5ª Roda de Memória Climática das Favelas no Núcleo de Memórias do Vidigal: ‘As Pessoas Precisam Morar!’ [IMAGENS]

Participantes da Roda de Memória Climática, no Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira
Participantes da Roda de Memória Climática, no Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira

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No dia 17 de junho de 2023, será realizado o lançamento da Exposição de Memória Climática da Rede Favela Sustentável (RFS)*. Para dar um gostinho, estaremos até lá publicando uma série de matérias que resumem a dinâmica de cada roda de memória realizada, em cinco museus comunitários, entre janeiro e março deste ano, que compõe a exposição. Esta quinta matéria da série apresenta a quinta roda, realizada no dia 12 de março, pelo Núcleo de Memórias do Vidigal. O projeto foi desenvolvido pelo Eixo Cultura e Memória Local da RFS, composto por museus comunitários integrantes, aliados técnicos e mobilizadores de diversas favelas do Grande Rio.

As Rodas de Memória Climática da Rede Favela Sustentável têm como objetivo resgatar e registrar as memórias e histórias que guardam os moradores de longa data das favelas do Rio de Janeiro, sobre o tema do clima, para que possamos enxergar formas de nos preparar para as mudanças climáticas que estão por vir. O tema tradicionalmente é raramente abordado, apesar de, como mostraram as rodas, ser muito presente no cotidiano das favelas.

Em uma série de rodas que acontecem ao longo de um dia, desenvolvidas para focar e aprofundar este assunto, os moradores convidados pelos museus trocam visões sobre suas vivências e experiências com as mudanças climáticas, resgatam memórias sobre a relação da formação de suas comunidades com a natureza e clima, dialogam sobre a relação do clima com a realização do direito à moradia, e abordam as soluções e mobilizações feitas pelos próprios moradores, destacando as prioridades equivocadas do Estado, que tende a ver remoção como uma solução.

Vista do Instituto Todos na Luta, na localidade conhecida como Atalho, no Vidigal, onde ocorreu a Roda de Memória Climática. Foto: Alexandre Cerqueira
Vista do Instituto Todos na Luta, na localidade conhecida como Atalho, no Vidigal, onde ocorreu a Roda de Memória Climática. Foto: Alexandre Cerqueira

No dia 12 de março, 50 pessoas se juntaram na sede do Instituto Todos na Luta para a última Roda de Memória Climática, essa organizada pelo Núcleo de Memórias do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Estavam presentes diversos moradores, inclusive uma matriarca centenário, e representantes de organizações comunitárias do Vidigal, como a Associação de Moradores da Vila do Vidigal (AMVV), Comunidade Rede, Nós do Morro, Parem de Nos Matar (PdNM), ONG Horizonte, Projeto SER Alzira, Projeto ART de Cor Vidigal e Vidigal na Social, além de parceiros de organizações externas.

O Que São as Mudanças Climáticas?

Já na abertura do evento, Bárbara Nascimento, 44, do Núcleo de Memórias do Vidigal, apresentou a pergunta norteadora da primeira roda, “O que são as mudanças climáticas?” Ela seguiu falando que “a história do Vidigal está totalmente implicada à questão climática“, pois sob a alegação do risco iminente de deslizamento de terra o poder público tentou remover a localidade conhecida como 314, na década de 1970. Fato que se repete, hoje, em outra parte da favela, a Jaqueira. Este assunto foi recorrente ao longo da roda de conversa.

Mapa do Vidigal: os participantes indicaram os bairros em que moram escrevendo o próprio nome. Foto: Alexandre Cerqueira
Mapa do Vidigal: os participantes indicaram os bairros em que moram escrevendo o próprio nome. Foto: Alexandre Cerqueira

Os moradores foram convidados a se aproximar ao Mapa do Vidigal feito por André Koller, um alemão que mora no Vidigal há 15 anos. O objetivo era localizar as ruas onde moram e anotarem seus nomes nelas. A favela estava no mapa.

“É interessante se procurar no mapa, porque por muito tempo a favela não estava no mapa… quanto à questão espacial da favela, o Vidigal tem uma particularidade: nossas ruas homenageiam as pessoas que tiveram papel na nossa história. Por exemplo, o Arvrão, que é o Sr. Armando. A gente homenageia nossas personalidades em vida.” — Bárbara Nascimento

Bárbara Nascimento apresenta a roda. Foto: Alexandre Cerqueira
Bárbara Nascimento apresenta a roda. Foto: Alexandre Cerqueira

Iniciando o primeiro tema de discussão, sobre o que são as mudanças climáticas, Bárbara ponderou.

