Desde 2015, os próprios dados da Prefeitura do Rio mostraram que 22.059 famílias (aproximadamente 77.000 indivíduos) em toda a cidade foram removidas das suas casas desde 2009, em nome de proteção ambiental, da retirada de pessoas de ‘áreas de risco’, urbanizações e infraestrutura de transportes, ou construção para megaeventos. Embora números exatos sejam difíceis de encontrar, sabemos que o número aumentou desde 2015.
Durante oito anos cobrindo as remoções no Rio, o RioOnWatch documentou uma série de táticas usadas pelas autoridades para separar as comunidades e pressionar moradores a deixarem suas casas. Este artigo reúne e analisa quatro táticas que se destacaram por aparecer repetidamente: 1) desinformação, 2) cortes de serviços, 3) ‘dividir para conquistar‘ e 4) ‘cavalo de Troia‘.
Nesta matéria, apresentamos alguns casos que ilustram cada tática, mas é importante lembrar que cada uma delas foi usada em inúmeras comunidades. A matéria também detalha como as comunidades resistiram a cada tática do governo, oferecendo referências concentradas para pessoas que sofrem ameaças de remoção atualmente.
1. Desinformação
Exemplos de desinformações nas remoções no Rio incluíram promessas falsas para permanecer, ameaças constantes de remoção sem execução, processos de negociação enganosos, promessas de não haver dívidas ou de ter melhores desfechos em habitações públicas que mais tarde se tornaram vazias ou até mesmo inexatas, e mudanças nas explicações sobre a necessidade de determinada remoção, entre outras. O que os diversos casos têm em comum é a criação de um clima de incerteza para moradores, que experienciaram estresse psicológico pois o seu estado de vulnerabilidade se prolongou durante meses e anos.
Talvez o caso mais infame de desinformação seja o tratamento da administração do ex-prefeito Eduardo Paes na Vila Autódromo, ao lado do Parque Olímpico na Zona Oeste. Em agosto de 2013, depois que a resistência inicial dos moradores demonstrou que não seriam forçados a sair tão facilmente, Paes comprometeu-se publicamente que aqueles que queriam ficar, poderiam ficar. Porém, nos meses seguintes, as autoridades municipais visitaram a Vila Autódromo e repetidamente tentaram convencer as pessoas a sair, insinuando que toda a comunidade acabaria sendo removida e que os moradores poderiam fazer um negócio melhor mais cedo do que mais tarde. Como um morador falou ao RioOnWatch em 2016, “Eles dão falsas declarações dizendo que todo mundo já negociou com a prefeitura, o que é uma mentira”. Os moradores também foram informados que poderiam imediatamente vender os apartamentos da habitação pública recebidos como compensação, mas descobriram depois que não era o caso. Várias outras comunidades também receberam este tipo de informação errônea sobre os apartamentos do Minha Casa Minha Vida. As famílias removidas da Rua Ipady, São Sebastião e da Vila União de Curicica foram informados que receberiam “chave por chave”—apartamentos em troca das suas casas demolidas—mas a prefeitura nunca lhes deu cópias dos contratos dos apartamentos e as famílias tiveram que contestar os encargos dos apartamentos.
110 ex-famílias residentes da Vila Autódromo que aceitaram os apartamentos Minha Casa Minha Vida entraram na justiça argumentando que o processo de negociação não foi justo. Durante todo o processo de remoções, um movimento forte de resistência mobilizou-se contra as desinformações, trabalhando com defensores públicos e acadêmicos para obter informações jurídicas exatas, manter os moradores informados, e desmascar as alegações do governo de que a comunidade deveria sair através do desenvolvimento de um Plano Popular que mostrava como a comunidade e o Parque Olímpico poderiam de fato coexistir. Moradores também atraíram uma significativa atenção da mídia local e internacional, o que lhes permitiu desafiar publicamente a narrativa da prefeitura de que quase todos queriam sair.
Moradores do Horto, uma comunidade com mais de 200 anos localizada atrás do Jardim Botânico na Zona Sul do Rio, estão lutando contra a remoção em um conflito prolongado com o Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico. Nos últimos anos, famílias individuais receberam ordens de despejo que declaram que tropas de choque poderiam chegar para demolir as suas casas a qualquer momento sem qualquer oferta de compensação. No final de 2016, a justiça deu 90 dias ao Jardim Botânico para remover toda a comunidade. Mas com a maioria destas “ordens” nenhuma remoção ocorreu (com uma notável exceção). Os moradores resistindo veem as repetidas ameaças como um método para estressar os vizinhos e fazê-los sair. Também tem havido uma escassez de comunicações oficiais sobre os planos de remoção. Às vezes, a informação sobre remoções chega através da polícia e da mídia e não pelo Jardim Botânico ou pelas autoridades públicas.
