A Coroação do Cria na Avenida: Estação Primeira de Mangueira Exalta o ‘Orgulho de Ser Favela’ Enquanto Conta a História dos Povos Bantu no Carnaval 2025 [ENTREVISTA]

A Estação Primeira de Mangueira em 2025 coroa o cria de favela na Sapucaí, descendente dos Bantu, interpretado, em sua fase jovem, por Flavio Lopes, mais conhecido como Flavinho, e propõe afrofuturos bantu-favelados. Foto: Redes Sociais
A Estação Primeira de Mangueira em 2025 coroa o cria de favela na Sapucaí, descendente dos Bantu, interpretado, em sua fase jovem, por Flavio Lopes, mais conhecido como Flavinho, e propõe afrofuturos bantu-favelados. Foto: Redes Sociais

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O Carnaval 2025 está chegando e mostrando um povo cada vez mais orgulhoso de si e de sua História. Das 12 escolas do grupo especial, apenas duas não levam para a Sapucaí enredos afro-indígenas: Mocidade e Vila Isabel. Todas as outras dez agremiações trazem a religiosidade dos povos africanos, afro-brasileiros, indígenas e da floresta, afro-indígenas, a História negra brasileira, da transgeneridade afrobrasileira, itans, histórias míticas dos orixás yorubás, e grandes personagens do carnaval, que ainda se fazem muito presentes nos terreiros e barracões das escolas de samba.

No entanto, só uma agremiação coloca a favela e o cria no centro da maior festa do mundo. Só uma escola coroa um cria de Kenner no pé, sem camisa, com cordãozinho de ouro, dançando passinho com seu riscado no cabelo nevado em verde-e-rosa: a Estação Primeira de Mangueira.

O cria coroado, em sua fase jovem adulto, no ensaio técnico da Mangueira em fevereiro de 2025, com os Arcos da Apoteose de fundo. Foto: Mangueira
O cria coroado, em sua fase jovem adulto, no ensaio técnico da Mangueira em fevereiro de 2025, com os Arcos da Apoteose de fundo. Foto: Mangueira

Um enredo que, ao falar dos povos bantu e de como mudaram o Brasil a partir de seus saberes e crenças, traz reparações históricas e, como diz o samba mangueirense, guia o kamutuê—a cabeça, morada do sagrado para os Bantu, onde mora o minkise pessoal—de todos os negros de Mangueira e da diáspora em direção ao autoconhecimento.

 

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Uma das matriarcas do samba, fundada em uma das favelas mais antigas da cidade, irá apresentar a História dos povos Bantu em Congo, Angola e Moçambique, suas religiões, seu sequestro e chegada no Cais do Valongo, suas múltiplas formas de resistência, sua contribuição para as macumbas cariocas, com a introdução do culto às inquices e da tradição congo-angola do candomblé, e como a chegada dessa população atravessa a todos em Mangueira até hoje. Portanto, em 2025, a Mangueira desfila a epistemologia de cria enquanto faz reparações históricas, além de se propor a pensar afrofuturos Bantu-favelados.

Para entender melhor como a Mangueira pretende “tomar a cidade de assalto”, como diz outra parte do samba em 2025, RioOnWatch entrevistou Hudson de Oliveira Brito, mais conhecido como Taranta Neto, um dos mestres da bateria “Tem que Respeitar meu Tamborim”, atual Estandarte de Ouro e neto de Taranta, histórico mestre de bateria da escola, e o carnavalesco Sidnei França, estreante no carnaval do Rio, mas já experiente no carnaval paulista. Nos reunimos para conversar antes do ensaio de rua, que acontece toda quinta e domingo até a semana anterior ao carnaval na Rua Visconde de Niterói, aos pés do Morro da Mangueira. Neste dia, ao fim do ensaio, ainda aconteceria um baile funk no morro verde e rosa.

Apesar do dia agitado, Taranta Neto e Sidnei França conversaram longamente com o RioOnWatch na sala da diretoria da bateria, abordando seus pontos de vista sobre o carnaval 2025. Conversamos um pouco sobre o enredo “À Flor da Terra: o Rio da negritude entre dores e paixões” e a expectativa para o desfile.

RioOnWatch: De início vou pedir, por favor, que se apresentem. 

