‘As Mídias Faveladas São um Braço da Democracia’: Na Rocinha, Justiça Climática para Favelas É Pauta da 3° Conferência de Jornalismo de Favelas e Periferias

'Um Jornalismo que Faça Sentido e que Revolucione'

3ª Conferência de jornalismo de favelas e periferias reúne lideranças de mais de 12 estados brasileiros na Rocinha. Foto: Igor Siqueira
3ª Conferência de jornalismo de favelas e periferias reúne lideranças de mais de 12 estados brasileiros na Rocinha. Foto: Igor Siqueira

Entre 30 de outubro e 1 de novembro de 2025, a Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro, recebeu a 3ª Conferência de Jornalismo das Favelas e Periferias, encontro nacional que promoveu uma imersão em jornalismo e clima para comunicadores e lideranças de mídias comunitárias de diferentes favelas e periferias do país. 

O encontro promoveu capacitações e palestras que discutiram os desafios da comunicação popular, como financiamento, políticas públicas, clima nas favelas e mobilização em territórios, além de debates sobre justiça climática nas favelas.

Com o tema “Justiça climática para as favelas e periferias”, o evento gratuito foi coorganizado pelo Fala Roça da Rocinha e pela Agência Mural de São Paulo, o que conferiu ao encontro uma proposta inédita: a reunião de coletivos de mídia de diversos estados para discutir a garantia de justiça climática em favelas em nível nacional. 

Além disso, segundo Tatiana Lima, coordenadora de jornalismo e editora-chefe do Fala Roça, o novo formato desta edição permitiu a reflexão coletiva sobre os obstáculos ambientais enfrentados pelas comunidades de todo o país, já que há poucos espaços destinados a discutir as questões que envolvem favela e meio ambiente.

“A nossa [perspectiva de favela] sobre a justiça climática passa pelo acesso a direitos e políticas públicas de forma dimensionadas. Não só mitigação e contenção para as mudanças climáticas e tudo que [isso] traz, mas o racismo estrutural que as favelas e periferias enfrentam e que, com as mudanças climáticas, se potencializa para o [pior]. Quando é que a gente tem um espaço da gente, para a gente escutar de dentro e para dentro? Quase nunca, né? As mídias periféricas e faveladas, as mídias locais, são também um braço da democracia. Nosso ecossistema, ele complementa outros ecossistemas. Às vezes vai convergir ou divergir. Nós participamos desse ecossistema, mas também temos o nosso próprio, que precisa ser sustentável, se financiar, pensar em políticas públicas. Será que a solução que aconteceu lá no território ‘X’ cabe na Rocinha? Será que a solução da Rocinha ajuda o território no Amapá?” — Tatiana Lima

A comunicação comunitária e as questões climáticas foram temas que pautaram as discussões da conferência. Foto: Amanda Baroni
A comunicação comunitária e as questões climáticas foram temas que pautaram as discussões da conferência. Foto: Amanda Baroni

Comunicação Ancestral para Atender às Demandas Atuais

Pensando nisso, a forma de se comunicar e se conectar também importa. A oficina “Comunicação Ancestral para Futuros Possíveis”, facilitada por Lene Ferreira, jornalista pernambucana do portal Afoitas, compartilhou dicas para construir uma comunicação assertiva, primordial para aproximar comunidades das discussões climáticas neste momento de sociedade hiperconectada, mas, por vezes, distanciada do seu próprio entorno.

“Eu não vejo como fazer jornalismo sem ter uma relação direta com quem está nesses territórios, principalmente os que sofrem com violação de direitos… Nossa profissão é uma prestação de serviço para a sociedade. Exige da gente muita responsabilidade e compromisso com a população periférica, especialmente quem tá na base da pirâmide sofrendo inúmeras violações ao longo da História. A comunicação é uma forma da gente conseguir construir reparação pro povo preto desse país, que já foi tão humilhado, desassistido, abandonado.

