
Na noite de 31 de março de 2005, cinco policiais militares (alguns acusados de violência policial em ocasiões prévias) se reuniram em um bar no centro de Nova Iguaçu e, de lá, dirigiram entre Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense matando, a esmo, dezenas de pessoas. Segundo investigações, os policiais estariam revoltados com o comandante do Batalhão de Duque de Caxias à época, que havia punido os militares por desvio de conduta. Os cinco policiais diretamente envolvidos no massacre foram condenados. O último julgamento ocorreu em 2009, condenando um deles a 509 anos de prisão. No crime, que ficou conhecido como Chacina da Baixada, 29 pessoas—entre homens, mulheres, jovens e adultos, de 13 a 64 anos—foram brutalmente assassinadas por agentes de segurança do Estado.
A Chacina da Baixada, no entanto, ainda assombra os moradores da região. Em 31 de março de 2025, data em que se completou 20 anos do massacre mais violento do estado do Rio de Janeiro, mães e familiares das vítimas se reuniram em Nova Iguaçu e Queimados para prestar acolhimento mútuo, homenagear a memória das vítimas, e participar de ações de conscientização sobre violência do Estado. Nestes encontros, as famílias revelaram que, até hoje, temem que uma nova chacina, com o mesmo grau de violência, possa ocorrer a qualquer momento.
As atividades que marcaram os 20 anos da Chacina da Baixada incluíram uma sessão coletiva de acolhimento às mães e familiares de vítimas da violência do Estado no Instituto dos Servidores Municipais de Nova Iguaçu. Em Queimados, houve um ato na Praça Nossa Senhora da Conceição e uma audiência pública na Câmara dos Vereadores. Em todas as atividades, a tônica dominante foi a negligência do Estado com relação ao suporte funerário, financeiro ou com relação à saúde física e mental destas pessoas.
Moradora de Queimados e dona de casa, Kátia Patrícia da Silva é uma das familiares de vítimas da chacina que estava presente no ato de Queimados. Em 2005, ao sair de uma consulta médica em Edson Passos, bairro da cidade de Mesquita, rumo à sua casa, o ônibus em que estava passou em frente a um amontoado de pessoas. Ali, ela descobriu que o irmão, que havia acabado de completar 15 anos de idade, e o marido de sua prima foram baleados e mortos.
“Meu irmão levou um tiro na testa e ainda mataram o dono do bar ali perto. Quase que mataram uma criança de um ano que tava no colo da mãe. Só não mataram porque ela entrou rapidamente em casa”, lembra Patrícia. Ela afirma que, durante todos esses anos, nunca teve acesso a tratamento psicológico, o que a levou a desenvolver um quadro muito grave de diabetes.
O aumento de casos de diabetes é um queixa comum entre mães e familiares das vítimas. Isso porque a tensão permanente, provocada por episódios de estresse pós-traumático em função da perda súbita e chocante de seus entes queridos, desencadeia doses astronômicas de cortisol e a adrenalina, que, quando liberados pelo organismo de maneira excessiva, podem afetar os níveis de glicose no sangue.
Hoje, Patrícia precisa tomar três pílulas de um medicamento para a doença, alegando que não tem dinheiro nem força de vontade para frequentar uma academia de ginástica, uma das recomendações médicas para controlar casos de diabetes. Segundo Patrícia, sua mãe também tornou-se uma vítima da tragédia. Ela conta que, por conta da morte de seu irmão, sua mãe entrou em depressão profunda, vindo a falecer. Com o passar do tempo, o cansaço físico e mental desmotivaram Patricía a participar das caminhadas anuais na Rodovia Presidente Dutra em memória das vítimas da Chacina.
“As autoridades não querem saber da gente. Morreu, enterrou, acabou.” — Kátia Patrícia da Silva

Na Bandeira, uma Contagem Macabra e Dolorida
Já em Nova Iguaçu, cerca de 30 mães e familiares se reuniram no auditório do Instituto de Previdência dos Servidores Municipais na tarde do dia 31. O burburinho de vozes foi interrompido pela assistente social Luciene Silva, idealizadora das caminhadas anuais que aconteceram entre 2006 e 2020 e que, em seus últimos anos, compreenderam o trajeto que ia da Rodovia Presidente Dutra, na altura de uma concessionária de veículos, até a Rua Gama, no bairro Ipiranga. Luciene é mãe de Raphael, que tinha 17 anos quando foi assassinato na Chacina da Baixada. Além de ter idealizado a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense em 2018, Luciene, hoje, coordena o Núcleo de Atendimento Municipal a Vítimas de Violência de Estado e seus Familiares (NAMVIF), ligado à Secretaria Municipal de Assistência Social de Nova Iguaçu.