Taranta Neto, um dos mestres da bateria da Mangueira, atual Estandarte de Ouro do carnaval carioca, e o carnavalesco Sidnei França, que estreia em 2025 no carnaval carioca. Foto: Rhuan Gonçalves
Taranta Neto, um dos mestres da bateria da Mangueira, atual Estandarte de Ouro do carnaval carioca, e o carnavalesco Sidnei França, que estreia em 2025 no carnaval carioca. Foto: Rhuan Gonçalves

Taranta Neto: Meu nome é Hudson, mais conhecido como Taranta Neto, cria aqui da Mangueira desde sempre, né? Desde a barriga da mãe. A gente que nasce aqui no morro não tem como escolher, nós já nascemos aqui dentro da quadra. Já tem que ficar aqui dentro, não tem como, não tem saída. Também sou neto de mestre de bateria: Taranta, que foi mestre da bateria da Mangueira. Eu estou mestre desde 2023, fazendo dupla com Rodrigo Explosão.

E é isso, estamos aí nessa luta de tentar levar a Mangueira ao título que é o mais importante para a gente independente de qualquer coisa. Acho que pra gente aqui de dentro e até pra quem é mangueirense de fora também o mais importante é levar a Mangueira ao título e deixar a comunidade feliz.

Sidnei França: Bom, eu sou Sidnei França, carnavalesco da Mangueira. É meu primeiro ano a convite da Presidenta Guanayra Firmino. É minha estreia no Carnaval do Rio, não só na Mangueira, mas no carnaval carioca. A minha história é toda no carnaval de São Paulo e, como alguém nascido na capital paulistana, toda a minha tradição de samba vem de lá. Minha mãe era passista de uma escola de samba chamada Mocidade Alegre, que ficou grávida com 16 anos, muito nova, né? Ela me levou para a escola de samba desde cedo e eu tô lá praticamente desde que nasci, desde quando eu não tinha nem idade pra desfilar, depois fui para a ala das crianças.

Em São Paulo, eu tenho uma tradição de departamento jovem, como lá não tem escola mirim, o que tem dentro das escolas é departamento jovem onde você atua entendendo todos os segmentos para saber o que te agrada. E aí, desse departamento jovem, te direcionam para a ala das crianças, para Mestre Sala e Porta Bandeira Mirim ou para bateria. Enfim, é meio que um vestibular, vamos dizer assim.

Do departamento jovem, fui para o departamento cultural da escola. Sempre gostei de História, pesquisa e como departamento cultural eu comecei a assessorar antigos carnavalescos. Um dia, um carnavalesco saiu da escola e a presidente falou “ao invés de contratar alguém, você podia ser o carnavalesco”. Eu falei “Não, mas eu não sou um carnavalesco. Eu sou cria da escola [da Mocidade Alegre]” e ela respondeu: “mas o cria pode virar o carnavalesco”. Aceitei o desafio e estou aqui até hoje, indo para o meu décimo sexto ano como carnavalesco.

E, como eu disse, é o meu primeiro ano na Mangueira, a convite da Presidenta Guanayra Firmino. Um ano atrás, no desfile das campeãs do Rio, foi quando ela me chamou e falou: “Vem pro Rio. Estou te convidando pra ser carnavalesco da minha escola”. De lá pra cá é história.

Quadra da Estação Primeira de Mangueira, um dos terreiros mais importantes da história do samba carioca. Foto: Rhuan Gonçalves
Quadra da Estação Primeira de Mangueira, um dos terreiros mais importantes da história do samba carioca. Foto: Rhuan Gonçalves
Taranta Neto e Rodrigo Explosão, mestres de bateria da Mangueira. Foto: Redes Sociais
Taranta Neto e Rodrigo Explosão, mestres de bateria da Mangueira. Foto: Redes Sociais

RioOnWatch: Mestre Taranta Neto gostaria que você contasse como foi a ideia de criar junto com o Rodrigo Explosão o esquenta da bateria baseado em dois funks cariocas tão simbólicos e como pra você esses funks dialogam com o enredo?

Taranta Neto: Na verdade, não foi uma ideia exatamente criada por nós. Estudando o enredo pro mini desfile a gente tinha que fazer algo diferente e aí nada mais justo do que retratar o que o enredo pede, no caso o funk Rap da Felicidade: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela que eu nasci”. Acho que o enredo retrata demais isso, a História do povo negro. Um povo que sofreu, mas que entre esse sofrimento e a dor, tinha as paixões dele: que eram se reunir, brincar e zoar. É o que a gente é hoje!