Para fazer uma comunicação que sirva para essa população, a gente não tem como fazer se não for conectado com os saberes, os fazeres e práticas [cotidianas] dos territórios. Com as pessoas que estão, de fato, ativando as suas comunidades através da cultura. Cada vez que a gente para pra pensar sobre o jornalismo e refletir sobre o papel dele, isso nos obriga e nos exige um papel mais atuante e mais ativista, no sentido de proporcionar que as [nossas] pautas sejam mais difundidas. Não tem como fazer isso se a gente não tiver perto dessas populações. A comunicação ancestral propõe essa reconexão com os territórios, essa reconexão com as pessoas para que, a partir dela, a gente consiga fazer um jornalismo que faça sentido, que produza significados e que também revolucione.” — Lene Ferreira

Leonardo Nogueira, morador de Santa Cruz, na Zona Oeste, e jornalista no Data Labe, deu exemplo da cultura dos alto-falantes e como meios consolidados, com os recursos tecnológicos de hoje, podem contribuir com esta missão.

“As tecnologias são coisas que têm que coexistir, não uma sobrepor à outra. O rádio, por exemplo, é uma comunicação ancestral, feita por pessoas antes da gente, que a gente utiliza hoje para determinados fins em nossos territórios. Conectar comunicação e ancestralidade é pensar como a gente pode comunicar melhor a nossa existência, e também como a gente pode comunicar melhor para as pessoas em quem a gente quer chegar, para as pessoas [com quem] a gente quer falar.” — Leonardo Nogueira

As oficinas promoveram intercâmbio entre coletivos de diferentes estados, disseminando capacitações e estratégias para comunicadores comunitários. Foto: Igor Siqueira
As oficinas promoveram intercâmbio entre coletivos de diferentes estados, disseminando capacitações e estratégias para comunicadores comunitários. Foto: Igor Siqueira

Apesar da importância destes veículos e de sua relevância para a inserção da pauta climática em favelas, há obstáculos enfrentados por quem atua na comunicação comunitária.  

Comunicação Comunitária É Ser Parte Da Solução 

A comunicadora Elize Mayara, do Coletivo Jovem Tapajônico, de Belém do Pará, diz que abordar o tema com suas comunidades exige um trabalho de mobilização e sensibilização para além do trabalho de comunicar: é ser parte da solução, já que muitos ainda não associam problemas vividos à crise climática.

“Penso que, para a gente chegar dentro do território e falar de justiça climática, a gente primeiro tem que mostrar as injustiças climáticas que nós sofremos, né? Porque a gente chega na base e fala: ‘Ah, eu vou falar aqui sobre justiça climática.’ E a galera fala assim: ‘Ah, para mim, mudança climática acontece quando o gelo derrete lá fora.’ Então, pra gente começar a entrar nesse debate de mudança climática e mostrar que ela é real, que ela não é inventada, a gente começa a falar [dos problemas] primeiro. No meu território, a gente tá vendo a questão do nível de mercúrio no sangue das pessoas, que está muito alto, e estão fazendo um estudo sobre isso, [levantamento de] dados. Mas, e depois, o que acontece com essas pessoas? Como é que resolve? Qual o número de pessoas afetadas? O que a gente vai fazer? Eu fico em situação de pensar no meu estado quanto a isso. Porque nós, enquanto coletivo, recebemos pouco, quase não temos financiamento, porque para vocês aqui [no Sudeste] já é difícil chegar, imagina para nós, né?” — Elize Mayara

Falta de Financiamento Limita Alcance da Comunicação Popular Climática

A falta de financiamento e de políticas públicas foram temas abordados no encontro, como principais gargalos para quem tem projetos de comunicação popular. Apesar da sua importância e nicho comunicativo singular e urgente, muitos veículos comunitários vivem na corda bamba para garantir a sobrevivência.

A dificuldade de captar recursos faz com que muitos dependam de editais, algo que, de acordo com Fernanda Calé, cria de Rio das Pedras, na Zona Oeste, e cofundadora do portal Agência Lume, nem sempre é possível.

