Na dia 17 de julho, cinco famílias receberam uma ordem de despejo federal na Rádio Sonda, uma comunidade de 103 famílias localizada na Zona Norte, perto do Aeroporto Internacional do Rio, na Ilha do Governador. Autoridades militares entraram na comunidade, no dia 23 de julho, fotografando os moradores, suas casas e seus pertences, supostamente com o intuito de registrar as cinco famílias sujeitas à remoção. Em resposta, a comunidade–com o apoio de defensores públicos, membros do Conselho Popular e do deputado estadual Glauber Braga–reuniu-se na noite seguinte para pensar e debater formas de combater a situação.
Exacerbada pela recente perspectiva de privatização da terra, esta ameaça recente está dentro do contexto da longa história de luta da comunidade contra as tentativas de remoção pela vizinha Base da Força Aérea do Galeão. Se removidas, essas famílias–que estão envolvidas em disputas legais desde 1998–seriam forçadas a saírem de suas casas sem expectativas de indenização ou alternativas de moradia.
Vinte anos de luta contra remoções
Compartilhando uma luta similar com a favela vizinha Maracajás, moradores remontam a origem humilde da Rádio Sonda quando, há quase 60 anos, dividiram a terra na qual se encontrava um mosteiro Beneditino. Entretanto, os militares estão historicamente presentes na região desde que o governo desapropriou propriedades para estabelecer o Centro de Aviação Naval do Rio de Janeiro em 1923. Sob a administração do Presidente Getúlio Vargas, o Centro foi então transformado na Base Aérea do Galeão em 1941 com a criação do Ministério da Aeronáutica e da Força Aérea Brasileira como seu ramo militar. Muitas pessoas envolvidas com as forças armadas começaram a se estabelecer na região para estarem mais perto de seu local de trabalho, o que gerou o estabelecimento de vários postos. Por fim, essa expansão invadiu os limites da comunidade Rádio Sonda.
Segundo os moradores, militares começaram a fazer visitas periódicas à Rádio Sonda em 1998, empenhados a registrar as pessoas que moravam na comunidade. Os moradores também ficaram sujeitos a regras cada vez mais rígidas decorrente da necessidade de autorizações da Aeronáutica. Por exemplo, se os moradores desejassem reformar suas casas, trazer grandes peças de mobília ou fazer reparos, eles precisavam entrar em contato com a Aeronáutica para uma avaliação e para receber autorização de seus pedidos, que raramente eram concedidos.
Logo depois disso, a Rádio Sonda recebeu notícias de que a Aeronáutica havia iniciado procedimentos legais para remover a comunidade. Há cada visita subsequente dos militares, os moradores iam tornando-se cada vez mais apreensivos com a possibilidade de serem removidos a qualquer momento. Temendo que declarar reformas em suas casas atrairia atenção indesejada da Aeronáutica e aumentaria as chances de remoção, moradores começaram a transportar materiais de construção para a comunidade através de uma rota alternativa ou escondendo os materiais em seus carros. Como declarou um morador, “Nós não sabíamos sobre o futuro”. Até hoje, alguns moradores da Rádio Sonda moram em casas inacabadas.
Em resposta a essas ameaças de remoção, a comunidade Rádio Sonda começou a trabalhar com advogados e defensores públicos no tribunal, argumentando que o terreno em que a comunidade estava localizada não pertencia aos militares. Nos anos que se seguiram, a Aeronáutica não conseguiu deslocar a comunidade.
Em 2007, a Aeronáutica começou a demarcar terras pertencentes aos militares. No processo, a favela vizinha, Vila Joaniza, foi declarada como não pertencente à Base da Força Aérea do Galeão. Livres de sua longa batalha contra a reintegração de posse–uma vez que a Aeronáutica não podia mais remover esses moradores–a Vila Joaniza cresceu rapidamente. No entanto, após a demarcação, a Aeronáutica começou a privatizar suas terras e construir muros, circundando a comunidade Rádio Sonda. Até hoje, a Rádio Sonda não é buscável em mecanismos como o Google Maps, pois foi cortada da comunidade a qual pertenceu anteriormente. Com um número significativamente menor de pessoas resistindo à remoção, moradores temiam que se tornasse mais fácil para as forças armadas tomar providências ou empregar estratégias de remoção para deslocar a comunidade. Mais uma vez, a comunidade se viu em estado de preocupação constante.
Em 2014, um grupo de moradores se uniu para criar a Associação de Moradores da Rádio Sonda. A associação realizou reuniões mensais para fortalecer os esforços de resistência da comunidade. Como observou um morador, por meio da Associação de Moradores, “Estamos mais forte para nos defender da Aeronáutica. A gente fica mais forte com todo mundo lutando junto”. No entanto, em abril de 2015, a Aeronáutica entrou com uma ação judicial especialmente contra um dos membros fundadores da Associação de Moradores. Logo em seguida, o processo foi estendido para incluir outras quatro famílias que ocupavam a mesma área, ordenando que deixassem suas casas dentro de trinta dias. Apesar da comunidade ter contratado representação legal para contestar a Aeronáutica, o advogado da Aeronáutica não cooperou e não trabalhou com os membros da comunidade, e, por fim, a Aeronáutica ganhou o direito de removê-los.