No caso do Horto, a desinformação também é dirigida para fora, pois o jornal O Globo, cuja sede encontra-se no bairro, e que tem ligações diretas com a administração do Jardim Botânico, também propaga desinformação sobre os moradores do Horto ao divulgar que eles são “invasores”, apesar da história da comunidade datar do início dos anos 1800.
Os moradores do Horto têm experiência com a resistência após décadas de luta, e têm agido contra as ameaças de remoção. Cerca de 200 famílias entraram com ações contra o Jardim Botânico, com advogados representando o seu caso em Brasília já que a terra está sob domínio federal. Organizado pela Comissão de Moradores, o movimento de resistência do Horto tem engajado tanto os moradores quanto apoiadores de fora em inúmeros protestos através dos quais afirma o direito dos moradores de permanecer e espalhar uma mensagem de união. Os moradores do Horto também desenvolveram e mantêm o Museu do Horto, que documenta a longa história da comunidade ao lado do Jardim Botânico, que é uma contestação pública à narrativa do O Globo.
2. Corte de Serviços
Cortar serviços públicos num bairro destinado à remoção é um método comum empregado pela prefeitura para pressionar moradores a sair, que traz consequências para a saúde mental e física dos moradores.
Após alegarem que era necessário mais espaço ao redor do Estádio do Maracanã durante os preparativos da Copa do Mundo de 2014, supostamente para um estacionamento que nunca foi construído, a vizinha Favela do Metrô teve múltiplas ondas de demolições que deixaram partes da comunidade em ruína. Depois que alguns moradores foram removidos, a prefeitura deixou casas semi-demolidas que acabaram sendo ocupadas por drogados sem-teto, e a grande quantidade de entulho atraiu mosquitos portadores da dengue e ratos. A prefeitura também deixou de fornecer serviços básicos como coleta de lixo, tornando difícil a vida dos moradores que ficaram.
Eventos na Beira Rio, Manguinhos, na Zona Norte, seguiram um padrão similar. A favela foi parcialmente demolida desde que as remoções começaram em 2009, supostamente para dar lugar aos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para beneficiar a comunidade. Conforme as demolições foram sendo efetuadas, o abastecimento de eletricidade e água era cortado sem aviso para as casas vizinhas. Os moradores que resistiram tiveram que morar entre lixo e entulho, e sem iluminação na rua e coleta de lixo, durante anos. A partir de 2016, sete anos após as remoções começarem na Beira Rio, mais de 1000 casas foram removidas e o morador Vanderson José Martins Guimarães nos contou que o governo continuou a cortar a eletricidade ou a água durante alguns dias, várias vezes, o que ele viu como um esforço contínuo para pressionar as, apenas, dez famílias remanescentes a partir.
3. Dividir para conquistar
Através da tática “dividir e conquistar“, as autoridades buscam dividir os moradores de uma comunidade para tornar as remoções mais viáveis. Em muitos casos no Rio, a prefeitura negociou com famílias individuais ao invés de deixar a comunidade negociar coletivamente. Isto permitiu que as autoridades pudessem oferecer compensação mais baixa ou usassem desinformações para pressionar as famílias a aceitar. As famílias temiam que os seus vizinhos estivessem negociando e que o resultado para eles seria pior se não negociassem também. Em alguns casos, a prefeitura aumentou a oferta de compensação até a família aceitar, mas em outros casos, como no Largo do Tanque, gradualmente reduziu as ofertas ao longo do tempo, pressionando os moradores a aceitar as ofertas rapidamente. Algumas famílias no Tanque foram informadas que deveriam aceitar a oferta inicial sem reclamar ou perderiam tudo. Também foram informados que se falassem com advogados não receberiam nada, criando assim medo, e assim os mantendo desinformados. Em muitas comunidades, uma vez que uma família negociasse, ela era removida rapidamente e a sua casa demolida, criando um sentido de flagelo no bairro, enfraquecendo a capacidade e vontade dos seus vizinhos de resistir.