“A gente vê editais que cobram questões complexas, outros nem tanto, mas, às vezes, [a aprovação de fato] fica muito no campo da subjetividade, né? A gente [da Agência Lume], por exemplo, aplicou em mais de 15 editais e a gente não teve retorno [o que comprometeu a sustentabilidade do projeto]. [Então] como é que a gente pensa essa lógica para sair da [dependência] do edital? No final, não tem como todo mundo ganhar. Além de debater como acessar a filantropia—que é super importante, como um edital também é, e a gente faz esse debate em todos os congressos—como a gente constrói uma nova estratégia? É claro, isso é uma mudança de paradigma, é quase inventar um novo, a gente tá todo mundo aqui pensando nisso, mas como a gente pode também focar nossa atenção em como mudar essa lógica? Qual lógica a gente pode construir nesse sentido? Às vezes um apoio pequeno para alguém pode ser um apoio interessante para outros [projetos de mídia] que estão iniciando.” Fernanda Calé

Nesse sentido, Daiene Mendes, cria do Complexo do Alemão, na Zona Norte, e diretora do Fundo de Apoio ao Jornalismo, no Rio de Janeiro, explica que a filantropia tem sido uma alternativa para a sustentabilidade de mídias comunitárias. Mesmo assim, ela afirma que a maior ferramenta para essa mudança é promover esses espaços de troca, onde o acesso a informações circule dentro das comunidades.

“Filantropia é uma lógica que opera por confiança. Você estabelece uma confiança com uma pessoa. É relacionamento. Quem é que tem acesso à filantropia [historicamente]? Tem acesso quem se encontra na praia do Leblon. Um jantar, que depois vai para um show na praia de Flamengo. Não tem matemática complexa, essa é a dinâmica. Historicamente, esse espaço foi muito restrito. Se a gente for olhar historicamente, as organizações de jornalismo que receberam recursos da filantropia são organizações com perfil muito específico, né? São essas organizações historicamente brancas, historicamente elitizadas. E aí, para ressaltar, uma coisa muito interessante é essa mesa [que estamos agora]: a diversidade colocada nessa mesa, ela impacta em quem o recurso vai chegar. Porque, a partir do momento em que chega na nossa mão, pessoas de pouco dinheiro, mas com perspectivas de compromisso com o território, [esse cenário muda].” — Daiene Mendes

Enfrentando dificuldades de financiamento, comunicadores refletem sobre como tornar seus projetos sustentáveis. Foto: Igor Siqueira
Enfrentando dificuldades de financiamento, comunicadores refletem sobre como tornar seus projetos sustentáveis. Foto: Igor Siqueira

‘Enquanto Houver Racismo Ambiental, Não Tem Justiça Climática’

Segundo Osvaldo Lopes, produtor executivo do Fala Roça, o evento é um marco para firmar o jornalismo comunitário como autoridade na comunicação popular e uma referência às diretrizes de como esse trabalho deve ser feito para atender às demandas das favelas.

“Esse ano, a gente parte dessa comunicação dos nossos territórios com os territórios de ‘co-irmãos’, que é como eu gosto de chamar. Fazer esse movimento nacional para fortalecer essa construção de rede é muito importante, porque mostramos para a mídia hegemônica que também somos jornalistas profissionais, de qualidade, e comunicamos em nossos territórios. Chegou a nossa vez de contar e narrar as problemáticas, as vivências, as vitórias dos nossos territórios a partir do nosso olhar. Então, desde 2022, que a gente tá fazendo essa conferência, a gente vem aprendendo e sistematizando tudo [isso] para construção de um relatório extenso e bem diverso a partir desses territórios de cada estado, para pautarmos [como deve ser feita] essa comunicação de base e [qual] a qualidade de jornalismo que a gente tanto precisa.” — Osvaldo Lopes

Compondo as discussões da mesa “O que é justiça climáticas para os nossos territórios estava, entre outras lideranças da área, Antônio Firmino, cofundador do Museu Sankofa Rocinha responsável pela realização da Roda de Memória Climática da Rocinha.

Ele conta que, devido à falta histórica de serviços de saneamento básico na Rocinha, moradores iniciaram, nos anos de 1970, uma mobilização para a recuperação de valões da comunidade, ação que permitiu a instalação de uma unidade básica de saúde na Rocinha, o que evidencia como as mobilizações coletivas promovem mudanças e melhorias na comunidade. A conferência, ele diz, é uma delas.

