‘A Gente Tá Caminhando Para o Nosso Fim?’ História e Atualidade dos Cursos d’Água no Complexo da Maré Pintam Retrato da Insistência do Racismo Ambiental e Urgem Por Soluções

Águas Mareenses Conectam Identidade e Segurança Alimentar, Mas Estão Ameaçadas Pela Degradação Ambiental

O pescador Hélio Ricardo em uma das poucas áreas de mangue que sobrevivem no Complexo da Maré apesar da degradação ambiental. Foto: Amanda Baroni
O pescador Hélio Ricardo em uma das poucas áreas de mangue que sobrevivem no Complexo da Maré. Foto: Amanda Baroni

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Este artigo faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental nas favelas cariocas.

Quem olha para o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, composto por 16 favelas intensamente habitadas e urbanizadas, pode não imediatamente associar o território ao seu ecossistema natural. No entanto, a Maré é composta por uma vasta malha hidrográfica, que continua existindo por baixo da poluição, degradação e intervenções agressivas. Ali, fragmentos de vegetação de mangue e importantes cursos d’água lutam, resistindo na paisagem mareense. 

Um Enorme Arquipélago Chamado Maré

A Maré do passado possuía exuberantes paisagens e, há menos de 100 anos, era formada por praias, ilhas e manguezais. O livro Águas Cariocas descreve a natureza da região nos anos 1930 a partir de relatos do escritor Armando Magalhães Corrêa (1889-1944).

“Bandos de garças levantavam vôo; destacam-se agora o Morro de Inhaúma [atual Morro do Timbau], a Ponta do Tibau e a Ilha do Fundão. Tomamos a direção sul, aprovando para o Canal de Inhaúma [atualmente, região cortada pela Linha Amarela]…. A parte superior da colina é coberta de mangueiras, abieiros, tamarineiros, cajueiros, sapotizeiros… Sobre as pedras, cactáceas; sobre as árvores, bromélias.” — trecho de Águas Cariocas, de Antonio Carlos Pinto Vieira (2016, p. 145)

Ilustração da década de 1930 mostra uma Maré 'estritamente navegável', conforme relata o escritor Armando Magalhães Corrêa. Foto: Águas Cariocas/Reprodução
Ilustração da década de 1930 mostra uma Maré ‘estritamente navegável’, conforme relata o escritor Armando Magalhães Corrêa. Foto: Águas Cariocas/Reprodução

O entorno do Complexo da Maré de hoje era um enorme arquipélago. Suas ilhas formavam canais que ajudavam a manter vivo o mar que passava por dentro do que, atualmente, é território habitado pela comunidade. As águas da Baía de Guanabara eram extensas, alcançando o que hoje é a Fiocruz. Dentro do atual Complexo, havia a Ilha do Pinheiro (atual Parque Ecológico Cadu Barcellos), o Morro de Inhaúma (Morro do Timbau), o Saco de Inhaúma (onde hoje encontram-se Vila do Pinheiro, Vila do João e Conjunto Esperança) e a Praia do Apicú (que era um grande manguezal entre a Baixa do Sapateiro e a Praia de Ramos). A Maré era, como o nome sugere, uma área entre marés, posicionada entre o Rio Faria e a Baía de Guanabarasendo, portanto, uma área alagadiça e de assoreamento natural.

Como o deslocamento humano ocorria, segundo o autor, predominantemente por seus cursos d’água, a Maré possuía dois portos: o de Maria Angu, na atual Praia de Ramos; e um no pé do Morro do Timbau, ao longo de onde, hoje, se localiza a Rua Guilherme Maxwell (mais conhecida como Rua da Escola Bahia, altura da Passarela 7 da Avenida Brasil). Essa característica hídrica é tão marcante no território que Timbau e Pinheiro, nomes de origem Tupi-Guarani, significam, respectivamente, “entre águas” (t´pau) e “derramado” (pi-iêre), segundo arquivos do Museu da Maré.

Por conta deste perfil hidrográfico, a ocupação humana na Maré sempre caminhou junto com o desenvolvimento de sua cultura pesqueira. Viver da pesca era tão comum que algumas comunidades mareenses, como a Praia de Ramos e o Conjunto Marcílio Dias, surgiram a partir do assentamento de famílias de pescadores. Colônias de pescadores, como a de Ramos (fundada em 1923), do Pinheiro e do Parque União resistem até hoje e são memória viva desta ocupação.

Registro do antigo Porto de Maria Angu, em Ramos, mostra a dimensão da beleza que rodeava a Maré. Foto: Arquivo Dona Orosina Vieira
Registro do antigo Porto de Maria Angu, em Ramos, mostra a dimensão da beleza que rodeava a Maré. Foto: Arquivo Dona Orosina Vieira/Museu da Maré

Morador e cria do Parque União, Hélio Ricardo é pescador na Maré há 40 anos. Ele conta como a natureza tomava conta da região.

