
Esta matéria marca o Mês da Consciência Negra de 2025 e faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva e a luta cotidiana dos moradores pelo direito a uma vida plena.
Quase todo dia, era certo encontrar Dona Pascoalina, como era conhecida Pascoalina Oliveira da Silva, sentada na cadeira fora de casa tomando um banho de sol. Era o que ela gostava de fazer para ver o vai-e-vem de moradores à beira de sua porta, na Rua Nova, uma das localidades do Morro do Borel, na Tijuca, Zona Norte do Rio.
Todos os que passavam por ela faziam questão de cumprimentá-la. Seu passatempo era tirar do bolso um pacote de fumo de rolo (um tipo de tabaco) e acender seu cachimbo. “Beber um pouco, fumar um cachimbo e comer comida saudável”, segundo a matriarca do Borel, era o segredo para sua longevidade. Ela morreu aos 88 anos, em novembro de 2019, no Mês da Consciência Negra, de forma natural. Mas não se sabe sua idade exata. Isso porque ela tinha dois registros de nascimento com datas diferentes. Nem sua família sabe ao certo.
Seu cachimbo foi trocado várias vezes ao longo dos anos. Segundo Dona Pascoalina, “não tem muito tempo [desde a última troca], não. Eles racham de um lado, racham do outro. Aí, eu vou cortando ele assim pra tirar o coisinho [alguma coisa dentro do cachimbo]. Aí, eu fico lá, deitada na cama. Vem uma fumacinha. Tem hora que ele não quer acender, eu xingo ele, vivo com ele”.
Em uma entrevista realizada em julho de 2019, último ano de sua vida, ela compartilhou um pouco de sua história, como uma mulher negra que deixou sua família no campo para vir ao Rio de Janeiro trabalhar e tentar uma vida melhor. Nascida no interior de Minas Gerais, Pascoal, como era popularmente conhecida, começou a trabalhar aos cinco anos, ajudando os pais na lavoura de um fazendeiro. A família também não sabe ao certo qual é a cidade de nascimento de Pascoalina.
“Cultivava as plantas… Aí, eu só ficava lá com os negócios de roça, tratando de galinha, tratando de porco. Trabalhava na enxada também. Era pequenininha, eu tinha cinco anos. Era trabalho só e a gente morava numa casa e tinha que andar a pé. Porque não tinha nada, não tinha carro. O colono também dava alguma coisa pra gente, dava uma cota de arroz, dava uma cota de feijão, dava uma cota de farinha.” — Pascoalina Oliveira da Silva
Ao decidir vir para a capital fluminense, deixou para trás três irmãos e chegou aos onze anos de trem com uma tia. “Eu vim de Maria Fumaça”, relembrou. Assim que chegou, morou no bairro da Penha, onde trabalhou pela primeira vez.
Depois de algum tempo estabelecida no Rio, Pascoalina construiu uma casinha no Morro do Salgueiro, também na Zona Norte. Por lá, já muito adepta do samba e de suas expressões religiosas, passou a integrar a ala das baianas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro.
“Arrumei esse velho aí, o pai de um desses meninos aí [o falecido pai de uns de seus filhos, do qual ela não se lembra o nome], aí, fiquei com ele [por um tempo]… Quando eu vim do Salgueiro, eu já vim para cá com outro cara. Aí, [depois de um tempo,] eu larguei o outro cara para lá [o homem do Salgueiro], que era imprestável, era mulherengo… Eu também fui muito namoradeira. Na verdade, curti muito a minha vida: ia para os bailes dançar.” — Pascoalina Oliveira da Silva

Pascoalina foi criada pela prima e pela madrinha. Aos 19 anos, mudou-se para o Morro do Borel, começou a estudar e chegou à quarta série. Ela viu todas as transformações pelas quais a favela passou: das ruas de lama e casas de estuque à alvenaria e à pavimentação na favela. “Quando eu cheguei, isso aqui tudo era de estuque”, disse. “Isso aqui era tudo barro. Eu não tenho mais a noção das coisas como antes… mas essa casa aqui, [foi] o patrão que me ajudou a fazer”, contou, fazendo referência ao seu ex-chefe na casa de uma família onde trabalhou.
No Rio, passou a maior parte da vida trabalhando como doméstica em diferentes residências. “Já trabalhei em Copacabana em uma casa. Já trabalhei na Conde de Bonfim ali [embaixo], também lá em uma praça do Centro [sem dar detalhes de qual praça]. Trabalhava com madame”, disse a relíquia do Borel.
Rezadeira e Parteira do Morro
Então, considerada quase imortal, Pascoalina guardava seus mistérios: tinha duas idades. Apesar de ela bater no peito dizendo ter uma idade, sua família afirma que a idade era outra. A filha, Maria Antônia de Oliveira Soares, de 65 anos, revela que a mãe é um pouco mais velha do que falava. Isso porque ela fez os documentos duas vezes. Segundo Maria Antônia, “no cartório, o escrevente deu uma nova data [de nascimento] para ela.” O fato é que a idade era só um detalhe na vida de uma mulher que transbordava de jovialidade e desejo de viver.
