Neste Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, Conheça a Casa Dulce Seixas: Primeira Casa de Acolhimento da Baixada Fluminense

Shirley de Maria Padilha e seus acolhides posam para fotografia. Foto: Bárbara Dias
Shirley de Maria Padilha e seus acolhides posam para fotografia. Foto: Bárbara Dias

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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAPN+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.

Neste Dia do Orgulho LGBTQIAPN+, foram entrevistados cinco acolhides da Casa Dulce Seixas, única casa de acolhimento a LGBTQIAPN+ na Baixada Fluminense, que fica em Nova Iguaçu. A instituição já acolheu mais de 150 pessoas e conta com o apoio de redes colaborativas e cidadãs.

“A luta de um corpo estereotipado
Possuído em fetiche pelas esquinas
Mas não possuidor de direitos.”

Estes versos fazem parte da poesia “Orgulho e Luto”, de Davlyn Lotus, e resumem bem as mazelas dos LGBTQIAPN+ no Brasil. A população LGBTQIAPN+ brasileira sempre foi vitimada por numerosas formas de violência. Por um lado vive no país que se encontra no topo do ranking dos que mais consomem pornografia trans, enquanto também, há 14 anos consecutivos, é também o que mais mata travestis e transsexuais.

Como reflexo da LGBTQIAPN+fobia estrutural, a comunidade no Brasil tem sido negligenciada pelo poder público, que não promove políticas públicas em seu apoio à vítimas de violência, em vulnerabilidade socioeconômica ou situação de rua. A inclusão desta população no mercado de trabalho é um exemplo do que pode ser feito para reduzir o abismo entre pessoas LGBTQIAPN+ e pessoas heterocisnormativas.

Solidariedade, Acolhimento e Capacitação para LGBTQIAPN+ e Mulheres Vítimas de Violência de Gênero

A Casa Dulce Seixas é uma casa de acolhimento, por tempo indeterminado, de pessoas LGBTQIAPN+ em situação de rua, vulnerabilidade socioeconômica ou violência doméstica. Também recebe mulheres heterocisnormativas vítimas de violência de gênero ou em situação de vulnerabilidade. O projeto de acolhimento é oriundo do terreiro de candomblé Ilê Omim Dewa Asé Odé. Há 14 anos, o templo já acolhia pessoas com o apoio de Dulce Seixas Cordeiro, uma das filhas de santo mais devotas da Iyalorixá Shirley de Maria Padilha. Dulce foi responsável por dar de presente a Shirley o terreno e, posteriormente, o imóvel onde atualmente funciona a Casa Dulce Seixas.

Shirley de Maria Padilha, coordenadora da Casa Dulce Seixas, em frente à sua mesa de oráculo de búzios. Foto: Bárbara Dias
Shirley de Maria Padilha, coordenadora da Casa Dulce Seixas, em frente à sua mesa de oráculo de búzios. Foto: Bárbara Dias

Há três anos, a Casa Dulce figura como a primeira e única casa de acolhimento para pessoas LGBTQIAPN+ da Baixada Fluminense, localizada no município de Nova Iguaçu. Desde que abriu as portas, a Casa Dulce Seixas acolheu mais de 150 pessoas de todo o país, inclusive do Amazonas, interior da Bahia, Paraná, Tocantins e, principalmente, das favelas do Rio de Janeiro, como Cidade de Deus, Complexo da Maré, Mandela, entre outras.

Placa em homenagem a Dulce Seixas à esquerda e, ao centro, foto de Shirley de Maria Padilha, coordenadora da Casa Dulce Seixas, que também tem o cargo de Iyalorixá. Foto: Bárbara Dias
Placa em homenagem a Dulce Seixas à esquerda e, ao centro, foto de Shirley de Maria Padilha, coordenadora da Casa Dulce Seixas, que também tem o cargo de Iyalorixá. Foto: Bárbara Dias

Os enfrentamentos da instituição são múltiplos, uma vez que a Baixada Fluminense é uma região periférica que sofre com a escassez crônica de políticas públicas e é dominada pela lógica conservadora de um raciocínio cristão-protestante. Nesse sentido, a Casa Dulce realiza rodas de conversa com o intuito de combater a LGBTQIAPN+fobia e o racismo religioso no território. Além disso, a escassez de recursos financeiros dificulta a execução das principais atividades externas da casa, como cuidados médicos, acompanhamento psicológico, isenção de documentos e acesso aos benefícios sociais para as 30 pessoas atualmente acolhidas pela ONG.

