuvas, que recorrentemente atingem a cidade, é o lixo. Moradora do Cantagalo, Marcia Santos Pinto resumiu a ligação entre as mudanças climáticas e o problema do descarte e coleta irregular de resíduos em sua comunidade.
“As mudanças climáticas eu entendo como todas as transformações do clima e temperatura ao longo dos anos, ao longo do tempo. Mas atualmente [o clima] vem sendo prejudicado por causa da ação do homem mesmo, tudo que ele faz de ruim com relação ao seu modo de vida. Como descartar o lixo por exemplo. Já vi ao longo da minha vida alguns deslizamentos aqui, pessoas e famílias que morreram por causa disso. A má conservação, a distribuição do lixo, é uma coisa muito grave.” — Marcia Santos Pinto
Marcia Santos recordou, ainda, um evento marcante para os moradores mais antigos do PPG: o deslizamento de uma caixa d’água comunitária na véspera do natal de 1983. Segundo ela, de dez a 15 pessoas morreram nessa tragédia. Uma reportagem do jornal Última Hora, no entanto, registrou 17 mortos.
Diante da lembrança da moradora, Márcia Souza esclareceu o que aconteceu, apontando para a verdadeira dimensão do problema do lixo na comunidade.
“Não foi exatamente a caixa d’água que desabou. Foi o lixo. O pessoal fez uma montanha de lixo lá em cima [já que não havia serviço de coleta pública] e ela desabou… No mesmo lugar, repetiram essa montanha e ela caiu de novo. Essa montanha, que não tinha que tá lá, foi levada pela chuva forte… [a enxurrada] levou uma pedrona no caminho, e essa pedra bateu na caixa d’água, que se movimentou um pouco, e fez com que as caixas abaixo dela descessem também.” — Márcia Souza
O lixo se manteve tema-chave nas discussões sobre como os eventos climáticos chegam pior nas favelas, não só pelas mudanças climáticas que os impulsionam cada vez mais, mas pelo descaso no investimento público que não chega de forma adequada para remover o lixo e realizar a educação ambiental necessária para que os moradores possam adequadamente lidar com ele. A jovem Sara Hins, participante do projeto da prefeitura Pacto pela Juventude, que visa fazer algo neste sentido, estava presente.
“Quando tem uma chuva muito forte, e por causa da falta de coleta, acaba descendo muita água e muito lixo no meio da estrada. Muitas poucas pessoas têm conscientização e muitas poucas fazem esse trabalho [de limpeza e educação]. Mudanças climáticas na favela é isso aí.” — Sara Hins
O tema da justiça climática também foi levantado, por uma moradora mais recente da comunidade, Gabriela Fleury, uma das responsáveis pelo projeto Planta na Rua.
“Aqui, um dos maiores problemas que a gente vê é lixo. Nossa, quantos problemas isso causa pra gente? Mas a gente tem que ver que a maioria dos efeitos das mudanças climáticas, esses eventos extremos de chuvas muito fortes, deslizamentos, questões de saúde, são muito mais agravados nas comunidades e periferias. Nós temos que pensar nisso. Não é por acaso. Como que a gente pode melhorar os nossos territórios, nós por nós, e mostrar isso pro mundo?” — Gabriela Fleury
Como as Questões Climáticas e Ambientais Dialogam com o Direito e Acesso à Moradia? E Quais Saberes a Comunidade Já Desenvolveu para Responder aos Desafios Impostos pela Natureza e pelo Clima?
Também abordado nas rodas de conversa foram os temas da relação da natureza e clima com o direito à moradia e os saberes que a comunidade desenvolveu para responder aos desafios ambientais impostos.
Para alguns moradores, no passado, a favela se mobilizava mais e se comunicava melhor durante a iminência de uma tempestade para que todos pudessem se ajudar.
“Quando eu era criança no Pavão, nossas casas eram de madeira… O pessoal era mais unido na época. Tinha aquele respeito pelo mais velho também… Então o vizinho começava a gritar ‘vai chover, vai chover’ e chamava as pessoas para limpar as valas. E todo mundo que podia ia ajudar a limpar, porque sabiam o que vinha… Hoje estamos com casas de alvenaria e as pessoas fazendo casa fechando a circulação de ar. Não temos mais ar limpo… não dá pra ver o céu, sentir uma brisa… E aí, a gente sofre quando vem a chuva, porque vem o lixo. Mas aí, o lixo que é produzido na rua (cidade formal), que talvez até seja muito maior que o que a gente produz aqui, o lixo de lá eles entregam ao pobre para se virar. Tem empregada doméstica, zelador do prédio, funcionário de empresa, que lida com o lixo, que tem que tirar o lixo da reta. Onde ele vai parar, não sei, talvez num lixão aí. Mas o nosso lixo, a gente tem que praticamente comê-lo. Tem que se virar com o nosso lixo.” — Valdete Santos
Durante a roda, a moradora Maria Aparecida também lembrou os velhos tempos, neste caso relatando quando era criança e sua tia perdeu o telhado de casa em uma ventania.
