Percepções dos Moradores do Morro da Formiga sobre o Rio Cascata: Memória, Recuperação Ambiental e Pertença Comunitária às Margens de um Rio de Favela

O assassinato em curso do Rio Cascata é fruto podre da falta de políticas públicas

Arte original por Natalia S. Flores
Arte original por Natalia S. Flores

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Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros

Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAP+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.

Minha Favela, Meu Quilombo, Minha Pesquisa

Morro da Formiga, 2022. Foto: Renan Oliveira
Morro da Formiga, 2022. Foto: Renan Oliveira

Decidi pesquisar minha própria comunidade. O território onde eu cresci junto com a minha família e amigos. Sempre entendi a favela como extensão do quilombo, espaços organizados socialmente por negros africanos e afro-brasileiros. Os quilombos foram fundados, sobretudo, durante o regime de escravidão negra, para organizar a vida com liberdade, sem o domínio e as violências perpetradas pelos escravocratas. Já o nome favelas surgem em massa no pós-Abolição da Escravatura (1888) e assumem a centralidade quando a questão é a territorialização da resistência negra e da luta por moradia. Tanto os quilombos quanto as favelas são, em algum grau, territórios autônomos que privilegiam a coletividade como modo de organização social.

Moro na Floresta da Tijuca, uma das maiores florestas urbanas do mundo, que serviu de abrigo para grupos quilombolas em luta por liberdade durante os 388 anos de escravidão negra no Brasil. Essa mesma floresta, 135 anos depois da abolição, ainda abriga seus descendentes, que continuam lutando por liberdade e direitos. Com a assinatura da Lei Áurea, ex-escravizados e descendentes começaram a construir favelas nas encostas da Tijuca, como Turano, Salgueiro e Morro da Formiga, comunidades de natureza formidável, abraçadas pela Mata Atlântica. São locais com história de luta e resistência. Exatamente por isso, escolhi investigar as percepções, as memórias e a história local do lugar em que nasci. No entanto, é um movimento desafiador, pois agora sou alguém que é capaz de pesquisar e não somente de ser pesquisado.

A Formiga, localizada na Grande Tijuca, na Zona Norte do Rio de Janeiro, começou a ser urbanizada nos anos 1940, próxima à área demarcada do Parque Nacional da Tijuca. Em sua dimensão territorial, a favela abriga poços e nascentes de água, e uma grande diversidade biológica e cultural. Atualmente, mantém tradições culturais, como a escola de samba Império da Tijuca, a Folia de Reis e a luta pela preservação da natureza.

Neste cenário, nasci e fui criado por três gerações de mulheres negras, que vivenciaram o processo de urbanização da favela, com toda a sua precariedade. Isso, articulado com o fato de ter sido o primeiro da minha família a entrar em uma universidade pública, para cursar Ciências Sociais, motivou esta pesquisa. É uma maneira de contribuir para a justiça climática, para a mudança da realidade e para construir alternativas, enquanto ainda é possível. 

Rio Cascata: Um Rio de Memórias

Rua Travessa da Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira.
Rua Travessa da Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira.

Na Formiga, a Floresta da Tijuca abastece o maior leito de água que flui sobre a superfície da comunidade: o Rio Cascata, um dos principais responsáveis por manter a biodiversidade da região. O rio possui cerca de um quilômetro de extensão e está localizado na parte noroeste da comunidade. Este córrego é de suma importância para a diversidade natural e cultural do morro. É um marco histórico da favela. Moradores acima dos 50 anos vivenciaram o processo de degradação do Rio Cascata, mas ainda se lembram dele balneável. Eles gentilmente contribuíram com suas memórias para elucidar a história do nosso território.

Uma moradora da Formiga que não quis se identificar, quando perguntada “Qual a principal característica do Morro da Formiga?”, respondeu:

“Pra mim, o Rio Cascata—porque foi onde eu passei a minha infância… Tive minha infância na beira desse rio—era muito bom! A gente lavava roupa no rio, a água era muito limpa… não tinha esgoto, não se notava esgoto… a gente brincava no rio, né? Escorregava nas pedras, era muito bom! O rio tinha certos locais que dava até camarão, peixinhos… hoje em dia não tem mais, por ter muita sujeira, lixo e esgoto… além disso, a água diminuiu muito… então, a água fica muito suja. Hoje, é um rio muito poluído, não dá mais pra criança brincar, pra lavar uma roupa. Não tem mais isso.”