“Às vezes, a gente acha que esse assunto tá muito distante, quando, na verdade, não [está]. Quando na verdade, a questão da mudança climática tem impacto direto na favela, inclusive, muitos chamam de racismo ambiental, porque quando ocorre alguma tragédia por conta das chuvas é a população favelada que sofre mais com as consequências, com os deslizamentos, com as enchentes.” — Bárbara Nascimento

Reforçando o ponto de Bárbara, Osias Pinto Peçanha, 56, ex-morador, relacionou as mudanças climáticas ao consumismo. Ele também expôs o fato de que as favelas são os territórios de maior impacto e que isso já vem acontecendo há anos, constatando a injustiça climática.

Nós [seres humanos] somos consumidores compulsivos. Pra onde vai o nosso lixo?… As favelas sempre foram impactadas [pelas mudanças climáticas], os piores efeitos são nas favelas… Não mudou muito. Continuou acontecendo. Os desabamentos, as enchentes. Mudanças climáticas, provocadas pelo excesso de consumo, têm mais impactos nas favelas.” — Osias Pinto Peçanha

Já Armando Almeida Lima, referência histórica da luta contra as remoções durante a ditadura, morador da favela há mais de 60 anos, e ex-presidente da associação de moradores, relembrou do Vidigal dos anos 1950 e 1960. Para ele, é graças à falta de uma política habitacional eficiente, que o desmatamento cresce.

“Cheguei em 1959. A comunidade aqui era uma mata. A gente respirava um ar puro, da montanha. O tempo foi passando, as pessoas precisam de casa. Da minha janela eu vejo. O que era mato mato mato virou casas. O povo teve que morar! As pessoas precisam morar! Meus filhos vão morar onde? No Leblon não pode. Então, tem que ser aqui. Tiro mais uma árvore. Menos uma árvore. Menos um ar puro para respirar.” — Armando Almeida Lima

Seu Armando mostra fotos antigas. Foto: Alexandre Cerqueira
Seu Armando mostra fotos antigas. Foto: Alexandre Cerqueira

A partir da fala do Sr. Armando a troca se manteve focada para o resto do dia, entre idas e vindas, neste assunto de tremenda preocupação para a favela mais valorizada do Rio de Janeiro. O direito à moradia permaneceu o carro-chefe da troca, apesar de originalmente planejado para uma roda mais tarde.

Antônio Paiva, 59, morador da Jaqueira, teve sua casa gravemente atingida pelas chuvas de 2019. As famílias desta localidade entraram com processo judicial para que a Prefeitura as indenize com justeza. Suas casas foram condenadas pela Defesa Civil. Paiva relatou que o valor de indenização oferecido pela Prefeitura é extremamente irrisório frente ao alto custo de vida no Vidigal.

“Temos uma guerra na justiça sobre a remoção das nossas casas na Jaqueira. A prefeitura ofereceu R$11.000 por algumas casas, achando que tá pagando muito. Só que no jornal o metro quadrado no Vidigal custa R$19.000. Eles ofereceram R$1.800 o metro quadrado. Mais uma vez a justiça veio para fazer a medição da nossa comunidade, nas nossas casas. Só que eles são tão espertos que conseguiram botar um contra o outro. Não sei como fizeram. Só sei que [agora] um morador não tá falando com o outro.” — Antônio Paiva

Amanda dos Santos Francisco, 35, moradora cria do Vidigal, é fruto de uma família que chegou há décadas, migrando da Bahia. Ela opinou sobre o que chamou de “tentativa de remoção velada“, que é uma estratégia de certos governantes. 

Evânia e Seu Armando marcam presença no mapa. Foto: Alexandre Cerqueira
Evânia e Seu Armando marcam presença no mapa. Foto: Alexandre Cerqueira

Segundo Evânia de Paula Muniz, 56, artista plástica cria do Vidigal, que participa de vários projetos prezando a sustentabilidade ambiental, a culpabilização dos moradores pelo crescimento das favelas é injusto, pois, sem política de habitação, eles não têm opção.

“A favela cresceu muito verticalmente e concretou a terra. Dessa forma, o quê que pode acontecer? Ondas urbanas de calor… A comunidade é criada pela necessidade. Ela não é culpada de ocupar desordenadamente… as pessoas não ocupam porque querem, mas por necessidade… As favelas continuarão crescendo, porque não há investimento para moradia popular no município. Ao pobre trabalhador, a única alternativa é morar em favelas ou ocupar prédios públicos abandonados.” — Evânia de Paula Muniz

Outra consequência da falta de política habitacional, conforme falou Júlia Chaves Giglio, 35, do Instituto Todos na Luta, é o desabastecimento de água. Julia descreveu que, da sua casa, no Atalho, ela consegue ver o que sobrou de um rio, hoje transformado em esgoto. Em sua fala, ela questionou a falta de planejamento do poder público e seu potencial de reforçar injustiças climáticas.