“Antigamente, as pessoas moravam em casas grandes, enormes. Era de madeira? Era. Mas era limpa, organizada. Tinha flores, plantas. Eu estava na casa da minha tia, na janela, e começou a mudar o tempo. Eu tinha oito anos e meu tio falou ‘vai chover, fecha a janela!’. A casa era de madeira e, em cima, de telhas. E eu fechei a janela. Mas, quando eu fechei, o que aconteceu? O vento entrou, ficou sufocado e saiu por cima [empurrando as telhas para o alto]. E o telhado todo da casa da minha tia foi embora [voando].” — Maria Aparecida Pereira
Sônia Modesto trouxe a lembrança de que as primeiras casas ainda eram construídas com insumos naturais, disponíveis no solo e nas matas da favela.
“Não tinha nada mesmo, era tudo mato… Os barracos eram de barro, de jogar na parede e sair amassando.” — Sônia Modesto
Outra questão abordada foram os deslocamentos forçados em virtude de eventos climáticos extremos e como as histórias das favelas da cidade se mesclam e vão se repetindo. Valdete contou como isso se deu no PPG.
“Em 1966 aconteceu o que hoje chamam de enchente, lá no asfalto. Mas aqui no morro não é bem enchente, porque o que aconteceu é uma enxurrada. Muitos perderam casas, e com isso pessoas foram para a Cidade de Deus. [Eu] tinha uma tia que foi para lá. Pessoas foram para Paciência [Antares]. [Os governantes] aproveitaram para remover.” — Valdete Santos
Leonardo Ribeiro, historiador de Antares presente na roda, ecoou o relato de Valdete expondo que o local onde vive possui uma ligação estreita com famílias de diversos locais, que muitas vezes foram removidas por motivos atrelados aos problemas climáticos. Segundo ele, ao todo, oito famílias foram removidas após um incêndio no Pavão, indo para Antares, Santa Cruz e para a Favela do Aço, ao lado, em 1966. Outras, foram morar justamente na Cidade de Deus após deslizamentos.
Pensando em soluções realizadas pela comunidade, a questão do lixo e da educação socioambiental foi a mais levantada. Nivaldo Moura, mobilizador ambiental responsável pelo projeto referência Favela + Limpa, que a mais de uma década realizada mutirões e projeto de limpeza no PPG, prestou vários depoimentos otimistas e propositivos.
“Eu não vou me estender na parte degradante do território do PPG. [Eu] vou falar da beleza que estou observando. Nos últimos períodos… [estou] observando que tem mais verde, não que o homem esteja cuidando… da floresta. Mas a natureza está dando a resposta que ela sempre deu. Quem tá passando… na Saint Roman, vai observar que tem pássaros que não tinha, tem uma família de miquinhos que tá transitando pela comunidade toda. Isso aí é a natureza mostrando sua força. Tá dando resposta ao homem que destrói, enquanto a natureza cuida. — Nivaldo Moura
Nivaldo então falou sobre o que homen de fato faz para melhorar a situação, com base no próprio exemplo. Mas a contrapartida do poder público, nada.
“Todo dia eu faço a minha realidade acontecer. Sábado, domingo, feriado. É todo dia o trabalho. Tenho vergonha de ver um turista aqui e ter lixo e cocô no chão, esgoto aberto, esgoto vazando, rato de dia e de noite… O poder público sobe as favelas do Rio, mas porque não resolve? Estamos discutindo esse tema com pessoas aqui de 70 anos, 85 anos. E não sei por quantos anos lá na frente vai ter gente falando. E o poder público nada faz.