Boneca vestida de orixá Oxum. A Casa Dulce Seixas divide o espaço com um barracão de Candomblé, coordenado pela Shirley de Maria Padilha. Foto: Bárbara Dias
Boneca vestida de orixá Oxum. A Casa Dulce Seixas divide o espaço com um barracão de Candomblé, coordenado pela Shirley de Maria Padilha. Foto: Bárbara Dias

Davlyn Lotus, 29 anos, secretária, bacharel em psicologia e produtora cultural, compartilha a importância da Casa Dulce em sua trajetória e o que sente ao poder retribuir parte do que recebeu, trabalhando pelo acolhimento e cuidado do seu povo contra a LGBTQIAPN+fobia.

“Estar na Casa Dulce Seixas tem um grande valor social e também pessoal. Durante a universidade, sempre fui convidada a pensar na minha gente e no meu território, desconstruindo conceitos… Olhar ao meu redor, o que eu sofria por não saber e pela intolerância. Depois, fui entender que eu também sou uma ferramenta para transformar essa realidade… Hoje, me envolver nas articulações políticas e todo esse grande marco que é a Dulce Seixas, faz com que todos os dias eu renove a minha esperança. Chegar a lugares que nunca pensei em estar e ter os ouvidos de quem nunca pensei em ter mostram a importância da minha ocupação e daqueles que eu represento… Sou grata pelos laços que criei desde que cheguei aqui, sou grata pelas portas abertas e pelas oportunidades que já tive e que terei aqui. Fui chamada para ajudar a transformar, mas fui eu uma das grandes transformações realizadas nesta casa.” — Davlyn Lotus

Davlyn Lotus, secretária da Casa Dulce Seixas, em frente à porta de entrada do imóvel. Foto: Bárbara Dias
Davlyn Lotus, secretária da Casa Dulce Seixas, em frente à porta de entrada do imóvel. Foto: Bárbara Dias

A instituição põe em prática o conceito mais básico da assistência social, através da ação social Dulce’mente Solidária que já distribuiu mais de 500 cestas básicas, em oito edições do programa, que começou em 2020 e teve sua última edição em janeiro de 2023. Tais cestas foram doadas a partir de redes de doadores que não são fixas e que, portanto, exigem uma nova busca todos os meses.

Wendel Felipe, acolhide da Casa Dulce Seixas, ajuda na manutenção da limpeza do ambiente. Todos os trabalhos são realizados de maneira coletiva. Foto: Bárbara Dias
Wendel Felipe, acolhide da Casa Dulce Seixas, ajuda na manutenção da limpeza do ambiente. Todos os trabalhos são realizados de maneira coletiva. Foto: Bárbara Dias

Todos os dias, há relatos de famílias que necessitam desta ação emergencial de ajuda da Casa Dulce Seixas. Através de seu principal programa, o Dulce’mente Acolhedor, jovens, adultos e idosos em situação de rua, em vulnerabilidade socioeconômica e insegurança alimentar, vítimas de violência de gênero e da LGBTQIAPN+fobia, pessoas que sofrem ou sofreram com a violência de famílias que não os aceitam como são, recebem um lar, uma família, comida, suporte emocional e psicológico, além de perspectivas de futuro.

Jean Claiton, acolhide da Casa Dulce Seixas prepara o almoço coletivo. Foto: Bárbara Dias
Jean Claiton, acolhide da Casa Dulce Seixas prepara o almoço coletivo. Foto: Bárbara Dias

Muitos procuram a ONG com traumas causados pela violência física e psicológica e chegam somente com as roupas do corpo. A Casa Dulce Seixas já acolheu, inclusive, estrangeiros, imigrantes econômicos e pessoas refugiadas de guerra. Acolhides como Juliete Palomo, cidadã venezuelana que imigrou para o Brasil, e ainda outro, refugiado da Guerra da Ucrânia, puderam, finalmente, encontrar um lar em seu novo país, onde se sentem amparados e seguros.

Juliete Palomo é venezuelana e acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias
Juliete Palomo é venezuelana e acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias

Thay Silva, acolhido vindo de Praça Seca, recém-chegado à sua nova casa, conta o que significa para ele ter uma família e um lar. Ele diz que se sente no caminho certo agora que tem o suporte da Casa Dulce Seixas, uma comunidade de pessoas que cuidam umas das outras, que emanam positividade e que incentivam cada um dos acolhides a ter um futuro melhor.