“Pelo que eu venho aprendendo, a gente poderia citar a situação da falta d’água na Rua 3, que é uma mudança de clima também. Há construção de casas em uma quantidade que a água já não é mais suficiente… ali, ainda vejo o restinho do rio, da janela da minha casa. Eu falo que é uma cachoeira, mas o cheiro não é de cachoeira.” — Júlia Chaves Giglio

Aristides, morador do Atalho, no Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira
Aristides Peixoto Filho, morador do Atalho, no Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira

Aristides Peixoto Filho, 65, vizinho de Julia, e morador do local há 40 anos, se referiu à degradação do lugar e à responsabilidade dos moradores neste processo: “Não é só o governo que tem que fazer. Nós temos a obrigação de cuidar da nossa casa, do lugar onde moramos”. Falta educação à população, em todos os níveis, inclusive ambiental, disse ele, fazendo referência ao lixo produzido e jogado nas ruas, becos e encostas da comunidade. É importante notar, no entanto, que o maior responsável por isso é um poder público com políticas ineficientes de manejo de resíduos sólidos e esgotamento sanitário em favelas.

Como Se Deu a Ocupação e Qual é a Relação do Território com o Clima e Natureza?

No bojo das memórias sobre a favela, Rita de Cassia Machado, 58, moradora da localidade do 314 há 44 anos, relatou os processos de mudança que testemunhei no Vidigal. 

“Lembro quando minha família veio morar aqui, as casas eram espaçadas, todo mundo tinha quintal. Era possível ver o mar do quintal e sentir o cheiro da maresia… Tinha casa com cerquinha. Vento. Visão direta para o mar… O Vidigal cresceu muito como todos os lugares, mas cresceu muito mais do que o asfalto pela necessidade de moradia, o empobrecimento da população… Pelo empobrecimento da população, o crescimento populacional no morro aconteceu sem o devido suporte, sem a devida estrutura de serviços públicos, recolhimento de lixo, saneamento básico e fornecimento de água potável… Um pavimento, aí a família cresce e faz outro… Entendo que isso tudo tem a ver com a questão climática. Antes a gente sentia ar fresquinho dentro de casa. Hoje tem que sair, botar a cara para fora para tentar sentir a maresia. A quantidade de casas que viraram caixotes… A gente não vivia num pombal antigamente, hoje a sensação é essa.” — Rita de Cassia Machado

Prosseguiu contando que, no final dos anos 1970 e 1980, a AMVV tinha legitimidade, dada pelos moradores, e legalidade, negociada com o poder público, para impedir construções em área de risco. Segundo ela, quando as normas não eram respeitadas, as construções irregulares eram derrubadas pela Associação, em benefício do coletivo da favela.

“Eu me lembro de uma casa na pedrinha, a primeira casa que foi construída em cima da pedra. Os moradores fizeram a denúncia, a associação derrubou. Se construiu uma casa colada na pedra. No início não sabia de quem era a casa, depois que foi conhecido, a associação manteve sua postura.” — Rita de Cassia Machado

Rita trabalhou em dois projetos fundiários históricos no interior da favela: Cada Família um Lote, no governo Brizola, nos anos 1980, ou “cada família um calote”, como pontuou Armando, e Regularização Fundiária, nos anos 2000. Ela falou de seu espanto ao ver o aumento impressionante de moradias no intervalo de tempo entre um projeto e outro. Ela acredita que, sem políticas públicas de habitação nas favelas, não haverá estrutura capaz de suportar o crescimento dos territórios e das tragédias advindas das mudanças climáticas.

Seu Aleluia, como é conhecido, do SER Alzira. Foto: Alexandre Cerqueira
Seu Aleluia, como é conhecido, do SER Alzira. Foto: Alexandre Cerqueira

Seguindo o giro da roda de memória climática, Antônio Carlos de Aleluia, 71, de uma das famílias mais antigas do morro, começou sua fala compartilhando um pouco do que sua avó, Alzira Zulmira de Aleluia, contava para ele sobre sua origem e vinda para o morro.