Estas lembranças, para mim, falam de um outro rio. Minha geração não conheceu esse Morro da Formiga com menos poluição, com um rio que era cenário de socialização entre os moradores da favela, fonte de renda para as lavadeiras, local de lazer para as crianças e até fonte de alimentação. Isso é inimaginável para minha geração. Além disso, percebe-se nas falas da moradora muito o uso do plural “a gente brincava”, “a gente lavava roupa”, o que mostra o senso de comunidade e a constante socialização entre os moradores no entorno do Rio Cascata.

As experiências da minha geração, por outro lado, são bastante diferentes com relação ao Rio Cascata. Não utilizamos sua água, não utilizamos peixes e camarões pescados nele porque estes já não existem e, quando criança, só brincávamos em sua margem, devido à intensa poluição do córrego.

Tornar as favelas climaticamente resilientes e tomar medidas urgentes para frear a mudança do clima e seus impactos são atitudes necessárias. Em uma perspectiva onde as favelas e as periferias são os territórios mais atingidos pelas consequências das mudanças climáticas e do racismo ambiental, preservar e conservar os rios de favela é fundamental.

Rio Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira
Rio Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira

É obrigação do Estado restaurar e preservar esses rios, repensando o saneamento básico, retirando o esgoto, restaurando suas margens para serem solo fértil para diversidade da fauna e da flora e com educação socioambiental. Como afirmou uma das entrevistadas por mim na Formiga, que também não quis ser identificada:

“Os governos não querem nada! Tem lugar que está ruim à beça… eles não limpam mais mato. Eles não limpam mais nada, meu filho! Agora tá assim… todo canto tá assim, mato tão alto que entra dentro das casas… o rio tá tampado de mato! Tem lugar que tá pior que aqui lá pra cima no morro. O povo tá morrendo na lama, na merda… As pessoas estão morrendo dentro d’água, estão vendo a água passando por dentro de suas casas, por causa dessas valas que enchem… Então, é isso, aquele mato cresce e não tem ninguém ali para limpar. Olha ali na escada, por exemplo, está cheio de mato! Como é que passa ali assim? Eu nem gosto de passar mais ali… Mas se tivesse uma manutenção seria bom.”

A mesma moradora identifica o esgoto como o principal responsável pela degradação do Rio Cascata. Para ela, com a negação estrutural do direito à moradia, houve o adensamento rápido da favela, sem que o Estado investisse em redes de esgoto. Com isso, o Rio Cascata virou vala, sendo a única opção de onde despejar os efluentes vindos das casas. O assassinato em curso do Rio Cascata é fruto podre da falta de políticas públicas.

“É o esgoto, o maior responsável. A prefeitura até fez rede de esgoto, mas fez mal feita, não pegou todo o esgoto da comunidade. A rede entope muito e, de todo jeito, o esgoto transborda e vai parar dentro do rio. Então, com o esgoto dentro do rio, não dá peixinho mais. Nem as garças vêm mais com tanta frequência! As garças vinham pegar os peixinhos do rio, agora quase não vêm mais, porque não tem mais peixe por causa do esgoto… Tem muito esgoto no rio!”

Opinião também partilhada por seus vizinhos, entrevistados por essa pesquisa, uma terceira moradora lembrou que já houve plano do poder público de encanar o Rio Cascata, oficializando a transformação do rio em encanamento de esgoto.

“Há muitos anos de falta de investimento… se canalizassem esse rio, o lixo já não iria por água abaixo!… Favela-bairro tinha uma proposta de canalizar o Rio Cascata, porque o esgoto também é importante. Mas, bem, o primeiro desafio é a verba para que isso aconteça.”

Uma moradora mais jovem, ao ouvir esses relatos, se lamentou pelo estado do rio. Para ela, essa vala só lembra um rio em dias de chuva, quando o volume d’água aumenta e enche o leito do Rio Cascata.

“Essa relação com o rio a gente não tem mais, porque é só olhar pra ver lixo dentro, esgoto, não tem mais rio. Só em tempo de chuva que a água aumenta. Então, a água vem muito forte, desce muito forte nesse rio, e chega até formar uma cachoeira.”