“A Casa Dulce me acolheu de uma forma que não há palavras para expressar. Sinceramente falando, há muitos cuidados bem dados para a gente que, no fundo, está adaptado a não ter nada. Me sinto verdadeiramente em casa e à vontade. Sou bem tratado e espero, com toda a positividade, que eu cresça na vida neste lugar, conquistando o meu espaço, conseguindo o meu trabalho, melhorar a minha qualidade de vida e ver acontecer a mudança que eu anseio. Sei que a Dulce Seixas estará me orientado no caminho certo, para todas as minhas vitórias no futuro. Só tenho a agradecer do fundo do meu coração as portas abertas da Casa Dulce Seixas.” — Thay Silva

Thay Silva, acolhido da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias
Thay Silva, acolhido da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias

O Dulce’mente Acolhedora é a ação da Casa que mais precisa de atenção, devido aos cuidados médicos para acompanhar os acolhides, indo a Fiocruz ou outras clínicas de cuidados, como o Centro de Assistência Psicossocial (CAPS) e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), em casos de enfermidades mais graves e urgentes. A alimentação dos moradores da Dulce Seixas conta com o oferecimento de cinco a dez cestas básicas vindas da Secretaria Municipal de Assistência Social de Nova Iguaçu (SEMAS) e de outras dez cestas doadas pela FioTec, um programa da Fiocruz.

John Ricardo, acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias
John Ricardo, acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias

As despesas mensais da casa chegam a R$10.000. Elas vão desde a conta de luz, que, no mais barato, custa R$960 e, no mais caro, quase R$2.000, a conta de água, de internet e mercado para o complemento nutricional da alimentação ofertada (carnes, verduras, legumes e frutas). Além disso, a ONG arca com material de limpeza e produtos de higiene pessoal, sem contar as despesas de transporte, medicações e o IPTU da propriedade, que é cobrado pela prefeitura.

A instituição pretende colocar em prática o programa Dulce’mente Capacitadora, que tem como objetivo a capacitação para o trabalho ou empreendimento de acolhides. Essas iniciativas visam promover a autonomia financeira dos envolvidos. O curso de panificação tinha previsão para ser realizado no primeiro semestre de 2023, de forma gratuita para acolhides e população LGBTQIAPN+ do território. No entanto, devido às dificuldades para a instalação de equipamentos e a problemas estruturais como alagamentos, goteiras e infiltrações, atualmente, o programa está suspenso. Seu início está previsto ainda para o segundo semestre de 2023.

Alexandre Almeida, acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias
Alexandre Almeida, acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias

A ONG também prevê a realização do programa Dulce’mente Literária e Cultural, que culminaria na construção de uma biblioteca comunitária, com o empréstimo gratuito de livros, entendendo que a literatura é um direito humano e fundamental para o pensamento livre em uma sociedade democrática. Assim sendo, o espaço também servirá como ponto de encontro, para a comunidade do entorno da Casa Dulce e para os movimentos sociais do território. Além disso, o programa também tem o intuito de realizar eventos culturais, como slams e saraus de poesia.

Manuela Jardim, acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias
Manuela Jardim, acolhide da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias

Amanda Corrêa, acolhida há nove meses e vinda da favela da Portelinha, localizada na cidade litorânea de Rio das Ostras, na Região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro, fala sobre o carinho que tem recebido na casa. Para ela, a Casa Dulce Seixas foi a base que lhe permitiu se curar de feridas deixadas pela LGBTQIAPN+fobia, estudar e conquistar um emprego em uma multinacional.

“Este lugar me proporcionou abrigo, além das demais necessidades básicas para que eu pudesse me reestruturar para o mundo. Hoje, faço faculdade de Recursos Humanos, fui efetivada na Amazon, onde estava como jovem aprendiz. Posso me manter graças a todo o carinho vindo deste lugar bom, que acolhe pessoas ‘feridas’ e as cura, para retornarem às batalhas da vida.” — Amanda Corrêa

Acolhides da Casa Dulce Seixa posam, contemplativos, para foto na janela de seu lar. Foto: Bárbara Dias
Acolhides da Casa Dulce Seixa posam, contemplativos, para foto na janela de seu lar. Foto: Bárbara Dias

Juliana Souza Santos, conhecida como “Ju Tempestade”, acolhida há dez meses vinda de Itabuna, no estado da Bahia, diz que em sua cidade natal a LGBTQIAPN+fobia tornou insustentável sua vida. Portanto, assim que soube da existência da Casa Dulce, entrou em contato com a Iyalorixá Shirley de Maria Padilha e pediu acolhimento em Nova Iguaçu. Hoje, morando em outro estado, ela faz questão de deixar nítida a importância de Shirley e da Casa Dulce na sua trajetória. Ela menciona Shirley como uma mãe, que cuida, dá carinho, um espaço seguro a seus filhes que ajuda com que se desenvolvam e cresçam.