“Minha vó Alzira de Alleluia foi filha de escravos e saiu [do regime de escravidão] com a Lei do Ventre Livre. Os primeiros que chegaram aqui no Vidigal chegaram de Moçambique. Eles vieram no navio negreiro, mas sabiam ler e escrever. Tacava [os africanos sequestrados] na Praça XV e eles se embrenharam pela mata adentro e foram a pé até Minas Gerais porque sabiam ler e escrever. Quando chegaram lá, não tinha cartório, [foram para a] Igreja Católica… [e disseram] somos homens livres. E eles falaram, vocês têm que ter sobrenome. Como era um sábado de Aleluia, o padre deu este nome para eles. Daí começou a saga dos Aleluias. (aplausos) Então, esse nome Aleluia foi aumentando aqui com as famílias.” — Antônio Carlos de Aleluia

Seu Aleluia, como é conhecido, contou também sobre a centralidade da Escola Almirante Tamandaré, no Vidigal, em meados dos anos 1960. Além de ser um ótimo colégio, com professoras dedicadas, por várias vezes, serviu como abrigo para moradores em situações de risco climático. Ele relatou sobre a enchente de 1957, quando ficou abrigado na Escola Almirante Tamandaré com sua família.

“Eu fui o primeiro aluno a entrar no Tamandaré, que foi inaugurado em 1956. Na minha [época], só podia entrar com 7 anos. Fui um dos primeiros a entrar ali. As professoras eram super carinhosas… terminei e fui o primeiro aluno a entrar no colégio estadual. Eu queria concorrer com os alunos do Santo Inácio, Santo Agostinho. Tamandaré foi um colégio forte com muita cobrança. Eu fui estudar na Urca, onde sofri o racismo pela primeira vez…. os jovens que estavam ali, um era filho do General Castelo Branco, que foi o criador da ditadura… A Urca é o lugar mais elitizado do Rio de Janeiro…  Quando minha mãe chegou lá, aí ela falou ‘o que que houve?’ E o diretor respondeu ‘temos aqui o filho do presidente Castelo Branco. E ele é o único preto que tem aqui’. Ela respondeu ‘meu filho passou aqui num concurso, ele é o único preto. Agora ele vai continuar. Então, o diretor passou a me dar a caixa escolar, roupa, cantina… Passei para a Universidade Federal Fluminense. Fui o primeiro aluno do Vidigal a entrar numa universidade federal. E aí escolhi a profissão interessante pra mim que era a engenharia… Hoje sou professor da UFF, sempre chego [na universidade] e digo que sou do Vidigal, nascido e criado num barraco… Vocês lembram desta chuva de 1952? Nós ficamos no Colégio Tamandaré naquela enchente que varreu o Vidigal de fora a fora. Fui abrigado ali na escola… ali foi muito bom pra mim.” — Antônio Carlos de Aleluia

Participantes manuseiam fotos antigas. Foto: Alexandre Cerqueira
Participantes manuseiam fotos antigas. Foto: Alexandre Cerqueira

Continuando a falar sobre memória climática, Seu Aleluia reivindicou o lugar dos moradores assassinados pelo racismo ambiental, políticas públicas ineficientes e um Estado negligente. É preciso lembrar dos mortos quando se fala de memória climática nas favelas, para tentar evitar que as mesmas tragédias se repitam.

“Lembra da pedra lá do Sr. Vitor? Colocaram uma escora naquela pedra que ia fazer uma desgraça… Era uma bomba atômica… [a escora] foi feita pela associação de moradores… Agora temos uma outra bomba atômica. Teve um desmatamento muito grande no Vidigal, então tá descendo uma água violenta… A pedra que desceu na direção da nossa casa matou a Vandinha. Até hoje o corpo dela tá lá, não deu para tirar, porque amassou tudo.” — Antônio Carlos de Aleluia

Em seguida, Bárbara, não só cria mas também pesquisadora do Vidigal sobre sua formação e as memórias locais, contou um pouco sobre a história do território.

“O nome Vidigal vem de um major, o major Miguel Nunes Vidigal, que, inclusive, ganhou essas terras aqui da Igreja Católica por coibir manifestações do povo preto. O Vidigal é uma favela de população preta. Os dois primeiros moradores do Vidigal foram o major e Charles Ariston, que fundou a Escola Anglo, hoje o Stella Maris. Ambos eram higienistas… Mas aqui estamos, e estamos resistindo… Por dados oficiais, dizem que o Vidigal começou a ser ocupado em 1940. Não há nada que comprove isso… Achamos que faz muito mais tempo. Se hoje continuamos a falar da possibilidade de remoção na Jaqueira, há 45 anos atrás, o Sr. Armando foi um líder contra essa remoção [que ainda há ameaça hoje].” — Bárbara Nascimento