Sabe, eu realmente nunca tinha ouvido falar do povo banto e falar desse enredo foi um acerto do Sidnei. Quando ele propôs esse enredo acho que ninguém entendeu diretamente o que significava e depois de uma reunião lá no terceiro andar que ele chegou e explicou pra gente, acho que todo mundo saiu de lá maravilhado.

Então, nada mais justo do que a gente retratar o que a gente é, o nosso dia a dia. É a nossa história mesmo, nossa cultura. É isso.

Mas basicamente, a ideia do funk não foi uma ideia criada não. É que a gente tinha que fazer algo pro mini desfile. Colocamos esses funks na bateria e o resto já estava pronto. Como a gente costuma dizer: “Sempre foi isso, a gente só tinha que achar.

Sidney França, carnavalesco estreiante na Mangueira em 2025. Foto: Redes Sociais
Sidney França, carnavalesco estreiante na Mangueira em 2025. Foto: Redes Sociais

RioOnWatch: E por estarmos falando sobre o enredo, Sidnei, você pode nos contar como você chegou à decisão de trabalhar com essa temática?

Sidnei França: A Presidenta Guanayra me contratou para ser carnavalesco da Mangueira e ela deixou muito claro desde o momento zero que a escola não tinha um enredo, não tinha uma história para contar e que ela esperava isso de mim. Ela falou “Olha, fica a teu critério. Lógico, a gente precisa aceitar, o enredo precisa ter a ver com a escola, mas você fica com a liberdade de propor alguma coisa”.

E aí eu fiquei feliz até porque bacana o carnavalesco ser autor daquilo que vai ser contado e eu passei a ler muita coisa. Eu já queria alguma coisa que tivesse muito a cara da Mangueira e do Rio de Janeiro para ter identidade, para ter assimilação pela comunidade da Mangueira e aí chegou a mim um livro chamado “À Flor da Terra”, que falava sobre a chegada dos Pretos Novos.

Quem são os pretos novos? Pretos novos eram os escravizados que entravam pelo Cais do Valongo até 30 dias depois de sua chegada. Quer dizer que a pessoa fazia pouco tempo que estava no Rio. Então, depois de 30 dias já não era mais preto novo, ou seja, já era da casa vamos dizer assim.

Olha que incrível, hoje a gente está aqui no desfile falando do cria do Morro da Mangueira. E não era só enquanto preto novo e a preta nova que os brancos colonizadores dividiam os negros. Dividiam por idade também. Criança era moleque novo, moleca nova e, dependendo da idade, era chamado de cria.

Esse livro me chamou muita atenção porque falava que 80% dos pretos que chegaram no Rio de Janeiro eram Bantu. Cara, se 80% é Bantu, onde vai parar tudo o que eles trouxeram da África para cá, que ninguém fala?

Acho que o maior mérito desse enredo da Mangueira é justamente trazer essa autoria, trazer respeito para um agrupamento de negros que nunca foi falado. Então, por exemplo, todo mundo fala de Orixá, mas não fala de Nkice (ou inquice). Falam dos Nagôs, dos Iorubás, mas não falam dos Bantu.

Samba, por exemplo, é uma palavra Bantu. Quilombo é bantu, quitanda é bantu. Quitute, dengo, xodó, chamego, então, assim, a gente está o dia inteiro falando e entendendo a vida em Bantu, mas quase ninguém sabe o que significa e quem são e foram os Bantu. Então, isso também é uma covardia com esse povo, com a memória desse povo.

A ideia de “À Flor da Terra” é mostrar que a Mangueira tem autoridade como poucas outras escolas têm de falar sobre Rio, negritude, cria, morro, favela, comunidade, respeito e ancestralidade. Não tinha outra escola para trazer esse novelo, para apresentar essa história para a sociedade. Então, é isso que a gente vem buscando fazer. Esse enredo veio da necessidade de falar do Rio, inclusive do Rio de hoje. O cria é o Rio de hoje, mas entendendo que do passado vem o nosso presente. 

