Vamos Falar de Epistemologia Favelada!

Quem É Cria Sabe

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Ao me inscrever no curso Segurança Pública e Epistemologia Favelada–que aconteceu de 28 de abril a 6 de junho em várias favelas do Rio–eu não tinha dimensão das inúmeras estratégias de empobrecimento, controle e segregação, a qual o povo favelado e periférico é submetido. A história de contenção geográfica (e de potencialidades), vem muito antes da favela nascer. Negros escravizados e diaspóricos foram arrancados de seus lugares e postos em um “não lugar” durante o processo pós-abolicionista.

Já eram notórias as medidas monárquicas para limitar a liberdade e para pôr grilhões sociais e cerceadores, para negros “libertos”. Algumas destas medidas podemos argumentar que sejam mantidas pelo Estado até os dias de hoje. O código criminal do Império incriminava desde a cultura destes, até o acesso a educação. Esse olhar sobre o passado deixa claro que a discrepância de oportunidades não é contemporânea.

Estes danos históricos e consecutivas retiradas de direitos, culminaram em uma sociedade marcada pelo racismo. A proposta do curso “Segurança Pública e Epistemologia Favelada” era não só visibilizar e esmiuçar o perfil das favelas e periferias, mas também ampliar narrativas.

Militantes oriundos de favela ministraram conteúdos acadêmicos e não acadêmicos, e iam formando a tal epistemologia, que para nós, é termo distante e que poderia ser substituído por uma única frase: Quem é cria sabe. Nós nos sabemos e podemos falar na primeira pessoa sobre o nosso cotidiano e cultura.

Esta matéria destaca, abaixo, ideias e informações importantes assimiladas durante o curso.

Estado e Educação

Como professora acredito que a educação é a “tal vara de pescar” necessária para que a população negra, periférica e favelada, saia da condição de pobreza e marginalização. Para aqueles que são postos à margem esses direitos básicos são praticamente negados, como provam as estatísticas. Escolas sucateadas, condições materiais de trabalho ruins, professores mal pagos e quase sempre em jornadas de trabalho extenuantes, refletem diretamente na não construção de uma educação crítica, que poderia levar a uma condição de equidade social.

A falta de valorização da cultura africana é o primeiro importante acesso negado ao povo negro, que é constantemente associado a manchetes violentas e de morte. Ainda há uma fala forte da branquitude dominando os campos acadêmicos e, apesar de existirem diretrizes que garantem que esta valorização étnico-racial do povo negro aconteça, tais direitos ainda não são uma realidade para os nossos. Reconhecer-se negro é um ato político e que nem sempre é conquistado diante de tantos discursos consolidados e equivocados sobre o que é ser negro.

Estado e Militarização

Outro ponto importante neste conjunto de falhas do Estado, é a segurança pública. A palavra segurança quase sempre está ligada à favela e a periferia, mas porque não conseguimos nos sentir seguros em nossas casas e ruas? Porque o Estado entende que levar a paz para a sociedade, é tirar a paz de outros? Estes outros são (em sua maioria) os que estão fora das grades dos condomínios e dos IPTUs caros. Levar a paz para o Estado é: dizimar, excluir, controlar e segregar este grupo estigmatizado como violento.

No mesmo espaço geográfico desta cidade, em dia de sol, há cidadãos que acordam ao som de seus despertadores e levam seus filhos para o colégio e outros são acordados com caveirões aéreos atirando em suas ruas e assassinando suas crianças. “O Estado empobrece e criminaliza” como bem disse Gizele Martins, Gizele comunicadora da Maré, em uma das aulas. Não somos produtores de violência, somos violados, assassinados e arrastados todos os dias em alguma favela ou periferia desta cidade polarizada.

Mídia

A grande mídia é um tentáculo importante deste conjunto que desqualifica e tenta dar uma outro significado à população que está à margem. Reportagens e chamadas são recheadas de racismo e preconceito. O tom agressivo, e muitas vezes distante da realidade, reforça que as arbitrariedades atrocidades do Estado são consequências naturais da “guerra às drogas”. Dando a entender que só um lado está armado e ataca. O relato imparcial, dever de toda imprensa, nem sempre se cumpre quando o assunto é criminalidade e favela.

Chavões depreciativos vão partindo a cidade ao meio, sitiando bairros e reforçando o imaginário social que a cidade não é para o favelado e nem a favela é para a cidade. Mas resistimos! As mídias comunitárias e independentes trazem outras pautas, a partir do viés do morador. Estes espaços estão crescendo e ganhando voz, amplificando causas silenciadas pelo preconceito.

Insurgência

É inerente dos insurgentes destes lugares (muitas vezes esquecidos pelo poder público) resistir! A resistência surge da força, mas também do conhecimento e valorização da nossa imagem.

Quando entendemos e sabemos quem somos, é como um espelho que reflete a imagem em sua plenitude e sem distorção. Reconhecemo-nos como pertencentes, com cara, voz, corpo e cor. Sentimos mais forte a necessidade de lutar e pressionar essa máquina de moer gente com gritos mais altos que nós mesmos. Somos potência diante do medo que nos assola.

Há festa e dor no porão deste Navio Negreiro, mas há também muita luta. Queremos usar nossas próprias vozes, queremos construir, a partir de nossas vivências, falas acadêmicas. Não necessitamos de mediadores: somos gigantes. Por isso desconfio que tanta militarização seja para nos conter, conter nossas ideias. Sabemos que não somos produtores de violência. Somos, na verdade, frutos da violência desta trinca opressora: Estado, mídia e racismo.

Constantemente encarcerados e fuzilados, numa proporção desumana. Porém os tambores das armas não calarão os tambores que nos guardam. Não aceitamos esta paz que silencia alguns, em prol da paz de outros. Ansiamos em sair das estatísticas de morte, buscamos pertencer a todos os espaços desta cidade e também usufruir do nosso de origem, sem sermos interrompidos por blindados. Como disse Fransérgio Goulart, idealizador do curso Segurança Pública e Epistemologia Favelada: “Seu privilégio mata”. Exigimos o direito de transitar por nossa favela, em nossos afazeres cotidianos, sem estarmos com cano do fuzil apontados para nossas caras e nossos sonhos…

Carla Souza é pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Ela é moradora da Rocinha, e entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.