Participantes da Roda de Memória Climática, no Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira
Participantes da Roda de Memória Climática, no Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira

Subindo a Avenida Presidente João Goulart, antiga Estrada do Tambá, via principal do Vidigal, há, de um lado, a favela e, de outro, áreas particulares, região conhecida como “dos proprietários”. Residências de favelados e de proprietários partilham quase que o mesmo espaço até que, em um determinado ponto, essa concepção de diferença se confunde. No entanto, é exatamente por isso que a fronteira é constantemente remarcada pelo preconceito, que distancia vizinhos que moram a metros de distância uns dos outros. É preciso notar que também no interior da favela, se observa o mesmo tipo de discriminação. Alguns moradores de localidades mais nobres do próprio Vidigal não se veem como favelados e, portanto, não se propõem a lutar as mesmas batalhas. E o poder público se beneficia da desunião causada por divisões internas.

Osias Pinto Peçanha, cria do morro, hoje morador da Baixada Fluminense, ainda tem grande parte de sua família no Vidigal. Ele responsabilizou o Estado pela falta de política ambiental efetiva que quase vitimou sua família e impulsionou sua mudança do Vidigal.

“Minha vó comprou um daqueles loteamentos lá. Somos do grupo do IPTU discriminado…  Ouvindo Sr. Aleluia falar, Sr. Armando, nossos griots, precisamos de um livro com essas memórias!… Minha casa foi atingida pela enchente de 2019, dia 6 de fevereiro. Eu estava em Caxias dando aula de direitos humanos. Enquanto estava dando aula, minha esposa e minha filha estavam sendo resgatadas pela janela porque… bom, enfim. Nós nos mudamos, hoje moramos na Baixada. Meus irmãos, mãe estão lá ainda. Estamos constantemente aqui. Amo esse lugar. O Estado é responsável pela falta de políticas públicas… Não há vontade política de resolver o problema.” — Osias Pinto Peçanha

Como as Questões Climáticas e Ambientais Dialogam com o Direito e Acesso à Moradia?

Como se não fosse óbvio pelas trocas até então, a terceira pergunta norteadora do dia foi apresentada. Como as questões climáticas e ambientais dialogam com o direito e acesso à moradia? A conversa segue.

Ainda sobre a enchente de 2019, que atingiu em cheio a Jaqueira, a moradora Tatiana de Souza Moraes, 32, conta a noite de horror que teve, testemunhando a morte dos vizinhos. A todo instante ela pensava que poderiam ser ela e seus filhos embaixo dos escombros.

Eu me senti assustada naquele momento porque me coloquei muito no lugar das pessoas. Eu morava na Jaqueira, na Rua 3. Eu poderia estar morando naquele local quando aconteceu aquilo. Eu poderia estar lá, com os meus filhos. Foi surreal. E isso começou de madrugada, eu lembro até hoje. Eu morava ali naquele prédio. Comecei a escutar gritos. As pessoas pedindo socorro e eu desesperada, olhando pela janela… Eu comecei a gritar: ‘Tem uma garagem embaixo ali!’ Abrimos a garagem, e o pessoal ficou ali… Quando era três horas da manhã, fui dormir, porque tinha que trabalhar no dia seguinte. Quando acordei às sete, fiquei muito em choque. Não tinha presenciado de perto enchentes assim. Tinha um corpo de uma senhora no chão.” — Tatiana de Souza Moraes

Rita continuou a tecer a história de sobrevivência a desastres climáticos de seus vizinhos e reforçou mais uma vez o papel da Escola Almirante Tamandaré, que sempre representou um porto seguro para a comunidade. Uma das únicas faces do Estado presente ao lado dos moradores nesses episódios de racismo ambiental.

“Na enchente de 1996, eu era educadora da creche. A gente subia o morro para tirar as pessoas e os bombeiros pudessem chegar… A gente cavou com as mãos pra tentar salvar as pessoas soterradas. A gente só tem noção do que é o efeito devastador das mudanças climáticas quando a gente tá ali. Foi muito difícil, a Tamandaré mais uma vez recebeu os desalojados… quando vem uma chuva mais forte, o volume tá tão grande que vem uma tromba d’água. E a gente vê muita coisa ir embora. Na 314, toda a encosta vira cachoeira.” — Rita Machado

Participação especial de Dona Isabel, de 104 anos, na Roda de Memória Climática do Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira
Participação especial de Dona Isabel, de 104 anos, na Roda de Memória Climática do Vidigal. Foto: Alexandre Cerqueira

Também foi presença comum entre os moradores na roda a vontade de incidir politicamente sobre os governos, que são vistos como os responsáveis pelas mortes e destruição causadas por eventos climáticos extremos no Vidigal, entendendo que obras poderiam ser feitas ao invés de remoções.