“Isso aqui [a Maré] era uma ilhota. O mangue sempre esteve presente. Aqui [na Praia do Coqueirinho, ao lado do BRT do Fundão], a gente tinha que vir com água no peito. Às vezes, quando a maré baixava, a gente vinha andando com água no joelho. Isso há 45 anos, 40 anos. Naqueles anos a gente não precisava de muita rede para pescar. Bastavam 100 metros de rede que você enchia o barco.” — Hélio Ricardo

Carlos Lopes, conhecido como “Cobra”, morador do Parque União e pescador há 50 anos, também relembra os velhos tempos.

“No mês de novembro, eu levava as turmas [de pescadores para ir pescar]. A gente vinha com 250, 300 peixes-espada. A gente pegava aquelas [espécies] que a gente chama de ‘cachorro’, as grandonas. As pequenas eram tantas que não tinha necessidade de levar, e [a gente] jogava para a água de novo. Eu tinha minha rede de camarão. Nossa! Oito camarões davam um quilo! A gente pegava, às vezes, duas caixas dela, sardinha verdadeira. Bagre também vinha. Tinha o período em que a anchova entrava, e tinha o período que a pescadinha entrava junto com a corvina. Até robalo vinha também na rede.” — Carlos Lopes

Tradição de séculos neste território, a atividade pesqueira, entretanto, começou a ser gradativamente impactada ao longo da segunda metade do século passado. A oferta de peixes começou a diminuir por conta de múltiplas intervenções que afetaram a saúde dos cursos d’água mareenses. Essas intervenções comprometeram não somente a prática da pesca tradicional, mas o próprio conhecimento da comunidade mareense sobre as águas que costuram este território.

Um Retrato da Hidrografia Mareense 

O Complexo da Maré está posicionado entre a sub-bacia do Canal do Cunha e a sub-bacia do Rio Ramos, sendo seus principais canais o do Fundão, paralelo à Linha Vermelha, e o Canal do Cunha, transversal à Avenida Brasil, na altura de Manguinhos. O Canal do Fundão, uma passagem artificial com aproximadamente seis quilômetros de extensão, é resultante do aterro do arquipélago que deu origem à Cidade Universitária, hoje, a Ilha do Fundão. Ele se encontra com o Canal do Cunha na altura da Linha Vermelha, ao fundo da comunidade, perto da Ponte do Saber. Praticamente todas as saídas de esgoto da comunidade e de grande parte da Zona Norte carioca desaguam no Canal do Fundão.

Na margem esquerda, passagens de esgoto saem do Complexo da Maré para o Canal do Fundão, no encontro entre a Linha Amarela e a Vermelha, até desembocar na Baía de Guanabara. Foto: Amanda Baroni
Na margem esquerda, passagens de esgoto saem do Complexo da Maré para o Canal do Fundão, no encontro entre a Linha Amarela e a Vermelha, até desembocar na Baía de Guanabara. Foto: Amanda Baroni

Já o Canal do Cunha, que começa na altura de Manguinhos, possui um quilômetro de extensão e recebe afluentes de outros rios e canais. Alguns deles são o Rio Jacaré, que começa na Serra dos Pretos Forros, no bairro de Engenho de Dentro; e o Rio Faria-Timbó, que se constitui do encontro do Rio Faria com o Rio Timbó nas proximidades do bairro de Inhaúma. O Canal do Cunha também recebe os afluentes dos canais de Manguinhos, Eixo 300, Pinheiro, Conjunto Esperança e Vila do João. Todos passam pelas comunidades Vila do João, Conjunto Esperança e parte da Vila do Pinheiro, também desaguando na Baía de Guanabara.

Além dos mencionados, há vários outros cursos d’água que compõem a hidrografia mareense. São, entretanto, menos conhecidos—sobretudo por conta da inconsistência ou insuficiência de informações a seu respeito.

Um exemplo é o Rio Ramos. Segundo o mapa do projeto Esse Rio é Meu, o Rio Ramos nasce no bairro de Ramos e, passando por debaixo da Avenida Brasil, entra no Complexo da Maré, na altura do Parque União, até chegar à Baía de Guanabara. No entanto, ao mesmo tempo em que este mapa apresenta um percurso em formato de linha reta—do Rio Ramos até a Baía de Guanabara—descreve o percurso mencionando pontos de referência distintos daquilo que, de fato, corresponderia ao caminho deste curso fluvial.