Após as fortes chuvas que caíram no Rio em 2010, os peritos do governo argumentaram que Estradinha, em Tabajaras na Zona Sul, estava localizada em uma área de risco de deslizamento e devia ser removida. Preocupados com a avaliação do governo, a maioria dos moradores concordou em vender as suas casas para o governo, apesar do processo de negociação irregular e não regulamentado. Das 350 casas, 250 foram demolidas e os moradores restantes ficaram com o entulho.
Para resistir, os moradores restantes fizeram parceria com um grupo independente de advogados, arquitetos, engenheiros e estudantes, que efetuaram a sua própria avaliação mostrando que não havia risco de deslizamento e portanto nenhuma razão técnica ou legal para remoções. O engenheiro independente Mauricio Campos fez uma avaliação mais rigorosa do que a feita pelo governo, e concluiu que muitas das casas realmente não estavam em risco, e que a contenção era uma alternativa mais barata nos casos onde existe risco. Em 2013, quando o prefeito tentou negociar o reassentamento do restante da comunidade para condomínios da MCMV na Zona Norte, os moradores ficaram unidos e ninguém aceitou a oferta. Como a líder Irmã Fátima ressaltou, ficar juntos era essencial para combater a táticas ‘dividir para conquistar’, pois “enquanto uma casa estiver em risco de remoção, a comunidade inteira está em risco”.
Em outros casos, os moradores têm suspeitado que a prefeitura deliberadamente criou animosidade entre vizinhos. Em 2014 muitos moradores da Vila União de Curicica ficaram aliviados quando a prefeitura anunciou uma nova rota para as vias da BRT TransOlímpica que reduziria o número de famílias que seriam movidas de 881 para 191. Entretanto, o novo plano significou que aqueles que queriam e tinham aceitado a habitação pública não estavam mais qualificados para reassentamento. As mudanças causaram tensões dentro da comunidade, e alguns questionaram se o motivo real da mudança da rota era neutralizar o movimento de resistência até então bem sucedido. Mais explicitamente na Vila Autódromo, as autoridades municipais falsamente informaram a alguns moradores que queriam partir que os atrasos nos seus processos de reassentamentos ocorreram por causa de uma liminar judicial provocada pelo movimento de resistência, enquadrando os seus vizinhos como seus adversários.
4. Cavalo de Troia
A tática Cavalo de Tróia refere-se a casos nos quais as autoridades anunciam publicamente o cancelamento ou redução das remoções previamente planejadas, quando na realidade ainda esperam prosseguir com elas, embora através de um processo revisado. Os líderes das comunidades visadas começaram a desconfiar destes anúncios públicos como sendo uma tentativa de desativar o movimento de resistência. O anúncio acima-mencionado quanto à redução das remoções na Vila União de Curicica é um exemplo, e a declaração do Prefeito Eduardo Paes sobre a Vila Autódromo—que todos que quisessem ficar poderiam ficar—é outro.
Em outubro de 2017, na favela Rio das Pedras na Zona Oeste, um representante do novo Prefeito Marcelo Crivella prometeu à multidão que “não [haveria] remoções”, anunciando um afastamento da proposta do Plano Estratégico da Prefeitura de remover e reassentar uma grande parte da comunidade em apartamentos de arranha-céus na área. Entretanto, o novo projeto da prefeitura exigia obras de construções sobre as fundações de prédios existentes—o que os moradores temiam que poderiam destabilizar as casas—e uma linha de BRT pelo bairro, o que os moradores sabiam que tinha sido usada como justificativa para remoções em comunidades por toda a cidade.
Em cada caso de uma suspeita (ou confirmada) tática Cavalo de Troia, o elemento principal da resistência, para os líderes, tem sido manter os seus vizinhos informados quanto ao risco contínuo e manter-se organizados. A comissão de Rio das Pedras está certa da sua capacidade de permanecer forte frente às autoridades. Ela organizou eventos para informar aos moradores sobre os perigos de um novo plano da prefeitura e usa o grupo no Facebook com mais de 24.000 membros para reforçar a mensagem, compartilhar atualizações e comentários, e manter os moradores engajados ativamente nos problemas locais. O otimismo provem da confiança de que o movimento está lutando do lado certo—como a organizadora da comissão Andrea Ferreira disse: “A gente consegue mobilizar porque nossos argumentos são muito fortes… Quando a gente trabalha com a verdade, fica tudo mais fácil. Não precisa mentir, não precisa enganar”.