Componentes da Mangueira durante ensaio de rua na Visconde de Niterói celebram a resistência dos povos Bantu. Foto: Redes Sociais
Componentes da Mangueira durante ensaio de rua na Visconde de Niterói celebram a resistência dos povos Bantu. Foto: Redes Sociais

RioOnWatch: Aproveitando esse gancho, há um termo Bantu central para o enredo 2025, que está presente no samba, que são as chamadas “Casas de Zungu”. O que são elas? Qual a relação entre as “Casas de Zungu” e o Morro da Mangueira?

Sidnei França: Sim. Aliás, o Morro da Mangueira é uma grande Casa de Zungu, que é outro exemplo do apagamento Bantu. Os Bantu criaram no centro do Rio de Janeiro antigo, as Casas de Zungu, que eram uma espécie de quilombos urbanos. O quilombo clássico que a gente conhece era no meio do mato, era longe, que era para onde os pretos fugiam para se livrar da escravização ou dos maus tratos dos senhores. Então, eles iam para os quilombos afastados. Mas, dentro da cidade, tinham as Casas de Zungu, que apesar de chamar casa, não eram só uma casa, mas uma espécie de vila. Então, você ia onde hoje é a Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Praça Onze, Cidade Nova, Estácio, você encontrava vilas, becos, uma espécie de cortiço. E, nesses lugares, os pretos se aquilombavam, se uniam e a polícia não entrava. Então, as Casas de Zungu eram lugar de proteção.

Nas Casas de Zungu, jogava-se capoeira. Nas Casas de Zungu, você tinha iniciação no santo, você se iniciava no candomblé. Nas Casas de Zungu, você se alimentava. Por isso, chamavam-nas de “Zungu”, que, na língua kikongo, é a junção de “nzu”, que quer dizer casa, e “ungu” ou Angu, um prato africano muito popular até hoje.

As Casas de Zungu eram verdadeiras células de proteção, onde você podia ser você mesmo. Então, se na rua te criticavam porque você fazia macumba e jogava capoeira, dentro da Casa de Zungu era um ambiente preto, então, você tinha liberdade pra ser você mesmo. Quando a polícia vinha e tentava destruir uma Casa de Zungu, dois meses depois aparecia outra Casa de Zungu. Então, o preto sempre foi pelas frestas, pelos caminhos alternativos para poder resistir. Foi assim desde 1830 até 1910, então, são quase 100 anos de Casa de Zungu. Hoje em dia, as crianças não aprendem, não sabem o que é uma Casa de Zungu, olha como a história é covarde com a negritude. Então, você vai pra escola pra saber quem é Dom Pedro, pra saber o descobrimento do Brasil, mas ninguém te fala sobre Casa de Zungu, que não é uma história inventada, que é algo bem real.

Então, o que a Mangueira está fazendo é resgatar muita coisa da cultura Bantu que foi sendo apagada, que foi sendo silenciada. A Mangueira está dizendo que toda favela moderna é uma verdadeira Casa de Zungu. Hoje, claro, os mecanismos são outros, o jeito que faz samba é diferente, talvez não seja mais a capoeira daquela maneira, mas ainda tem o funk, o charme, o passinho, que são outras maneiras do corpo se expressar. Você tem novas ferramentas dialogando com a modernidade, mas ainda é uma grande Casa de Zungu. Aqui dentro você está de uma certa forma compreendido, enquanto lá fora não entendem quem você é.

 

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RioOnWatch: Nessa linha de raciocínio sobre a Casa de Zungu e sua relação com o Morro da Mangueira, Mestre Taranta conte um pouco do que você sabe sobre a História do morro e de seu avô, mencionando a importância dele para você e para a bateria.

Taranta Neto: Sim! Então, a Mangueira foi fundada a partir de blocos, né? Tinha o bloco dos Arengueiros, o bloco da Tia Fé, essas coisas todas. E a quadra da Mangueira real era ali no Buraco Quente, era lá na Casa da Tataravó da Guanayra, que hoje é a presidente da escola. Foi ali numa reunião que eles resolveram fundar a Mangueira. Além de ser a quadra, essa casa também funcionava como um terreiro. Então, a gente, desde antes, a gente é isso aí: resistência!

Meu avô é o meu maior ídolo. Foi o cara que me ensinou tudo. Eu fico emocionado pra falar dele porque é uma coisa que eu não consigo ainda, porque apesar de ter 10, 12 anos que ele se foi, eu ainda não consigo meio que aceitar. Ele sempre falava que o sonho dele era me ver mestre e, lá no começo, esse não era meu sonho. Meu sonho era ser jogador de futebol. Com o passar do tempo, ele foi me acostumando a viver nesse mundo de bateria. Eu vinha uma vez ou outra. Nesse costume de vir com ele aos sábados, eu fui me apaixonando. E assim, nunca mais quis sair daqui.

