Técnica Aliada à Vida: 1º Encontro Nacional de Arquitetura Comunitária Aponta Protagonismo Feminino e Potência da Luta Coletiva Como Caminhos Para Direito à Cidade e à Moradia

Mesa redonda do último dia do ENAC, com a bandeira do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Foto: Aline Marieta
Mesa redonda do último dia do ENAC, com a bandeira do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Foto: Aline Marieta

Entre 11 e 14 de novembro de 2025, realizou-se o 1º Encontro Nacional de Arquitetura Comunitária (ENAC) na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre memórias, denúncias e resistência, o ENAC reuniu mulheres, arquitetos, quilombolas e moradores de favelas do Brasil, revelando como estes grupos estão definindo a arquitetura no país.

Eu mesma, arquiteta e cria na Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, cresci vendo a cidade (a favela) nascer aos poucos: no cimento e no tijolo improvisado, nos mutirões de domingo, na gambiarra que aparece onde o Estado falta, na laje molhada que fecha o dia. Antes de estudar arquitetura, eu era a menina que observava as paredes subirem e que andava pelas ruas observando cada detalhe das fachadas. Famílias inteiras que erguiam e erguem até hoje, com as próprias mãos, o sonho de um teto.

Na faculdade, descobri que aquilo tinha um nome: autoconstrução. Mas descobri também que esse saber popular raramente era tratado como conhecimento técnico. Chegar ao 1º Encontro Nacional de Arquitetura Comunitária (ENAC) foi reencontrar minha origem—e perceber que, ali, minha trajetória não era exceção.

Mulheres que Constroem Territórios

A mesa de abertura “Arquitetura Comunitária: da teoria à prática”, foi inteiramente composta por mulheres—algo profundamente simbólico. Sobretudo porque são elas que, historicamente, organizam ocupações, articulam redes de cuidado, mantêm territórios vivos e sustentam as lutas por moradia digna. Além disso, são elas que estão na luta por espaços mais inclusivos e acessíveis para todos.

Entre essas mulheres, estava Iara Falcade, arquiteta paranaense, autista e integrante do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Paraná (Sindarq-PR). Ela ressaltou o valor da presença de mulheres em projetos de arquitetura comunitária, que ganham autonomia e deixam de depender de homens para fazer pequenos ajustes em seus lares.

Iara foi convidada para participar da organização do ENAC após apresentar um trabalho no Encontro Latino de Arquitetura Comunitária (ELAC) de 2024. Ela diz ter sido uma experiência “surreal” fazer parte da mesa de abertura com mulheres tão inspiradoras e ter se sentido abraçada pela sala—um espaço onde pôde ter, como definiu, “uma prosa sincera”. Para ela, o ENAC tem uma “temporalidade própria”: quatro dias intensos que refletem um ano inteiro de construção coletiva, cujo as reverberações permanecerão vivas.

Mesa Redonda 'Arquitetura Comunitária Luta em Movimento'. Foto: Aline Marieta
Mesa Redonda ‘Arquitetura Comunitária Luta em Movimento’. Foto: Aline Marieta

A mesa trouxe denúncias sobre a insuficiência da Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), a distância entre técnicos e territórios, o descompasso entre ensino e prática e a violência institucional que atravessa as comunidades, tanto do Rio de Janeiro quanto de outros estados do Brasil e do mundo.

Arquitetura Comunitária como Superação da Negação de Direitos

Ao longo do evento, o conceito de Arquitetura Comunitária se consolidou em quatro pilares fundamentais:

  1. Participação real e transversal dos moradores nos processos;
  2. Respeito às dinâmicas territoriais e culturais;
  3. Reconhecimento das práticas populares e da memória construída no território; e
  4. Projetos que nascem da escuta, não da imposição técnica.

O evento reforçou o papel da Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS), garantida pela Lei Federal nº 11.888/2008, que assegura que famílias com renda de até três salários mínimos (em 2025, o equivalente a R$4.554) possam acessar, gratuitamente, projetos e acompanhamento técnico para construção, reforma e regularização de suas moradias.

No entanto, o ENAC reforçou que o que existe hoje no papel ainda está longe de alcançar os territórios onde a vulnerabilidade social é maior. Sem orçamento municipal, sem editais acessíveis e sem vontade política, o direito à ATHIS se perde antes de se traduzir em portas, telhados, paredes e construções mais seguras.

Oficina mostra que moradores não só podem, como devem participar, inclusive, do desenho do projeto de suas moradias, desde a planta-baixa. Foto: Aline Marieta
Oficina mostra que moradores não só podem, como devem participar, inclusive, do desenho do projeto de suas moradias, desde a planta-baixa. Foto: Aline Marieta

Para quem cresceu em territórios autoconstruídos, como eu, essa realidade não surpreende: onde o Estado falta, sobra ao povo reagir e prover, a partir de sua potência, tecnologias sociais e saberes ancestrais.

Essa potência periférica, no entanto, não deve ser confundida com a superação da negligência do Estado. É preciso deixar evidente que políticas públicas, orçamento e legislação são fundamentais e funcionam em conjunto com a potência comunitária das favelas e periferias.

Experiências que Transformam Territórios

Das diversas experiências apresentadas no ENAC, três reforçam que arquitetura é muito mais que técnica. É, sobretudo: cuidado, política e vida.

