Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAPN+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.
No dia 4 de junho, foi lançada a ocupação artística Noite das Estrelas que celebra a história e a memória das travestis, transexuais e homossexuais do Complexo da Maré, Zona Norte, resgatando o antigo evento Noite das Estrelas. A iniciativa originária consistia em shows e performances dentro da comunidade realizados por LGBTQIAPN+ mareenses, entre os anos 1980 e 1990. A ocupação artística de mesmo nome, celebra e resgata a memória deste período e é produzido pelo projeto Entidade Maré.
A ocupação artística que está sendo realizada, todos os domingos desde 4 de junho, na comunidade Nova Holanda, terá sua última apresentação este 9 de julho. O evento dura três horas e percorre a Rua Teixeira Ribeiro até a quadra do Gato de Bonsucesso. Reunindo diversas expressões artísticas como teatro, música, performance e muita criatividade, a ocupação promove uma imersão na imaginação LGBTQIAPN+.
No elenco da peça teatral também chamada Noite das Estrelas estão Milu Almeida, Dominick Di Calafrio, Jaqueline Andrade, Marcela Soares, Lívia Laso, Preta Queenb Rull e no ballet Arthur Gabriel, Codazzi Idd, Lua Brainer e Luiz Otávio. O evento também inclui apresentações de artistas convidados, como por exemplo, a MC Natalhão, o MC Caten e Van Preta, travesti lendária das antigas festas, no domingo da Semana do Orgulho, dia 25 de junho. A mostra também é formada por integrantes do coletivo Entidade Maré, criado em 2020 e responsável pela realização do evento que marcou a Maré, a partir dos anos 1980.
Marcela Soares, uma das pioneiras da festa Noite das Estrelas, compartilha sua história:
“Me sinto lisonjeada porque comecei a participar adolescente, através de amigas em festas em casa. Depois em festas na rua, na Vila do João foi feito um evento e comecei ali. Essas atividades foram se expandindo para diversas partes da comunidade, os chamados Shows Gay. Quando chegavam as festas juninas íamos para todas as comunidades daqui. Foi gratificante estar no palco aqui na Maré. Dá vontade de chorar.” — Marcela Soares
A nova geração, como a artista trans Lua Brainer, compartilha da experiência de poder ser parte desse legado.
“O evento está marcado na história de travestis antigas e eu, como uma travesti, atualmente dentro do Noite das Estrelas, também estou sendo parte dessa história e continuação. Há uma frase que diz que ‘se um dia estrela eu virar, travesti quero voltar’. O Noite das Estrelas é uma continuação, um trabalho realizado e voltado para ‘corpas’ trans da Maré, principalmente artistas. Eu estou sendo uma continuação desse trabalho feito anteriormente pelas precursoras da comunidade e depois, virá uma continuação a partir de mim, para uma outra travesti de favela. Cada espetáculo está sendo uma novidade, de atravessamento, suporte, acolhimento. É uma manifestação da importância da continuação.” — Lua Brainer
Além da performance de domingo, 4 de junho, a ocupação realizou diversas atividades ao longo do mês voltadas para o público LGBTQIAPN+, como a oficina de produção cultural com Bem Medeiros; a exposição A Noite das Estrelas uma Galáxia Imorrível, na Lona Cultural Herbert Vianna com acervos pessoais da cena LGBTQIAPN+; e as festas pioneiras e a mostra do filme Noite das Estrelas, exibido no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul e na Maré, nos espaços Resistência Lésbica, Instituto Trans e na Rua Sargento Silva Nunes, em parceria com o Grupo Conexão G, Centro de Promoção de Cidadania LGBTQIAP+, Gilmara Cunha e Redes de Desenvolvimento da Maré.