Como é de praxe em todos os eventos públicos onde a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense se faz presente, um banner do coletivo é disposto no local, apresentando o rosto de vítimas da violência. Quem acompanha com mais proximidade o cotidiano da Rede percebe que a peça tem sido frequentemente redimensionada. No início, o banner exibia as fotos das 29 vítimas da Chacina da Baixada. Com o passar dos anos, outras imagens foram incorporadas ao painel, que passou a incluir vítimas fatais de muitos outros crimes de brutalidade policial. Em sua versão mais recente, o banner de fundo amarelo estampa o rosto de 50 pessoas—número que, por conta da violência de Estado, não para de crescer.
“Nós vamos ter de conversar com o gráfico. Vamos ter de acrescentar mais dez fotos nessa bandeira. Só nos últimos 3 meses, eu atendi essas dez mães e prometi que os rostos de seus filhos estariam nessa bandeira também.” — Luciene Silva
O produtor gráfico em questão é Naire Ângelo, também parente de vítima de violência armada. Ângelo é tio de Rodrigo Tavares Raposo, soldado do Exército assassinado praticamente em frente à sua casa por um miliciano em 2015. Rodrigo tinha apenas 18 anos.
“O mais triste é que a maioria [das vítimas são pessoas] jovens demais, negras e de família pobre. Em muitos casos os corpos nem aparecem, ficam apenas como estatística. Cada vez que algum grupo ou familiar me pede pra fazer algum trabalho referente a homicídio, não tem como não lembrar do meu sobrinho, até porque ele trabalhou comigo por alguns meses. Era ele quem fazia esse atendimento na gráfica. Um garoto incrível, sempre atencioso com as pessoas” — Naire Ângelo
Neste encontro com as mães e familiares de vítimas de violência do Estado, Luciene ainda apresentou um breve porém cruel panorama dos primeiros três meses de 2025. Ela atendeu uma mãe que teve três de seus seis filhos assassinados (dois por traficantes, um pela polícia). Seus outros três filhos enfrentam, hoje, graves problemas de saúde mental em função das perdas violentas. As mortes aconteceram na comunidade Danon, em Nova Iguaçu. O território ganhou notoriedade em todo o Brasil em 2011, devido ao assassinato do menino Juan Morais e do adolescente Igor Souza Afonso, então, com onze e 17 anos de idade respectivamente. Quatro policiais militares que participaram da operação que matou estes jovens foram condenados.

A convivência com tantas mortes fragiliza a ativista e assistente social. Na reunião, ela lembra que o 31 de março é a data da morte de Raphael e, no próximo mês, o aniversário de morte do outro filho de Luciene, Ronny, que também morreu em circunstâncias violentas.
“Hoje, a minha saúde está debilitada. Eu tenho exaustão mental devido às lembranças anuais das mortes dos meus filhos. Eles jamais serão esquecidos, embora muitas pessoas achem que não temos de ter o direito à memória. Ninguém quer, mesmo nas famílias dessas mães e parentes, escutar a nossa saudade. Eles dizem que o tempo já passou, que temos que seguir com nossas vidas. Ninguém suporta a nossa solidão, o nosso cotidiano sufocante, com cuidados que se aproximam da paranoia com os nossos filhos e netos. Porque não queremos que mais ninguém morra.” — Luciene Silva
Poucas Redes de Apoio para Vítimas da Violência Urbana e de Estado
Elisabeth Oliveira, outra integrante da Rede de Mães da Baixada, também estava presente no encontro. Ela é mãe de Vitor Oliveira, morto em 17 de junho de 2018 por agentes de segurança do Estado lotados no 21º Batalhão da Polícia Militar de São João de Meriti. Para Beth, como é mais conhecida pelo grupo, todo o trabalho de engajamento, militância e cumprimento de agendas é atravessado pelo adoecimento mental.
“Nossa saúde mental, tanto minha quanto a de quase todas as integrantes da Rede de Mães da Baixada Fluminense, é muito fraca. Não temos auxílio psicológico e nem psiquiatra por parte dos governos para nos receitar os remédios necessários para que a gente não morra em vida.” — Elisabeth Oliveira
Mesmo com a saúde precária, no dia seguinte à reunião, Beth desembarcou em Brasília com representantes de outros movimentos sociais de favelas e periferias para participar do julgamento da ADPF 635, mais conhecida como a ADPF das Favelas, cuja ação questiona a política de segurança pública no Rio de Janeiro e busca medidas para reduzir a violência policial.