Rio Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira
Rio Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira

Favela Informada e Mobilizada por Justiça Climática

As favelas são os lugares mais impactados pelos efeitos das mudanças climáticas no Rio de Janeiro, o que agrava a desigualdade social, o racismo ambiental, a insegurança alimentar, entre outros processos. O aumento desproporcional da temperatura da Terra desequilibra as estações do ano, provoca enchentes e secas, aumenta o nível do mar, derrete geleiras e diminui expressivamente a biodiversidade. É’o papel dos governos nesses territórios periféricos organizar e planejar ações para mitigar os danos do aquecimento global. Frente a esse cenário, é preciso socializar soluções com as favelas, as informações da comunidade científica, além de estimular a mobilização climática e a organização dos moradores.

Rua Travessa da Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira
Rua Travessa da Cascata, 2022. Foto: Renan Oliveira

As moradoras da Formiga ouvidas sabem que falta uma ação concreta na parte do Estado, que reconheça e honra a importância do Rio Cascata para a comunidade. Se os governantes se sensibilizassem de fato sobre o papel desse rio para a favela, ele já estaria límpido, cheio de peixes e camarões e, os moradores, com esgoto coletado e tratado. Suas lembranças atestam a importância ambiental, social, cultural, econômica e alimentícia de ter o rio que corta a comunidade limpo. No entanto, é consensual a desesperança nas falas que ouvi. A maioria considera ser irreversível a degradação do rio. Nem mesmo o veem mais como um rio, mas como uma vala, como esgoto a céu aberto, que deveria ser encanado e aterrado ao invés de despoluído e posto à disposição da comunidade. É exatamente por isso que alguns moradores desejam remoldar esse imaginário sobre o rio e indicar para seus vizinhos que, por mais trágica que pareça a situação, ainda há solução. Apesar de estar sendo assassinado um pouco mais a cada dia, o Rio Cascata ainda não está morto. E, se há vida, há esperança.

O caminho até a revitalização do rio passa pela organização dos moradores na reivindicação de políticas públicas e ações que garantam vida digna e ambientalmente sustentável para a comunidade. Por exemplo, uma rede de coleta de esgoto planejada especificamente para a realidade e a geografia locais, que não considere o rio como uma manilha de efluentes e que privilegie o biotratamento local do esgoto. Precisamos de uma gestão inteligente do lixo, voltada para a reciclagem e para a reutilização, para a compostagem do lixo orgânico, com projetos que incentivem a educação socioambiental e a redução do consumo. A solução também passa por investimentos públicos em hortas comunitárias e, sobretudo, em projetos ecológicos já existentes nas favelas, que já oferecem soluções eficientes para problemas exacerbados pela negligência do Estado.

Por isso, a mobilização comunitária é fundamental para a promoção da justiça climática, da educação ambiental e da socialização das informações e conhecimentos que estimulem a reprodução de soluções locais que ataquem problemas sistêmicos. Assim sendo, articula-se o conhecimento comunitário em favor da preservação ambiental do território, em nome da segurança dos moradores frente às mudanças climáticas, mas também como garantia de permanência nas favelas. A luta por justiça climática é a luta pela vida, pela existência das favelas, de nossos rios e territórios. A luta não é só pelo Rio Cascata, é pela própria existência.

Sobre o autor: Renan Oliveira dos Santos é cria do Morro da Formiga, estudante de Ciências Sociais (UFRJ) e busca construir o movimento Guardiões do Rio Cascata, onde atua junto ao Coletivo de Juventude de Favela Brota na Laje. Ele ajudou na implementação do Pré-Vestibular Comunitário Brota na Laje, além de outros projetos sociais, culturais e ambientais nas favelas da Tijuca.

Sobre a artista: Natalia de Souza Flores é cria da Zona Norte e integrante das Brabas Crew. Formada em Design Gráfico pela Unigranrio em 2017, trabalha como designer desde 2015. Lançou a revista em quadrinhos coletiva ‘Tá no Gibi’, em 2017 na Bienal do Livro. Sua temática principal é afro usando elementos cyberpunk, wica e indígena.


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