Criada há 20 anos, a Noite das Estrelas surgiu nas festas juninas de Nei, morador e realizador de comemorações caipiras na Maré, hoje falecido. Nei incentivou a criação de um espaço em suas festas destinado às suas amigas, costureiras dos trajes. Mais tarde, a iniciativa foi batizada de Noite das Estrelas por Menga, também falecido e ex-morador da Rubens Vaz, na Maré. Jaqueline Andrade, parte do coletivo e do espetáculo, relata sobre a boa recepção da Maré sobre o evento.
“Quem está vindo aqui, e é da Maré, vivenciou esses shows. Eles têm uma relação muito próxima. Quando criança eu também vi esses shows acontecerem, então para mim é super importante fazer parte da Noite das Estrelas, porque eu sinto que ele está no meu corpo, que faz parte de mim, do que eu sou agora. Estou aqui porque essas pessoas fizeram isso acontecer. Elas foram fundamentais para que minha existência se fortalecesse nesse momento. Tenho muito orgulho de ser parte desse projeto, um projeto de vida. É uma honra estar com a Marcela e a Madame, rever os shows e fazer parte disso.” — Jaqueline Andrade
Um dos diretores do espetáculo, Paulo Lino, conta sobre as motivações do grupo:
“Queremos debater sobre quais são os nossos lugares de audiência. Sempre aparecemos no contexto da violência e queremos romper isso, pois não somos o resultado disso. Somos vítimas e ao mesmo tempo responsabilizadas em dar conta dessa problemática, dessas mortes. Queremos reverter esse cenário e colocar os LGBTs no lugar que realmente merecem, que é o lugar da arte, produção e criatividade. A Noite das Estrelas vem muito dessa perspectiva da gente celebrar as nossas ‘corpas’. E desejamos que esse projeto rode muito, que seja uma inspiração para auxiliar a colocar outros LGBTs em foco.” — Paulo Lino
O artista trans e também estreante, Artur Azevedo conta que o projeto superou suas expectativas.
“Já esperávamos que fosse um grande projeto, mas não tínhamos noção que iria tomar essa dimensão. Saíram pessoas de vários lugares para ver o espetáculo. Há sempre aquelas pessoas que nos contam suas memórias, quando participaram no passado e ficam muito emocionados porque estamos reavivando essa iniciativa. Este é o primeiro espetáculo da minha vida, então me sinto muito grato a isso.” — Arthur Azevedo
Para Lua Brainer a importância da realização desse evento se justifica na superação dos estigmas de violência.
“Dentre todas as letras da bandeira [LGBTQIAPN+], o T é o mais vulnerável e que ocupa esse lugar, a mira da violência num sistema que quer matar, apropriar e invisibilizar nossos corpos. Todas as letras são importantes, mas diante dos outros, vivo só aos 35 anos segundo as estatísticas. Como eu transformo o T em uma referência potente para outras estarem vivendo e poderem se espelhar? O meu corpo é vivência, quero viver mais de 35, como todas as outras querem. A minha letra é uma junção de história sobre nós, sobre o que é ser mulher, sobre nossos corpos, continuação e movimento. Estar nessa comunidade e ser trans, é uma ressignificação muito grande. A gente ‘transiciona’ a Maré. Estar aqui é uma forma de mostrar para outra trans que ela também pode ser uma estrela.” — Lua Brainer
O evento é fomentado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Cultura, através do Programa de Fomento Carioca (FOCA), tem o apoio da Cia Marginal, Conexão G, Centro de Cidadania LGBTI, Gato de Bonsucesso e Artefatos Luminosos e está em parceria com Redes da Maré, Lona da Maré Itinerante e Lona Cultural Municipal Herbert Vianna.
Informações sobre o Espetáculo, a ocupação artística Noite das Estrelas:
- Última apresentação, domingo, 9 de julho
- Rua Teixeira Ribeiro, Passarela 9, Avenida Brasil
- Concentração no Ponto de Moto Táxi da Teixeira
- Entrada: Gratuita
- Horário: 15:30
- Duração: 3h
Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é estudante de jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.