“O pessoal pode falar que habitação não tem nada a ver com mudanças climáticas. Mas tem tudo a ver! Porque quando a água faz o caminho, não tem jeito. Só que o rico vai fazer uma estrutura que fica por cima e a água passa por baixo. Os pobres não pensam no caminho da água, só no que deu para fazer naquele momento. Então, cadê os nossos políticos? …Precisamos chamar o Nós do Morro, chamar a associação, os empresários e fazer esse movimento acontecer, porque não é só a Jaqueira. Existem remoções pautadas para todo o estado do Rio de Janeiro. E isso vai modificando a história da gente.” — Mauro Ferreira da Silva

A falta de vontade política dos governantes, a burocracia e o jogo de empurra entre as autoridades só pioram o quadro.

“Tudo na Pedrinha, que sobe até o Santinho, tem uma terra muito frágil. A gente tinha que criar um movimento para levar isso para a prefeitura, porque isso é urgente. Eles falaram que essa terra está sempre em movimento… terra em movimento, com pedras!… Na 25, tem áreas altíssimas de risco. Na Jaqueira temos materiais soltos [nas encostas]… Então, temos que brigar sistematicamente por isso. Fizeram barreiras lá embaixo na Niemeyer, perguntei [para a Geo-Rio] por que não fazem o mesmo aqui em cima. Eles falaram que é mais caro, que é responsabilidade do governo [do Estado].” — André Gosi

As lembranças das enchentes que geraram tragédias na favela ocuparam o ambiente da Roda. Seu Aleluia e Armando trouxeram memórias das enchentes entre 1950 e 1960. Bárbara e Rita, entre outros, das de 1988 e 1996. Já as de 2015 e de 2019, estão mais vivas entre os mais jovens do grupo. Nesse contexto, soma-se à ansiedade climática, a especulação imobiliária no morro, que tem gerado bastante preocupação.

“A especulação imobiliária no Vidigal encareceu muito o morro e não gera renda para a comunidade… Essa coisa de pessoas que vêm de fora, que querem investir aqui dentro, não é bom para a favela, não gera renda. As coisas aqui também estão caríssimas, isso é mais um absurdo. São mais caras que Copacabana, como é que pode?” — Tatiana de Souza Moraes

A espetacular vista para o mar e a localização privilegiada, no caminho entre as zonas Sul e Oeste, sempre foram cobiçadas pela elite financeira. Inclusive, foi sob o pretexto de salvaguardar as vidas dos moradores que tentaram remover o 314, parte que margeia a Avenida Niemeyer. Na verdade, apurou-se no final da década de 1970, que a vida dos moradores era a menor das preocupações dos governos municipal e estadual. Aquela área, de acordo com o relato do Armando, presidente da AMVV à época, já estava loteada entre empresários do ramo imobiliário para construírem mansões. Diante da falsidade dos gestores públicos, a associação de moradores botou a boca no trombone, mobilizou Deus e o mundo para barrar a ameaça de remoção do 314. Personalidades do mundo das artes, políticos comprometidos com o povo, juristas, clérigos e ativistas da Pastoral de Favelas, profissionais liberais de diferentes áreas se juntaram aos moradores nessa empreitada. Vencemos!

Já em 1996, a Prefeitura realizou obras de contenção em uma parte no alto do morro, atingida pela enchente. Ocorre que isso não foi exatamente em benefício dos moradores, uma vez que a Rua Carlos Duque, bastante atingida, como lembra a Bárbara, não foi contemplada pelas obras. No local das benfeitorias públicas, foi construído o Hotel do Arvrão. Esse episódio leva parte dos moradores da Jaqueira a desconfiarem das reais intenções do poder público. Será que não querem fazer o mesmo que fizeram no Arvrão?

Enquanto os moradores vitimados sofriam as consequências da enchente, um empresário aproveitou o momento para, praticamente, expropriá-los de suas casas. Dessa forma, as famílias teriam sido iludidas, convencidas a deixarem seus lares.

“As casas foram marcadas. As casas que queriam comprar eram marcadas, né? Então, chegavam pra pessoa pobre, humilde, botavam um dinheirão vivo na mesa, um monte de nota pequena… assim, o dinheiro faz volume.” — Rita de Cassia Machado

Luciana Bezerra, 48, atriz, cineasta e escritora, contou que sua mãe queria “morar na favela do Papa“.