“Para que a Rocinha não fosse removida nos anos 1970, os moradores começaram a fazer limpeza das valas, onde eram os cursos naturais das águas, da chuva ou das nascentes… Os moradores começaram o mutirão de limpeza das valas, o que foi um bem comum para todo mundo. [Essa luta] trouxe para a Rocinha uma unidade de saúde que, hoje, tem 43 anos… Falar de justiça é falar dos direitos básicos. Essa ausência [do investimento público em melhorias], as raras políticas públicas, nesse sentido, nos afeta cotidianamente. Como nós queremos uma justiça climática se não há uma preocupação com o saneamento básico desse país? Alguém tem uma preocupação para onde vai o lixo depois de pôr numa caçamba ou na lixeira?… A gente só se desfaz do resíduo, mas a gente também tem uma responsabilidade. Enquanto houver racismo ambiental, não tem justiça climática.” Antônio Firmino

Mobilizadores compartilham desafios enfrentados, comuns a diversos territórios. Foto: Igor Siqueira
Mobilizadores compartilham desafios enfrentados, comuns a diversos territórios. Foto: Igor Siqueira

Para a social media e moradora da Rocinha, Isabelle Trindade, a proposta de realizar uma conferência de comunicação na Rocinha é uma estratégia que representa o primeiro passo para a justiça climática: a inclusão da favela no debate.

“A gente precisa ter um local de fala, a gente precisa falar sobre a nossa realidade. E a gente sempre vê as grandes mídias falando sobre o que elas pensam, sobre o que elas acham e, às vezes, não é o que realmente se aplica onde a gente mora, onde a gente vive. Então, é muito importante a gente conseguir falar e dar local de fala às pessoas que pertencem àquele território. Precisamos entender que a gente faz parte dessas discussões e do [meio] ambiente. Temos que cuidar de onde a gente vive, estar ciente do que podemos fazer para mudar a realidade climática, que tá cada vez mais nociva e impactante. Daqui a pouco, a gente não vai conseguir mais ter um futuro se a gente não olhar para a realidade que a gente vive [agora].” — Isabelle Trindade

Ao todo, o evento reuniu cerca de 200 pessoas, entre quase 60 coletivos de mídia independente, vindos de 12 estados do Brasil, sendo eles: Bem TV, PPG Informativo, Fórum Grita Baixada, Agência Lume, O Catarinão, Site da Baixada, Voz de Guadalupe, Coletivo Jovem Tapajônico, Tapajos de Fato, Rede Wayuri, Abaré Escola de Jornalismo, O Varadouro, Coletivo Utopia Negra Amapaense, Instituto Eficientes, Afoitas, Sargento Perifa, Nordeste Eu sou, Mangue Jornalismo, Coar Jornalismo, Desenrola e Não Me Enrola, Nós, mulheres da Perifeira, Manda Notícias, Coneccta Cabana, Site Coreto, Perifa Connection, NPC – Núcleo Piratininga de Comunicação,  Voz das Comunidades, Notícia Preta, Território da Notícia, Podcast Pé no Ouvido, Periferia em Movimento,  Calango Notícias, TV Bonja, Retratos de Favela, TV Comunidades, TV Quilombo, Jornal O Pedreirense, Rede Tumulto, Mojubá Mídias e Conexões, Conquista Repórter, Rede Kalunga Comunicações, Tec Perifa, Rádio Favela, O Cidadão, Fala Akari, Fala Manguinhos, CDD Acontece, Favela em Pauta, Maré de Notícias, Entre Becos, Desterro – Observatório de Violência em Florianópolis, Canal Meio  e A Terceira Margem da Rua. Além disso, o encontro contou com um show de encerramento do grupo de pagode Os Caramelos.

Também marcaram presença a Ministra Anielle Franco, Ministério da Igualdade Racial, entidades e organizações da sociedade civil como a Rocinha 2030, Fundação Itaú, Fundo de Apoio ao Jornalismo (FAJ), Pulitzer Center, Repórteres Sem Fronteiras, Consulado Americano, Artigo 19, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Bem-Te-Vi Diversidade, Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, Redes do Beberibe, Coletivo de Comunicação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, Redes da Maré, Instituto Papo Reto, Instituto Decodifica, Frente de Mobilização da Maré, Latina Pé no Chão, Secretaria de Meio Ambiente do Estado RJ (SEAS), Instituto Cultura, Comunicação e Incidência (ICCI), Fundação Konrad Adenauer (KAS), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da ONU e Rota do São Benedito.

Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é formada em jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau, no Complexo da Maré.


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