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No sábado, 17 de junho, a Vila Autódromo, na Zona Oeste, acolheu o lançamento da exposição Memória Climática das Favelas organizada por museus integrantes da Rede Favela Sustentável (RFS)* e aliados. O evento foi uma grande culminância das rodas de memória realizadas, em cinco museus comunitários, no início do ano. Entre eles estavam o Museu da Maré, Museu Sankofa na Rocinha, Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH) em Antares, Museu de Favela (MUF) no Pavão-Pavãozinho/Cantagalo e o Núcleo de Memórias do Vidigal. O volume de narrativas de memórias climáticas das favelas, na voz de seus moradores, deu origem à exposição.
Uma Exposição em um Museu a Céu Aberto
A favela que antes ocupava uma área muito maior às margens da Lagoa de Jacarepaguá e do antigo autódromo teve sua história marcada por muitas lutas e resistência. Vila Autódromo é onde se localiza hoje o Museu das Remoções, um museu de território fundado em 2016, após a remoção de centenas de famílias no período que antecedeu os megaeventos da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Após as remoções, o que se manteve da Vila Autódromo foram algumas casas e a Igreja de São José Operário. Nesse espaço, foi fundado em 2016 o Museu das Remoções, cuja missão é manter viva a memória de comunidades ameaçadas de remoção.
Não por acaso, o Museu das Remoções foi escolhido como local para realizar o lançamento da exposição Memória Climática das Favelas. A programação do evento contou com uma variedade de atividades que promoveram a reflexão, o diálogo e a celebração das vivências e experiências de resistência favelada. Os participantes, logo assim que chegavam, observavam cinco banners com um breve resumo das apresentações das rodas de memórias climáticas realizadas nos cinco museus comunitários organizadores do evento.
Ainda na área aberta da exposição, outro espaço que chamava bastante a atenção dos visitantes era uma extensa linha do tempo, em formato circular, que apresentava acontecimentos marcantes das histórias das favelas contempladas, com base em eventos marcantes mencionadas durante as rodas de conversa nos museus.
Nesse espaço, Evânio de Paula, morador do Vidigal, presidente da Associação Esportiva e Cultural Horizonte, se conectou. Ele estava observando um painel da linha do tempo, com uma foto de uma remoção no Vidigal, supostamente por problemas relativos à contenção de encostas, quando disse que tinha sete anos quando esse fato aconteceu, em 1977. Em sua fala, ele relembrou estratégias de resistência para evitar a remoção que viveu na infância.
“Nessa época aqui, eu tinha sete anos… e para evitar a remoção, a Dona Heneida Brasil, liderança comunitária… pegou e tirou todo mundo da Rua Almirante Tamandaré e levou pra Avenida Niemeyer. As crianças ficaram em frente ao batalhão de choque [da PM] para evitar que a polícia viesse para tirar as famílias. Ficou um grupo de estudantes na entrada do Vidigal. Depois vieram as mulheres e os homens com a bandeira do Brasil, cantando o hino nacional.’’ — Evânio de Paula
A organização dos moradores e da Pastoral das Favelas fez com que o Papa João Paulo II visitasse o Vidigal, em 1980. Isso fez com que as investidas com a intenção de remover moradores nas favelas da Zona Sul, sobretudo, do Vidigal e da Rocinha, diminuíssem.
No meio do anfiteatro, legado da luta dos moradores da Vila Autódromo, rondada pela linha do tempo, havia uma instalação artística intitulada “Poço das Memórias”, desenvolvida pela artística plástica vidigalense Evânia de Paula, proporcionando um espaço para compartilhar lembranças e histórias dos territórios, onde as pessoas conseguiam ver fotos antigas com legendas que descreviam essas memórias.
No início do evento, em um momento de convivência e ambientação para a abertura da exposição, reunidos na Igreja de São José Operário, os presentes ouviram Gisele Moura, coordenadora da equipe gestora da Rede Favela Sustentável, que ressaltou a importância de iniciativas de valorização de memórias faveladas, sobretudo quando se fala do clima, já que as favelas são os locais mais atingidos pelas mudanças climáticas no Rio de Janeiro.
“Esse projeto, que culmina hoje com essa exposição, começou a ser pensado de forma coletiva em 2020, pelo Eixo Cultura e Memória Local da RFS, que teve a ideia de pensar a memória climática a partir das vivências, das memórias e das conversas entre as pessoas que estão naqueles territórios… [e assim] foi concebida a ideia de fazer rodas de conversa de memória climática nos territórios.” — Gisele Moura
Um momento importante na abertura da exposição foi a exibição de quatro vídeos produzidos sobre as rodas de memória, cuja coletânea está disponível em Memória Climática das Favelas—Conheça as Vozes da Maré, Rocinha, Antares, PPG e Vidigal Memória Climática, que documentou as reflexões dos moradores sobre mudanças climáticas, a relação das comunidades com a natureza, como isso dialoga com o direito à moradia, e quais soluções as comunidades têm desenvolvido para lidar com o clima.
Memória Climática das Favelas: Vozes da Maré, Rocinha, Antares, PPG e Vidigal
Após a exibição do vídeo, os representantes dos museus das favelas que participaram das cinco rodas de memória climática foram convidados a comentar o processo de concepção e realização das rodas, além do resultado final, apresentado através deste vídeo e desta exposição.
Antônio Firmino, do Museu Sankofa, da Rocinha, em sua fala enfatizou o problema do racismo ambiental e que seria oportuno que toda essa construção pudesse se transformar em políticas públicas em prol das favelas.