Tipografia de artes urbanas envelopam os instrumentos da Mangueira em 2025. Foto: Rhuan Gonçalves
Tipografia de artes urbanas envelopam os instrumentos da Mangueira em 2025. Foto: Rhuan Gonçalves

Abandonei o futebol e estou aqui até hoje. Graças a Deus, eu estou conseguindo cumprir o legado que ele deixou. Foi uma coisa que eu prometi a ele, que eu seria o que ele sempre achou que eu deveria ser. Seguir o legado dele, ser um mestre, ter uma passagem, independente de um ano, três anos, cinco anos, dez anos, é passar aqui, fazer um bom trabalho, ser humilde e ajudar quem tem que ajudar.

 

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RioOnWatch: Sidnei, sobre o ensaio técnico, a comissão de frente fez bastante sucesso a exemplo do personagem representando o Nganga, que se transforma no cria coroado. Você pode contar um pouco sobre essa ideia?

Sidnei França: Assim como a bateria que o Hudson falou, todo mundo buscava algum molho diferente para o ensaio técnico. Com isso nossos coreógrafos, Carina e Lucas, foram até o Barracão conversar comigo e minha equipe pra ver se tinha alguma história, alguma coisa forte mas que no desfile não fosse aparecer tão marcante para a comissão poder sobressair. E lembramos dos Ngangas, uma espécie de sacerdote, a grande força dele é a a transformação. Então o que a gente pensou? Vamos transformar ele de um sábio sacerdote no cria do morro. E então surgiu essa ideia. E foi muito bonito escolher Flavio Lopes, mais conhecido como Flavinho, que é um menino de comunidade que dança passinho para ser esse personagem do cria jovem, chegando à vida adulta. Foi um sucesso muito grande no ensaio técnico, já que a Mangueira brilhou muito desde a comissão de frente aquela cena muito forte do Nganga saindo daquele manto africano e se revelando um cria coroado do morro de Mangueira, de verde e rosa, dançando passinho. Foi um momento muito bonito, mas muito bonito mesmo! É um mérito coletivo desde a equipe de pesquisa do enredo Stephanie e Tinoco, aos nossos coreógrafos.

 

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RioOnWatch: Mestre, qual é o trecho do samba que mais te emociona?

Taranta Neto: Pô, tem vários, mas o que retrata a nossa vida aqui, vou falar só por mim, no geral, é a parte do “o alvo que a bala insiste em achar”. Esse aí é o que retrata a gente, não tem jeito. A gente é acostumado a acordar aqui com tiroteio. Hoje, menos. Atualmente o morro da Mangueira está muito mais tranquilo. Mas vira e mexe ainda tem uma operação que a gente fica acordado, na atividade, com aquele medo por familiares e amigos que moram em outras partes do morro. Sabe?

 

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Essa parte do samba é a que mais mexe. Não só comigo, acredito que com 100% da escola e da comunidade. 

O cria coroado, em sua fase jovem adulto, no ensaio técnico da Mangueira em fevereiro de 2025. Foto: J.M. Arruda/Mangueira
O cria coroado, em sua fase jovem adulto, no ensaio técnico da Mangueira em fevereiro de 2025. Foto: J.M. Arruda/Mangueira

RioOnWatch: Continuando sobre o enredo 2025 da Mangueira, as baterias de escola de samba possuem instrumentos Bantu e com isso, a escola optou por homenagear a cuíca em uma das alegorias. Sidnei, pode nos falar um pouquinho sobre isso?

Sidnei França: Eu diria que não é nenhuma opção. Nas pesquisas que a gente fez, o instrumento Bantu mais difundido no Brasil, claro que decodificado numa musicalidade, instrumentalidade musical e percussiva moderna, foi a cuíca. Então, não podia ser outro instrumento mesmo. Tanto é que, quando a gente chegou na cidade de Lubango, em Angola, fomos no Museu de Antropologia e a guia começou a falar, “ah, aqui está a puíta, que vira a cuíca”. Eu olhei e falei “caramba!”.