Em 30 de julho de 2015, vários militares entraram na comunidade em um grande caminhão. Um atual morador relembrou a experiência: “Eles começaram a retirar uma família, com um rapaz deficiente. Eles começaram a tirar as coisas da casa e jogar no caminhão, todo mundo aqui na rua, sabe. Foi um dia bem ruim para a gente. Era uma casa muito boa [que foi demolida] e o menino estava chorando, e todas as pessoas na rua não podiam fazer nada”. Talvez a pior consequência deste processo de remoção tenha sido que essas famílias não receberam nenhum direito a indenização ou alternativa de moradia de qualquer tipo. As famílias perderam suas casas e não tinham para onde ir.
Depois que finalmente ocorreu o primeiro ataque de remoção, após muitos anos de resistência, a associação de moradores procurou encontrar uma maneira alternativa de resistir. No mesmo ano, os moradores foram apresentados a um advogado da Pastoral de Favelas, e ao Conselho Popular, um grupo formado por membros de diversas favelas, defensores públicos e uma variedade de outros apoiadores. Nas reuniões do Conselho Popular, os moradores restantes da Associação de Moradores da Rádio Sonda compartilharam o que estava acontecendo em sua comunidade e começaram a aprender sobre seu direito à moradia. Por fim, o Conselho Popular ajudou a organizar dois grandes protestos nas ruas da Rádio Sonda para aumentar a conscientização sobre o que estava acontecendo dentro da comunidade isolada pelos muros da base militar.
Os esforços de resistência da Rádio Sonda continuaram a florescer até julho de 2017, quando outro morador e líder da Associação de Moradores da Rádio Sonda recebeu uma ordem de despejo da Aeronáutica pedindo que ele e sua família deixassem sua propriedade em 30 dias. Apesar de trabalhar com um defensor público, eles também foram removidos. Ao verem que a remoção direcionada a líderes comunitários não era à toa, a Associação de Moradores decidiu se dissolver. Um atual morador refletiu: “Quem tem coragem de ficar à frente, podendo se tornar o próximo?”
Após as duas perdas, a moral da comunidade diminuiu significativamente. Muitos moradores lutaram com problemas de saúde mental e foram medicados para problemas relacionados ao estresse. Muitos não tiveram forças para lutar e desconfiavam muito do processo legal. No entanto, os membros do Conselho Popular continuaram a incentivar a comunidade a lutar. Mais uma vez, a comunidade finalmente revitalizou seus esforços e iniciou uma parceria com defensores públicos que finalmente levaram o processo da Rádio Sonda à justiça. Desde então, a Rádio Sonda e outras comunidades que compõem o Conselho Popular realizaram vários protestos, afirmando seu direito à moradia adequada e aos serviços públicos básicos. Moradores da Rádio Sonda, ao lado de moradores de outras favelas localizadas em áreas pertencentes ao estado, como Horto, Araçatiba e Vila Hípica, falaram em uma audiência pública em Brasília para conscientizar autoridades federais sobre possíveis soluções para essa situação.
Lutas que continuam nos dias de hoje
Se a ordem de despejo federal emitida em 17 de julho fosse levada a cabo, as cinco famílias seriam deslocadas sem indenização e se encontrariam sem alternativas de moradia, com suas casas e propriedades inteiramente desapropriadas pela Aeronáutica. Além dessa ameaça eminente, moradores da Rádio Sonda continuam enfrentando vários problemas no dia a dia. Eles lutam para receber serviços básicos, como coleta de lixo, serviços de limpeza de ruas e outros serviços públicos, uma vez que a Aeronáutica impediu que pessoas de fora (até mesmo os trabalhadores da prefeitura) entrassem espontaneamente. Desse modo, a prefeitura raramente é capaz de fornecer serviços públicos na comunidade.
Além disso, a luta pela autorização impediu que a comunidade recebesse recursos importantes. Todos os visitantes e moradores devem ter um passe especial para entrar no complexo militar. Os membros da comunidade devem solicitar autorização e liberação da Aeronáutica em todos os casos, dificultando a passagem livre das entregas e dos visitantes da comunidade. Conforme observado em comunidades em todo o Rio, essas limitações impostas ao cotidiano dos moradores constituem táticas estrategicamente empregadas pelas autoridades para facilitar as remoções. Diante das dificuldades significativas vivenciadas na Rádio Sonda ao longo dos anos, a persistência e os esforços da comunidade para estar mobilizada continuamente são verdadeiras lições sobre a força da solidariedade e do apoio coletivo.