A primeira é a Lanchonete-Lanchonete, localizada na Gamboa, no Centro do Rio de Janeiro e atuando com crianças e jovens fora do horário escolar. Amanda Arcuri, integrante e porta-voz da Lanchonete-Lanchonete, trouxe à tona a importância de espaços de acolhimento dentro das comunidades. A experiência da Lanchonete-Lanchonete mostrou como comida, cultura, cuidado e território se entrelaçam. É um espaço que funciona como o que urbanistas chamam de “terceiro lugar” (o primeiro lugar é o lar, o segundo, o trabalho, e o terceiro é o espaço coletivo). Uma arquitetura voltada para a convivência, para a formação e o aprofundamento de vínculos.

Poder ser um espaço de pertencimento para a comunidade local é um dos valores defendidos pela Lanchonete–Lanchonete. Foto: Aline Marieta
Poder ser um espaço de pertencimento para a comunidade local é um dos valores defendidos pela Lanchonete–Lanchonete. Foto: Aline Marieta

A mesa também movimentou debates potentes sobre famílias que se reconfiguram, moradias coletivas entre amigos, habitação para pessoas trans, banheiros públicos inclusivos e a necessidade de arquitetos se libertarem do modelo ultrapassado de “família padrão”, questionando o urbanismo cisheteronormativo e abrindo espaço para novas formas de viver.

A terceira iniciativa a ser destacada foi a das assessorias técnicas. Na mesa dedicada a discutir o tema, Heloisa Marques, da Coletiva de Assessoras Populares do Rio, destacou a atuação de equipes multidisciplinares—compostas majoritariamente por mulheres—que trabalham em territórios populares do estado. Heloísa Marques ressaltou a importância das trocas metodológicas com grupos de todo o país; e a necessidade de fortalecer a atuação técnica para garantir a reprodução digna da vida.

O Protagonismo Feminino como Fio Condutor do ENAC

As falas vieram de mulheres muito diversas: quilombolas, mães solo, arquitetas, estudantes, lideranças de favelas e de movimentos de moradia. Todas abordaram temas recorrentes—e urgentes, como a exaustão dos deslocamentos longos, a falta de equipamentos públicos básicos, a sobrecarga do cuidado, a vida sustentada pela rede comunitária, as diversas violências e assédios sofridos pelas comunidades, e a moradia como eixo da existência.

Essas narrativas dialogam com o livro Cidade Feminista – a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens, de Leslie Kern, que explica como a cidade moderna foi desenhada para um “homem padrão”, não para mulheres que carregam filhos, enfrentam assédio, conciliam o cuidado e o trabalho e dependem da comunidade para sobreviver.

Quando Memória e Saber Comunitário Vira Planta

Uma das oficinas oferecidas durante o ENAC foi a “Casinha do Propósito”. Participantes analisaram diferentes plantas baixas (desenhos das casas, do ponto de vista superior) para entender como determinados desenhos incentivam o isolamento, enquanto outros favorecem a convivência.

Participantes refletem sobre isolamento e convivência por meio das plantas da oficina ‘Casinha do Propósito’. Foto: Aline Marieta
Participantes refletem sobre isolamento e convivência por meio das plantas da oficina ‘Casinha do Propósito’. Foto: Aline Marieta

O contraste era evidente: plantas padronizadas eram fechadas, frias e individualistas. Plantas desenhadas com a participação das comunidades eram abertas, afetivas e conectivas.

Microfone Aberto, Megafone Coletivo

O último dia do evento foi dedicado às mulheres representantes de movimentos por moradia de todas as regiões do Brasil. A proposta era de microfone aberto, mas o que se ouviu foi um megafone coletivo. As falas tocaram em temas como negligência do Estado, despejos e violências institucionais, apagamentos históricos, a necessidade de ocupar e viver os centros das cidades, e a urgência da participação direta na formulação das políticas de moradia.

“Não precisamos que falem por nós. Precisamos que nos ouçam quando falamos.” — Lurdinha Lopes, Movimento Nacional de Luta pela Moradia Brasil

Além disso, o olhar da nova geração apareceu na fala de Thalles Amaral, estudante da FAU-UFRJ e integrante do Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo – Abricó da UFRJ. Para ele, o ENAC é essencial para trocar metodologias e aprender estratégias de tradução: transformar o “tecniquês” da arquitetura em linguagem acessível.

Segundo Thalles, o Brasil é um país autoconstruído e isso precisa ser reconhecido, valorizado e apoiado tecnicamente pelo Estado. Sua esperança é que a ATHIS se torne obrigatória na formação de arquitetos.

Panfleto do evento. Foto: Aline Marieta
Panfleto do evento. Foto: Aline Marieta

Como arquiteta e cria de favela, deixei o ENAC com a sensação de carregar uma cidade inteira dentro de mim. Voltei pra casa entendendo que minha história—marcada pela autoconstrução na Maré—não é exceção e é completamente compatível com a minha trajetória acadêmica enquanto arquiteta.

Meu chão favelado, nossos saberes e tecnologias sociais são ferramenta e fundamento. A Arquitetura Comunitária que encontrei ali não é filantropia, nem romantização da precariedade. É a prática arquitetônica da coletividade. É mutirão e laje molhada finalmente chegando na academia. É categoria do pensamento arquitetônico periférico. É técnica, política, disputa e afeto.

Sobre a autora: Aline Marieta é arquiteta e filha da Maré. Cresceu entre vielas, lajes e histórias de autoconstrução que moldaram seu olhar para o mundo — um olhar que entende a casa como abrigo, cura e resistência. Entre técnica e afeto, escreve no RioOnWatch a partir da vivência: o corpo que sente a cidade, a voz que reivindica dignidade e o coração que acredita que toda pessoa merece morar com respeito, beleza e pertencimento.


Apoie nossos esforços para fornecer apoio estratégico às favelas do Rio, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatchdoe aqui.