O mês de junho começou com um passo significativo rumo à vitória para os que buscam realizar o direito à moradia no Rio de Janeiro. A prefeitura decidiu voltar atrás e retornar o Termo Territorial Coletivo (TTC) no Projeto de Lei do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, que atualmente está sendo debatido na Câmara Municipal. Com isso, o novo instrumento urbanístico constará no texto, que será votado pelos vereadores ainda neste semestre, em primeira votação.
Quando foi anunciada a retomada do processo de revisão do Plano Diretor do Rio de Janeiro, em 2021, diversas organizações da sociedade civil se organizaram para participar das discussões e influenciar os rumos da política urbana da nossa cidade. Apesar das críticas à decisão de levar adiante esse debate em um dos períodos mais duros da pandemia do coronavírus, em que a participação popular foi drasticamente limitada, os debates contaram com a presença de diversos setores da sociedade civil organizada, que puderam trazer seus pontos de vista e defender propostas para o novo plano. O resultado do processo foi o Projeto de Lei n. 44/2021, debatido em mais de 20 audiências públicas no âmbito do Legislativo.
No texto do novo plano, uma novidade saltava aos olhos: a inclusão de um novo instrumento urbanístico—o Termo Territorial Coletivo (TTC). Em linhas gerais, trata-se de um modelo de gestão territorial e regularização fundiária que aposta no protagonismo dos moradores para organizarem suas comunidades, fomentando o desenvolvimento comunitário e concretizando o direito à moradia digna, especialmente a partir da garantia de permanência das comunidades. Isso é feito pela separação da terra, que se torna propriedade de todos os moradores através de uma pessoa jurídica, e das moradias, que são propriedade dos moradores. Apesar de pouco conhecido no Brasil, o TTC é adotado em diversos países do mundo e reconhecido internacionalmente como uma solução habitacional sustentável e inclusiva, tendo sido desenvolvido inicialmente por movimentos por direito civis nos Estados Unidos há mais de 50 anos. Fruto da participação popular, a inclusão do TTC no projeto do Plano Diretor foi uma vitória para setores que reivindicam a garantia da permanência de comunidades nos seus espaços e oferta de moradia economicamente acessível. Também foi uma vitória para quem visa um Rio de Janeiro inovador no âmbito social.
Ao longo das audiências públicas no legislativo, lideranças comunitárias, organizações sociais e técnicos na área do planejamento urbano defenderam a aprovação do instrumento no plano, não havendo qualquer manifestação contrária ao TTC no debate público. Apesar disso, na reta final da discussão do plano diretor, a prefeitura apresentou 215 emendas ao projeto de sua autoria que, entre outras mudanças substantivas, retiraram o Termo Territorial Coletivo da lei sem qualquer justificativa.
A decisão gerou uma reação imediata da sociedade civil. Nas audiências públicas realizadas em 2023, todas voltadas para discutir as emendas da prefeitura, foram inúmeras as vozes criticando a medida, demonstrando a falta de transparência da prefeitura e desrespeito à participação popular, que deve nortear a construção de planos diretores. Por meio de cartazes, discursos no plenário da Câmara Municipal, cartas abertas a parlamentares, postagens nas redes sociais e até mesmo um abaixo-assinado, diversos setores da população se manifestaram no sentido de defender a manutenção do Termo Territorial Coletivo no Plano Diretor. O instrumento foi considerado uma importante alternativa para a garantia do direito à moradia a famílias de baixa renda, um grande desafio da cidade e a uma das maiores demandas expressa ao longo de todo o processo. Resistente em mudar sua postura, representantes da prefeitura que participavam das audiências evitavam tocar no assunto, sem sequer dar uma explicação sobre o porquê da retirada de um instrumento tão defendido pela população.
Felizmente, os esforços não foram em vão. Depois de tanta pressão popular, a prefeitura voltou atrás e manteve o Termo Territorial Coletivo no projeto de lei do Plano Diretor. O executivo revogou, na última semana, algumas das emendas que apresentou ao projeto de lei, inclusive a que retirava o TTC dentre os instrumentos urbanísticos do novo plano. A notícia foi recebida com entusiasmo por todos os que defendem o instrumento, com o sentimento de que suas vozes foram ouvidas e tiveram impacto. No entanto, ainda há um caminho pela frente. O projeto de lei segue sendo discutido na Câmara Municipal e precisa ser aprovado pelos vereadores antes de se tornar uma realidade.
Apesar da vitória que foi a mudança de postura da prefeitura, algumas mudanças na redação do capítulo do Termo Territorial Coletivo preocupam defensores do instrumento. A primeira delas é um pequeno parágrafo que determina que o TTC precisa ser regulamentado por lei especial para ser aplicado. Essa adição, apesar de pequena, traz um problema enorme para a utilização do instrumento na cidade, já que condiciona seu uso à existência de uma lei própria a nível municipal. Não há nenhuma necessidade para essa exigência pois o TTC já não depende de uma lei para ser implementado, já que ele apenas reúne diversos institutos já existentes na nossa legislação.
A segunda limitação à plena realização do potencial do instrumento do TTC vem com a retirada de um artigo central ao modelo, que constava na proposta original, em que a entidade gestora do TTC, cuja gestão é realizada pelos moradores, é impossibilitada de vender a terra ocupada pela comunidade. Esse é um dos princípios do TTC que fazem dele uma referência mundial de segurança de permanência, seja qual for a fase econômica do momento (seja alta, seja baixa). A regularização fundiária combinada com a retirada da terra do mercado afasta ambos o risco da remoção quanto também da especulação imobiliária e de gentrificação. Moradores podem vender suas casas, mas a terra é sempre protegida, ela é do coletivo de moradores, através do TTC. Dentro do arranjo de um TTC, a terra não é uma mercadoria, e sim um bem coletivo voltado para a garantia de moradia popular. É importante que esse princípio seja preservado.
A manutenção do Termo Territorial Coletivo no projeto de lei do Plano Diretor do Rio de Janeiro é uma vitória para todos os que lutam pelo direito à moradia. Em uma cidade em que uma a cada quatro pessoas mora numa favela, torna-se urgente a promoção de novas soluções para esses territórios, que valorizem as qualidades desenvolvidas informalmente pelos residentes, a permanência das comunidades nos seus espaços e um desenvolvimento pautado pelo protagonismo dos moradores.
As formas de lidar com esses territórios costumam ser pautadas ou pela remoção violenta ou por um paternalismo do poder público que apresenta soluções de cima para baixo, sem considerar as necessidades locais. Essas posturas nunca apresentaram uma solução efetiva para as favelas e assentamentos autoconstruídos da nossa cidade. É hora de experimentar novos caminhos, que passam pela valorização do saber local, da autogestão e do reconhecimento da terra não como uma mercadoria, mas como um bem que serve a uma coletividade. Aprovar o Termo Territorial Coletivo no Plano Diretor e reivindicar sua implementação no Rio é um importante passo nessa direção!