“Fica [a partir das rodas de conversa] um grande desafio, que é trazer as questões pelas quais todos nós sofremos em função do racismo ambiental… E já que estamos num período pré-eleitoral, [é importante] que nós possamos trazer todo esse trabalho coletivo a nosso favor, pois dependemos de políticas públicas para melhorar algumas questões nas favelas.” — Antônio Firmino, Museu Sankofa
Leonardo Ribeiro, cria de Antares, Santa Cruz, enfatiza que participar das rodas de conversa foi muito interessante e fez uma costura histórica, muito presente em toda a exposição, de como a sua comunidade se relaciona com outras favelas onde aconteceram remoções.
“Antares tem muita ligação com todas as comunidades onde foram feitas as rodas. A gente, lá em Antares, tem famílias removidas da Maré, principalmente, e também do Vidigal, da Rocinha e do Pavão-Pavãozinho… Tem muitas famílias que não conseguiram se manter na Cidade de Deus e foram para Antares, pois a vida era mais barata lá. Esse movimento de ir nas rodas e conhecer, mesmo em uma comunidade que está a 80km do Centro do Rio de Janeiro, esse vir até a nossa origem é muito difícil. Ir nas outras comunidades, entender como eles prosseguiram depois das remoções e de como Antares se desenvolveu foi sensacional.” — Leonardo Ribeiro, Antares, Santa Cruz
Bruno Almeida, coordenador do Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH), comenta que é proposital o silenciamento e o apagamento histórico das narrativas da ocupação desses territórios.
“Quando geralmente se fala de passado em um bairro de periferia, a gente não inclui as favelas como parte da história do bairro… Quando a gente fala da história de Santa Cruz, não está falando apenas daquela parte da história oficial, como bairro imperial… mas estamos nesse processo, junto à Rede Favela Sustentável, de incluir dentro dessa narrativa, as histórias das comunidades, porque, a ocupação do espaço geográfico que a gente vive, faz parte também da história do bairro.” — Bruno Almeida, NOPH
Márcia Souza, do Museu de Favela (MUF), moradora do Cantagalo, apontou que a participação nas rodas de conversa foi muito importante.
“Sair de seus lugares para conhecer outras favelas e outras pessoas que fazem a mesma coisa que a gente faz, muda o nome, muda o lugar, mas é tudo igual… Eu descobri que todos nós somos ligados por uma mesma história, por uma mesma dificuldade, com olhares diferentes, mas que se você para pra respirar é tudo igual.” — Márcia Souza, MUF
Bárbara Nascimento, do Núcleo de Memórias do Vidigal, diz que é muito interessante o movimento de discutir a favela feito por quem está nos territórios.
“É muito importante a iniciativa de juntar as favelas para discutir um tema que é muito comum. E, embora cada território tenha sua história, a gente tem muita coisa em comum, pois várias favelas foram removidas ou tiveram tentativas de remoção, e a justificativa era a questão do clima, eram as chuvas e deslizamentos. As nossas histórias são semelhantes, então, nada mais justo que a gente se unir para discutir estratégias. É muito bacana saber que são favelados discutindo a favela, nós falando sobre os nossos territórios.” — Bárbara Nascimento
Após várias falas potentes e necessárias sobre o lançamento da exposição, Maria da Penha, liderança da Vila Autódromo, integrante do Museu das Remoções, também deu sua contribuição. Ela falou sobre o direito à moradia, de sua história de resistência e de como lutou para não ser removida de seu território.
“Eu compreendi o que era direito à moradia, esse direito tão falado, tão bonito escrito, mas que não funciona para nós pobres se nós não cobrarmos… Nós somos favelados e temos que ter essa consciência… a sociedade o tempo todo nos diz que nós não podemos morar ali, que a gente tem que ter vergonha. E é exatamente o contrário: a cada dia que passa, estou mais feliz de poder estar aqui na garagem da minha casa, no meu território… Não é fácil passar pela remoção, é doloroso, é cruel. Ninguém constrói uma casa pensando em ver ela derrubada.” — Maria da Penha
Após uma manhã de muitas reflexões, o intervalo do almoço possibilitou um segundo momento de interações e de envolvimento dos participantes do evento com outras estruturas, como o mapa interativo, onde era possível colocar memórias sobre os territórios e vivenciar uma experiência cartográfica afetiva, e uma rede de pesca do Complexo da Maré, onde era possível pendurar mensagens e reflexões sobre: “O que a rede significa para você?”
Outro momento muito esperado da exposição foi a exibição da esquete “Penha”. Com uma expressão teatral forte e contundente, encenada pelas atrizes Nathalia Macena e Fernanda dos Santos, do coletivo Por um Triz, a peça relembrou, em cena, os momentos onde angústias e esperanças tomavam conta de Maria da Penha, mãe de Nathalia, na luta contra a remoção da Vila Autódromo. Após a encenação, foi realizada uma roda de conversa, que finalizou com a participação dos presentes, refletindo sobre os temas abordados durante todo o evento.
O lançamento da exposição Memória Climática das Favelas é a finalização de um ciclo de trabalho coletivo realizado por museus de favela integrantes da Rede Favela Sustentável e anuncia o início de outro ciclo, uma história que será contada por quem está nos territórios. Conhecer melhor sua história e suas memórias estimula o orgulho comunitário, o sentimento de pertencimento, a mobilização e a auto organização na reivindicação por direitos e políticas públicas que tornem mais segura a vida dos moradores e construam favelas climaticamente resilientes.
Não perca o vídeo pela Luiza de Andrade (ou clique aqui para ver no YouTube):
Não perca o álbum por Alexandre Cerqueira (ou clique aqui para ver no Flickr):
Sobre a autora e fotógrafa: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são articulados pela Comunidades Catalisadoras (ComCat)