Às vezes, fica parecendo que o Papa veio aqui como salvador. Não! Isso foi muita articulação vidigalense! Aqui já tinha gente politizada lutando pela sua permanência.” — Luciana Bezerra

Já André Maurício Gosi, 61, o Deco, ex-diretor da AMVV, refletiu que a favela tem pessoas, identidades e nuances totalmente diferentes.

“A gente tem todo o Brasil dentro de uma favela… Hoje [o Vidigal] virou um ponto turístico, que é muito famoso e mesmo assim temos problemas que outras favelas têm.” — André Gosi

André Gosi apresenta suas reflexões. Foto: Alexandre Cerqueira
André Gosi apresenta suas reflexões. Foto: Alexandre Cerqueira

Quais Saberes a Comunidade Já Desenvolveu para Responder aos Desafios Impostos pela Natureza e pelo Clima?

Segundo André, o processo migratório, antes, não se dava tanto pelo visual proporcionado pela favela do Vidigal. As pessoas vinham, principalmente, pela história de luta de seus moradores, um saber profundamente vidigalense. André fala também de projetos implementados no morro, que dão certo e que devem ser acompanhados e ampliados, como a horta comunitária no costão da Niemeyer, atrás da Escola Municipal Djalma Maranhão, feita pelo Paulo Cesar de Almeida, morador que era responsável pelo Sitiê. E o projeto Telhado Verde, no ponto das kombis.

“O que a gente tá fazendo aqui hoje é muito importante. Discutir mudanças climáticas. Guto com o Teto Verde no ponto das kombis. O Paulo, que tá fazendo a horta comunitária aqui.” — André Gosi

Importante registrar que o projeto de reflorestamento que era feito em parceria com a Prefeitura tinha à frente o saudoso Sérgio Moreira de Melo, que era incansável na causa ambiental. O projeto acabou e não há notícias, pelo órgão público, de retomada dos trabalhos.

Após o almoço na cozinha sustentável de Maria das Graças Prazeres Sabatiê, mais um saber sustentável do Vidigal, a gira da roda retomou a preocupação com as famílias da Jaqueira, vitimadas pela última grande enchente. Luciana fez uma colocação de extrema importância:

“São 64 famílias… Casa fica parecendo que é só tijolo e cimento. Não! Não é tijolo e cimento, gente, é família! São pessoas que moram lá.” — Luciana Bezerra

Diante do cotidiano trágico, talvez por defesa, muitos naturalizam a dor, as suas próprias e a dos outros, enquanto a próxima tragédia, que encobrirá a atual, não chega. Maria da Penha, do Museu das Remoções, esteve observando o evento. De repente, enfática, reivindicou o papel central da luta como ferramenta contra a remoção.

“Só sai[em] daqui se vocês quiserem! A gente só é removido quando a gente se deixa remover. Ficaram só 20 famílias [na Vila Autódromo]. Foi um lugar privilegiado como era aqui. Falta união. A prefeitura faz isso mesmo, bota família contra família, vizinho contra vizinho… A favela [tem que] sabe[r] fazer barulho. Tem que ter associação, ONG, morador, todo mundo. Não precisa pedir licença. Bate na porta e entra. É de vocês. Tem risco de cair, sim. Mas a gente só é ouvido se a gente cobrar. Vocês só estão aqui porque vocês cobraram. O direito à moradia é o direito de todos nós. Essa favela é de vocês, é minha, é de todos nós que estamos aqui. O governo não tem direito de tirar vocês! Ele tem que fazer a obra! Vamos juntos fazer a obra! Tirar não é solução! O direito de ficar dentro daqui tá na mão de vocês. Se tem risco de vida, tem área que pode ser construída, é de vocês! Eu quero ficar aqui! Porque quebraram minha cara, quebraram meu nariz, mas eu continuo lá. Daqui não saio e daqui ninguém me tira! Não tirem vocês se se unirem de verdade. Tem gente, como falaram, estudiosos, já passamos da fase de sermos escravizados. Você vai ficar! É meu lugar! Por que? Porque é o que deixaram para nós! Vocês são um orgulho… Estou aqui para ajudar. A Marcia vem do Cantagalo para fazer um mutirão! Pra cima! Tem reunião, vai todo mundo!!! União é luta, é guerra, sabedoria e com muito amor no coração! Em primeiro lugar amor. Quem não quer tá nesta vista? Agora é área de risco, daqui a pouco vai ser área de rico. Porque deixaram… Não vamos deixar a peteca cair!… Vidigal resiste! Luta! Vitória! Viva o Vidigal!!! — Maria da Penha Macena

Exemplificando o que Dona Penha disse, Luciana Bezerra lembrou que a proatividade dos moradores vem proporcionando melhorias ao Vidigal desde sua fundação. Ela citou que uma professora “chamada Eunice, que esteve aqui [na Escola Almirante Tamandaré] por volta de 1984-85, contava a história das pessoas construindo a escadaria da 25. Não foi o governo. Fomos nós”. Além de Maria da Penha e Luciana, Bárbara também fez questão de tratar desse ponto, trazendo fatos históricos do protagonismo comunitário vidigalense, documentados pelas mídias comunitárias do morro. Ela citou medidas rotineiras tomadas pelos favelados de ontem que, hoje, são defendidas como soluções para as mudanças climáticas por especialistas na área ambiental.