Então, eu digo que a cuíca escolheu o enredo. Foi a cuíca que falou, cara, vocês vão falar da ancestralidade Bantu, então, saibam que eu estou aqui, que se não for por mim, não é. Então, eu, particularmente, fico muito emocionado de ter a cuíca dentro do desfile de uma forma ampliada, porque normalmente a bateria é o som, mas o visual é só a fantasia. Então, quando você traz o discurso da bateria para uma alegoria e faz disso uma coisa central na maneira de contar a história, eu acho isso bonito. Mostra que a bateria não está ali só para fazer o som que vai no desfile, tem ancestralidade. Então, vejo que vai ser um momento muito bonito no desfile, não tenho dúvida.

RioOnWatch: Para concluir nossa conversa, qual sua perspectiva de legado do Carnaval 2025 da Mangueira?

Sidnei França: Levando adiante, eu não sei o que vai acontecer nesse desfile, porque a gente sabe que são muitos fatores, são nove quesitos que têm que confluir e gerar um título para a escola. É lógico que eu quero que a Mangueira seja campeã, mas quero que esse desfile também marque a comunidade.

Por exemplo, vejo o José William [que representa o cria criança na Mangueira em 2025], que é o filho da Laura, que trabalha no nosso almoxarifado, que são aqui do Morro de Mangueira, toda a família é da escola. Esse enredo também ajuda ele a entender quem ele é. Para mim, isso já é muito satisfatório. Já é um grande presente! Que fique na história da Mangueira como um carnaval de legado, sensacional para a escola.

José William, cria da Mangueira, descendente de bambas, que representa o cria criança no desfile da Mangueira em 2025. Foto: Thais Brum/Mangueira
José William, cria da Mangueira, descendente de bambas, que representa o cria criança no desfile da Mangueira em 2025. Foto: Thais Brum/Mangueira

Quando eu falo para a escola, não é só para lideranças, é nos colocar na condição de componentes, de sambistas: a Mangueira está acima de todos nós. Que essa escola pulse nesse carnaval não só pelo resultado, mas para que, daqui 100 anos, alguém lembre: “ó, teve um carnaval que falou sobre o cria, sobre o Morro, sobre o que é ser favela, o orgulho de ser favela, sobre ser Bantu”.

O orgulho de ser favela é reafirmado a todo momento, inclusive nos instrumentos da bateria tem que respeitar meu tamborim. Foto: Rhuan Gonçalves
O orgulho de ser favela é reafirmado a todo momento, inclusive nos instrumentos da bateria Tem que Respeitar Meu Tamborim. Foto: Rhuan Gonçalves

Aliás, eu converso muito com a Guanayra sobre essas questões do futuro, a gente bate muito papo, sabe esses papos de fim de noite? Tipo, para de falar de carnaval para falar de tudo. E uma coisa que esses dias a gente estava falando é que é bonito pensar no passado da Mangueira, mas também é importante projetar hoje o que a Mangueira vai ser daqui para frente. Por isso, a estética que eu estou tentando plantar nesse carnaval não é só a de uma escola tradicional. É uma escola antiga e tradicional, mas que tem que olhar para o futuro, com um visual mais moderno, mais despojado, sem perder a tradição, o verde-rosa, os signos.

A Mangueira visualmente precisa se conectar com a modernidade plástica até para que a criança de hoje olhe, se interesse e queira continuar essa tradição no futuro, se não ela começa a perder interesse e falar: “cara, é legal que tem Mangueira lá no morro, mas acho que não é o que eu quero, acho que eu quero outra coisa”. Então, o que a gente precisa hoje é ter a consciência de que o nosso trabalho promove também a Mangueira do Amanhã, a Mangueira do futuro.

Assista ao “Manifesto: O Rio É Banto – Mangueira 2025” Aqui.

Esta entrevista foi editada e condensada para maior clareza.

Sobre o autor: Rhuan Gonçalves é natural de Macaé, cidade do Norte Fluminense, possui licenciatura em História pela PUC-Rio, dirige e produz o documentário “Menino de 47 Vai a Campo”, sobre a fundação do time profissional de futebol do G.R.E.S. Império Serrano, é fotógrafo do acervo do Imagens do Povo, vinculado ao Observatório de Favelas, localizado no Complexo da Maré, e ritmista do Império Serrano e da Estação Primeira de Mangueira.


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