Em resposta à negligência do Estado, os familiares de vítimas e a sociedade civil organizada criaram dispositivos como as redes de apoio psicossocial. A quase inexistência de políticas de suporte às famílias reflete a falta de vontade política das autoridades para enfrentarem o problema que o próprio Estado cria, seja de forma direta, através das forças policiais e sua omissão na investigação dos episódios de violência policial, seja de forma indireta, quando, depois de chacinas e execuções extrajudiciais, o Estado falha na criação e/ou aplicação de políticas públicas robustas para o atendimento às famílias das vítimas, “que morrem em vida”.
No entanto, algumas iniciativas mostram que, embora não seja um trabalho fácil, é possível oferecer suporte a quem sofre com essas perdas, inclusive, com apoio da sociedade civil. Em 15 de dezembro de 2021, por exemplo, a prefeitura de Nova Iguaçu, em conjunto com organizações, movimentos e membros da sociedade civil, lançou o Núcleo de Atendimento Municipal a Vítimas de Violência de Estado e seus Familiares (NAMVIF), projeto pioneiro no Brasil, vinculado à Secretaria de Assistência Social da cidade.
“Num primeiro momento, convocamos todas as secretarias que pudessem partilhar desse nosso trabalho, além de várias representações da sociedade civil, pois não é um trabalho que se faça sozinho. Estamos conseguindo sensibilizar os profissionais que trabalham nos equipamentos da Assistência Social, como os CRAs e os CREAs. Mas é um trabalho lento. Infelizmente, muitos técnicos que fizeram as oficinas de capacitação para mães e familiares vítimas da violência urbana e de Estado não estão mais em Nova Iguaçu e vamos ter de pensar em como vamos remanejar todo esse processo de novo. E ainda há um novo preenchimento de postos de trabalho, já que teve concurso público da prefeitura na área de Assistência Social. Vamos ter de recomeçar praticamente do zero.” — Luciene Silva
Os desafios para um atendimento humanizado e efetivo, no entanto, ainda são imensos. É o que diz Adriano de Araujo, coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, uma das organizações da Baixada Fluminense que realizou o trabalho de articulação e incidência política com a Rede de Mães para a criação do NAMVIF:
“Mudanças na gestão e nas orientações após cada pleito eleitoral, grande carga de trabalho dos técnicos e servidores da assistência social, insegurança pessoal e profissional diante de um projeto inovador, e por isso mesmo, sem certezas e referências já consolidadas, e o próprio medo natural de lidar com um tema como a violência letal e os desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense.” – Adriano de Araujo
Além do NAMVIF, surgiu, em 2022, a Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (RAAVE). O projeto é uma extensão do trabalho realizado pela equipe psicossocial do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. O advogado Guilherme Pimentel, um dos coordenadores da RAAVE, explica que, além de se articular com as políticas do SUS e do SUAS, as organizações presentes nesta rede são acolhidas com relação à garantia de direitos.
“Um dos objetivos da RAAVE é produzir saúde psicossocial para que a capacidade de luta seja fortalecida. Ela é mais uma proposta sobre os modos de fazer esse tipo de atendimento e reconhecer que essas pessoas atendidas são produtoras de conhecimento e formuladoras de políticas públicas também.” — Guilherme Pimentel

E Se a Chacina Fosse em Copacabana ou no Leblon?
O ato em Queimados se encerrou com participantes acendendo 29 velas em homenagem às vítimas da Chacina da Baixada. Em seguida, cerca de 30 pessoas, muitas delas moradoras da região e representantes de ONGs locais como o Espaço Cultural Kunta Kinte, se dirigiram à Câmara dos Vereadores de Queimados para uma sessão solene sobre a violência na região. Um dos convidados do evento, o advogado e defensor de direitos humanos Rodrigo Mondego, salientou a perversidade institucional de quem deveria zelar por vidas:
“Quem deveria coibir os crimes acabou cometendo o pior deles, que é o crime de assassinato. A Baixada Fluminense tem um histórico de mortes desde muito tempo. E o maior massacre ocorrido na região foi causado por pessoas que deveriam impedir que mais mortes acontecessem.” — Rodrigo Mondego
Ele também lembrou como a geografia de uma cidade periférica é determinante para alimentar o que ele chamou de seletividade de repercussão. Segundo o advogado, quanto mais afastado dos centros econômicos e de poder, menos a narrativa midiária mainstream reporta e cobra do Estado respostas.
“A maior chacina do estado do Rio completou 20 anos e eu não vi um grande portal de notícias ou um grande canal de televisão fazer uma reportagem de fôlego sobre o caso. E olha que o número de crianças mortas foi maior do que o da Chacina da Candelária, mas a repercussão dessa última foi infinitamente maior, porque foi no centro da cidade do Rio, do lado de um cartão postal. E não em uma cidade da Baixada Fluminense. Imaginem a repercussão midiática se fossem 29 chacinados em Copacabana ou no Leblon?” — Rodrigo Mondego
Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.