Eu trouxe o jornal O Mensageiro, que é sobre o mutirão. Estamos aqui falando de um tema que nos atinge. Mudanças climáticas são temas nossos. Vamos criando estratégias… A casa era de barro, a gente fazia reaproveitamento da água… Nós que temos que apontar as soluções.” — Bárbara Nascimento

Ao concordar com todas essas falas, Evânia reforça a potência da ação dos moradores ao trazer à tona a questão do lixo. Frente à negligência do Estado, os cidadãos precisam ser mais zelosos com o que jogam fora. Ela defende que a reutilização e a reciclagem são métodos antigos nas favelas, que inspiraram, por exemplo, os mutirões que habitam as memórias de sua infância.

“Temos que ver a força que nós temos. Quando eu era criança eram mutirões todos os domingos para fazer moradias recicláveis. Usar o lixo de forma reciclável. Luxo, não lixo. O que você fez com seu lixo de hoje?” — Evânia de Paula Muniz

Em seguida, Bárbara e Laelson Alves da Silva apresentaram o Projeto RUA – Reforma Urbana das Artes, ainda no papel. O objetivo do projeto é “promover saúde através da arquitetura”. Segundo Bárbara, este vem contemplar uma lei que foi pensada por Marielle Franco, vereadora assassinada há cinco anos, para garantir à população favelada o direito à moradia saudável. Laelson acrescenta que o projeto prevê beneficiar mais de 1.000 pessoas, com o auxílio de engenheiros e arquitetos da prefeitura junto a empresas parceiras, sem custo para os moradores. Bárbara e Paiva propõem envolver o Bloco Acadêmicos do Vidigal em uma grande mobilização contra a remoção da Jaqueira. O Bloco é agregador, daí “é importante descer com o Bloco reivindicando pela favela.”

Maquete, feita de material reciclável, representando uma favela, produzida por Evânia, ex-moradora do Vidigal, em parceria com PUC-Arte Rio. Foto: Alexandre Cerqueira
Maquete, feita de material reciclável, representando uma favela, produzida por Evânia, artista cria, hoje ex-moradora, do Vidigal, em parceria com PUC-Arte Rio. Foto: Alexandre Cerqueira

Outra proposta da Bárbara e do Antônio Carlos Firmino, do Museu Sankofa, é buscar auxílio das universidades: UERJ, UFRJ e PUC. Pedir a visita de profissionais que possam vistoriar a região da Jaqueira com o objetivo de obterem outros laudos técnicos sobre a real situação de risco. Firmino conta que isso funcionou no Laboriaux, Rocinha, em 2011, quando a Prefeitura quis remover os moradores. Após vistoria dos novos laudos técnicos, permitiram a permanência das casas.

A Roda foi finalizada com o informe sobre a exibição do filme A Favela do Papa, do cineasta Marco Antônio Pereira, presente no Festival É Tudo Verdade. Este documentário foi feito a partir da fala de moradores sobre a visita do Papa João Paulo II ao Vidigal, em 1980. Além disso, os participantes também foram convidados a descer o morro e visitar a horta comunitária do Rio Recicla. Convite feito, convite aceito! Localizada em outra parte do costão da Niemeyer, o Zé do 314 implementou o projeto, conforme lembrou a Evânia, com o objetivo de limpar as encostas do Vidigal e da Rocinha.

Leia toda a série “Memória Climática das Favelas” aqui.

Não perca o álbum abaixo (ou clique aqui para ver no Flickr):

Memória Climática no Vidigal (Rede Favela Sustentável) 12 de março de 2023
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são articulados pela Comunidades Catalisadoras (ComCat)

Sobre a relatora do evento: Rita de Cassia Machado, nascida no Morro de Santa Marta e moradora do Vidigal há 44 anos, é graduada em Direito pela UFRJ e pós graduada em Educação pela UFF. Rita foi comunicadora comunitária do Jornal O Mensageiro, no Vidigal, na década de 1980.


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