…O governo tinha que estar aqui. Nos dias do carnaval fomos desassistidos pelo poder público… A Comlurb brilhou lá embaixo [removendo o lixo em Ipanema], mas aqui o lixo acumulou, os ratos fizeram festa. Quando eu coloco que o poder público tinha que estar num debate deste para ouvir, é isso. Eu tô contando um relato do qual eu sofri, que eu tentei, mas eu sozinho não consegui… Quando tem um evento assim, as pessoas me citam e me chamam, porque é um trabalho sério… [Mas] o que estamos fazendo como comunidade para impedir uma nova tragédia?” — Nivaldo Moura
Focando na importância da responsabilidade individual dos moradores, Valdete acrescentou.
“Os moradores têm vergonha de descer com lixo. Para mim é um orgulho. Eu não me importo, posso estar bem vestida. Pra mim é um orgulho. A gente vê famílias inteiras descendo sem levar nada. Onde está todo este lixo? Ou eles elegem um na casa para descer com aquele saco que ninguém aguenta? O que custa para descer com o lixo da casa? Todo dia, toda família produz lixo, o que custa descer?” — Valdete Santos
Rafaela Machado, jovem comunicadora do PPG Informativo, levantou essa responsabilidade para ela mesma, lembrando que errou quando criança.
“A gente tem que transformar nossa relação com o lixo. Em todas as comunidades é essa coisa do lixo. Lá onde eu morava no Pavão, perto da pedra que caiu, era montanha de lixo mesmo. Eu também errei, criança jogando lixo ali direto, por preguiça. Mas fui chamada a atenção. Não é só [responsabilidade] do governo, mas [da nossa] educação.” — Rafaela Machado
Pensando de outra perspectiva sobre como impedir futuros deslizamentos, Gabriela traz outro elemento que deva fazer parte da solução: a manutenção e o plantio de árvores.
“Se matar a árvore a raiz morre também. E a raiz ajuda contra o deslizamento.” — Gabriela Fleury
Ainda a Isabella Rego, cuja família criou a Solar Meninos de Luz, trouxe outra proposta, já puxando para o assunto da energia, grande vilão do aquecimento global.
“Aqui a gente está exposto ao sol, então a comunidade poderia estudar mais a possibilidade de conseguir fundos para colocar energia solar nas casas porque isso ajudaria a diminuir a questão dos gatos que podem criar problemas de segurança para a comunidade e perdas de energia, e seria mais visualmente bonito ter menos fios expostos. O Solar já tem um pequeno trecho de placas solares que ajudam bastante com o custo de luz.” — Isabella Rego
A roda se encerrou com uma reflexão profunda e de se aprofundar o engajamento e união, de sua anfitriã.
“Esse é um desafio nosso interno, enorme. Eu penso assim, como nascida aqui, minha mãe nascida aqui, [sendo alguém que teve] a oportunidade de ter saído e voltado… Saí do país, e hoje eu falo, ‘Aqui é meu lugar.’ Escolhi estar aqui porque eu quero. Esse trabalho que faço hoje, aos trancos e barrancos dentro de um museu, inovador, equipe de mulheres, não temos um homem na equipe. Mulheres que vem se superando. O mais importante… é nos unir. Tirar essa impressão que a gente não se ouve.
Hoje eu vejo as pessoas aqui que vieram porque eu fui chamar cada um, porque foi um corpo a corpo. Fico com vontade de chorar toda vez que olho tanta gente. Isso significa uma vitória, porque a gente alcança [o objetivo] quando a gente dá o primeiro passo. Poder público, legal. Mas quem bota eles lá somos nós. O que a gente pode fazer é se unir, falar sobre isso o tempo inteiro. E somar as opiniões. Vamos costurar, vamos fazer uma colcha.
Então minha proposta é isso. Criar a partir dos jovens, dos seniors. Tem que aproveitar essa oportunidade da gente se ouvir, se unir. Temos muitos frutos já. Então é isso. Nem todo mundo tem o mesmo modo de ser e pensar. A Isabella tem um, assim como da Tia Sônia, da Tia Zilda, da Rafaela… Porque cada um é uma pessoa diferente. É isso que faz a gente ser mais forte. E começar essa caminhada de transformação. Que hoje é nossa favela, PPG, onde temos que focar. E lá na frente quem sabe, expandir. Imagina, que nem a Marielle. Dos frutos que ela fez. Hoje, as mulheres de favela, pretas, se espelham na Marielle. É isso. Conheço muita menina preta que tão aí caminhando nessa trilha que ela abriu. Favelada, correu atrás, se formou, cumpriu o papel dela.” — Marcia Souza
Leia toda a série “Memória Climática das Favelas” aqui.
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