“Eu fui pro Rio de Janeiro assim que conheci a Casa Dulce pela internet. Saí da minha cidade devido a dificuldades financeiras e porque em minha cidade havia muito preconceito e a não aceitação da minha família. Conheci a Shirley e sou grata por todo o carinho, a atenção e o acolhimento que ela e a instituição me deram. Hoje, estou realizada! Casada, trabalhando e morando no estado do Espírito Santo. Foi graças a todo o trabalho dessa família, que eu estou neste lugar de realização. Shirley é uma mãe, ela trata todes como filhes e faz de tudo para que consigamos alcançar nossos objetivos. Sou muito agradecida por conhecer esse lugar que transforma vidas. Eu sou uma das que foram transformadas graças a todo o cuidado que recebi da Shirley, de Johari e da Davlyn.” — Juliana Souza Santos

Shirley de Maria Padilha, coordenadora da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias
Shirley de Maria Padilha, coordenadora da Casa Dulce Seixas. Foto: Bárbara Dias

Maya Rangel dos Santos Cruz foi acolhida há sete meses, vinda de Coroa Grande, bairro do município de Itaguaí, também na Baixada Fluminense. Para ela, Shirley também é como uma mãe, que ensina, protege e apoia.

“Vou contar um pouco da minha história. Antes de conhecer a Casa Dulce, eu morava com meus tios. Desde criança, eu passava por transfobia, apanhava e era oprimida. Quando completei 15 anos, por insistir na minha sexualidade, me colocaram para fora de casa. Então, fui para o abrigo de menores no Centro do Rio de Janeiro, onde sofri um abuso sexual, meu primeiro estupro, por um educador… [Ali] fiquei até os meus 18 anos. Desde que fiz 18 anos, fui para um hotel da Prefeitura, onde eu também sofria bastante. Não me adaptei… tinham drogas envolvidas e eu não me envolvia. Não me cabia estar ali. Na procura de um novo lar, me vi dentro de uma casa LGBTQIAPN+, que se chama Casa Nem. Lá, aprendi muitas coisas, mas também não me cabia estar ali. Então, fui embora para a Casa Dulce Seixas, onde conheci uma amiga, uma protetora e, primeiramente, uma mãe, que se chama Shirley, diretora e fundadora da Casa Dulce. Ela me apoiou, me deu suporte e me ajudou… Estou casada há dois anos, estamos bem estabelecidos, tenho minha casa e estou muito feliz! Agradeço muito a Casa Dulce Seixas, por me acolher e me apoiar, independentemente de toda minha história.” — Maya Rangel dos Santos Cruz

Acolhides da Casa Dulce Seixa tomam café da manhã juntes. Foto: Bárbara Dias
Acolhides da Casa Dulce Seixa tomam café da manhã juntes. Foto: Bárbara Dias

Na Casa Dulce Seixas, se reconhece a importância da história de cada acolhide que passa por aquele lugar. Toda vitória é mérito delus, delis, delas e deles, com uma pitada do abraço e do colo da instituição. Para todes da Casa Dulce, o sentimento é de gratidão por essas pessoas permitirem que eles façam parte de suas vidas. Cada indivíduo é recebido com muito carinho, ganha um lar e passa a fazer parte da família Dulce Seixas. No entanto, para que o trabalho da Casa Dulce Seixas continue, doações são necessárias. Quem quiser e puder ajudar entre em contato com a Casa Dulce Seixas pelas redes sociais.

Sobre o autor: João Victor Silva é comunicador e articulador social, mobilizador de advocacy da Ação da Cidadania, membro-diretor da Comissão Organizadora da Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de Nova Iguaçu e conselheiro municipal de Defesa do Direito do Negro, de Saúde e de Segurança Alimentar de Nova Iguaçu.


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