Pascoal lembrou-se da época em que era parteira e rezadeira na favela e do momento em que realizou o parto do próprio neto, Victor, em casa. A prática era comum. “Foi minha mãe que fez o parto do Victor”, diz Maria Antônia.
A ancestralidade também se materializava na espiritualidade que carregava dentro de si, levando a prática de parteira como herança de Dona Zazinha, uma senhora que morava em um quintal vizinho e fazia suas rezas e seus partos quando o terreno ainda não tinha muitas casas, como hoje em dia. “Era ela que fazia meus partos aí, dentro de casa”, conta a matriarca, ressaltando que alguns de seus filhos nasceram pelas mãos da amiga Zazinha.

Muitas foram as vezes em que diversos moradores também entravam na casa de Pascoalina para pedir ajuda. Lá dentro havia um espaço reservado para a devoção da santa para a qual fazia seus pedidos de proteção e saúde. Nossa Senhora Aparecida tinha um espaço mais destacado no altar. “Todo dia faço o meu pedido, não é, santinha? Tem uma outra santinha lá dentro, que [é pra quem] eu faço meus pedidos pelas crianças.
Apesar de sua filha destacar que ela era mais ligada ao candomblé, quando questionada sobre sua religião, Dona Pascoalina dizia ser católica. “Sou católica: Católica Apostólica Romana”. No entanto, como muitos brasileiros, ela também se apoiava nas tradições religiosas afro-brasileiras para curar e proteger os seus. “Já rezei [como rezadeira e benzedeira] algumas crianças. A gente vinha ao encontro também [do candomblé]”.
Ana Paula Rodrigues, 45 anos, cria da comunidade, relembra o legado da rezadeira do Borel. Ela afirma ter tido duas filhas rezadas por Pascoalina. Ana sempre foi vizinha de Pascoal, que morava a duas casas de distância.
“Ela rezava as crianças todas. Rezou a Marceli, rezou a Milena. Como parteira, lembro de histórias que falavam que ela fez muito parto. E, como rezadeira, a gente ia lá para ela poder rezar as crianças. [Tinha] quebrante, naquela época tinha muito isso.” — Ana Paula Rodrigues
A dimensão da importância de Pascoal para o Borel foi reforçada por sua filha.
“Minha mãe foi uma das peças raras muito importantes na minha vida. Não só para mim, mas para a maioria das pessoas do Borel. Ela fez muito parto, muitas rezas no Borel.” — Maria Antônia de Oliveira Soares
As Muitas Mudanças que Viu na Favela
Com o passar dos anos, as lutas das favelas por dignidade e respeito também constituíram parte da memória de Pascoalina. Ela relatou diversos conflitos com a polícia. Pascoal lembrou que, antigamente, seus filhos eram agredidos e levados pela polícia regularmente.
“Aqui, vinha a polícia: ‘vem cá’. Pegava meu filho, levava lá para cima, para baixo, metia o pau. Depois, carregava para o distrito [policial]. Fui parar também muito tempo lá [no distrito policial] atrás deles… Você descia e só via os corpos estirados… Mudou tudo, mudou o morro. Não tem mais morte [como tinha], você saía e ficava vendo corpo no chão. Não tem mais isso hoje. De vez em quando, tem o helicóptero [da polícia] aí e dá um tiro, igual na quarta-feira passada.” — Pascoalina Oliveira da Silva
Dentro desta realidade, ela tinha um medo: morrer baleada. “A morte, quando ela quiser vir, ela pode vir, mas não matada com fogo”.
As rezas, àquela altura, eram menos frequentes devido ao fato de Pascoal ter machucado o joelho. “Depois que eu fiquei doente, fiquei sem força, sem animação, sem ânimo. Nem equilíbrio no corpo eu tenho”, diz, ressaltando sua condição.
Os cabelos completamente tomados de fios brancos, segundo ela, eram de tanto pensar na vida. “É sangue quente de tanto pensar na vida. Penso na vida, penso nos filhos, penso nas minhas netas. Aí, meu cabelo ficou branco rapidinho.”
Pascoalina Oliveira da Silva morreu no dia 17 de novembro de 2019. Ela deixou 5 filhos, dos 16 que teve. Conheceu 16 netos, 38 bisnetos e 6 tataranetos. Seu legado e sua contribuição para a história e a identidade do Morro do Borel são muito maiores do que sua partida e ainda estão presentes no morro, mesmo seis anos após sua morte.
*Algumas informações não foram confirmadas, como o local de nascimento e a idade, porque os documentos de Pascoalina Oliveira da Silva ficaram com uma das filhas que morreu em 2024.
Sobre o autor: Igor Soares é cria do Morro do Borel e jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão, do Portal iG e produzido reportagens para a Folha de São Paulo.