O projeto Esse Rio é Meu apresenta dois percursos para identificar o Rio Ramos: um é mais retilíneo; o outro, mais extenso e mais reentrante, vai até a comunidade Baixa do Sapateiro. Foto: Esse Rio é Meu/Reprodução
O projeto Esse Rio é Meu apresenta dois percursos para identificar o Rio Ramos: um é mais retilíneo; o outro, mais extenso e mais reentrante, vai até a comunidade Baixa do Sapateiro. Foto: Esse Rio é Meu/Reprodução

Um dos pontos de referência mencionados é a Creche Municipal Monteiro Lobato, localizada na Rua Tatajuba, na Baixa do Sapateiro. No entanto, a creche situa-se a mais de 650 metros de distância da Rua Darci Vargas (a Rua do Valão, como é mais conhecida), local por onde o Rio Ramos entra na comunidade. Para se ter uma ideia da divergência de informação: se um morador partisse do ponto onde passa o Rio Ramos na Rua Darci Vargas, no Parque União, até a creche, na Baixa do Sapateiro, seria necessária uma caminhada de aproximadamente nove minutos pela Rua Principal, rua transversal ao Rio Ramos, e que liga as duas comunidades.

Um dos percursos descritos pelo projeto Esse Rio É Meu mostra que o Rio Ramos passaria pela Rua Tatajuba, assumindo um caminho completamente diferente do apresentado pelo percurso retilíneo. Foto: Google Maps/Reprodução
Um dos percursos descritos pelo projeto Esse Rio É Meu mostra que o Rio Ramos passaria pela Rua Tatajuba, assumindo um caminho completamente diferente do apresentado pelo percurso retilíneo. Foto: Google Maps/Reprodução

Além disso, todos os pontos de referência deste percurso do Rio Ramos, tal como descrito pelo mapeamento, são escolas situadas ao lado de cursos d’água que, na comunidade, são entendidos como valões. Isso levanta questionamentos importantes. Por que o mapa aponta um percurso, mas descreve outro? A Rua do Valão, no Parque União, seria o Rio Ramos, ou apenas um valão? Os valões seriam apenas canais de esgoto construídos por moradores ou autoridades? A confusão se aprofunda quando nos deparamos com um estudo realizado pelo data_labe, que registrou os principais cursos de esgoto da Maré. Aquilo que o projeto Esse Rio é Meu identifica como parte do Rio Ramos, o estudo do data_labe identifica como valão.

É rio ou é valão? Na Maré, o mesmo curso d'água é identificado de dois modos diferentes: como rio, pelo projeto Esse Rio É Meu; e como valão, pelo mapeamento do Data Labe. Foto: Data Labe/Reprodução
É rio ou é valão? Na Maré, o mesmo curso d’água é identificado de dois modos diferentes: como rio, pelo projeto Esse Rio É Meu; e como valão, pelo mapeamento do data_labe. Foto: data_labe/Reprodução

Além das incongruências entre as informações sobre o Rio Ramos apresentadas pelos mapas citados, o conhecimento de moradores aponta, ainda, características sobre a hidrografia mareense que divergem.

“No Piscinão de Ramos, nós temos dois [canais]. Temos um ali no Jet Clube e [outro] na Colônia de Ramos. Em outra comunidade da Maré, a Kelson’s, tem outros dois, um ali na [Praia da] Moreninha e depois um outro, que é o maior deles, beirando a Marinha. É o que vem da área de Brás de Pina, do Quitungo. As águas fluviais são captadas por ali.” — Carlos Lopes

Todas essas imprecisões, inconsistências ou insuficiências de informações sobre os cursos d’água do Complexo da Maré têm relação com um processo histórico de apagamento, negligenciamento e descaracterização dos rios de favelas por parte de políticas de urbanização. Sérgio Ricardo, diretor do Movimento Baía Viva, explica.

“Isso é um problema da engenharia brasileira. Há mais de 30 anos, no mundo todo, está se fazendo a renaturalização dos rios. Desde a Eco 92 isso já é debatido, enquanto nós aqui continuávamos a aterrar e retificar rios. A gente tem que trabalhar com as fontes oficiais, mas fazendo um processo dialógico. Tem rios que têm um nome oficial, mas que, nas comunidades mais antigas, os pescadores não os reconhecem com aquele nome. Reconhecem por outros nomes, em geral indígenas. A renaturalização dos rios e trajetos antigos é uma outra concepção: a ecológica. Aqui [no Brasil, o que é seguido] é a concepção da engenharia sem ecologia, uma concepção hidráulica. É igual à questão indígena. Quantos povos existiram? Ninguém sabe. O Canal do Fundão, por exemplo, vai seguindo pela Linha Vermelha [hoje]. Mas será que o rio [original] fazia aquele trajeto?” — Sérgio Ricardo

Ao longo dos anos, políticas habitacionais que visavam o progresso não somente eliminaram, aterraram ou alteraram os cursos d’água da Maré. Essas ações impactaram profundamente a memória da comunidade e comprometeram os ecossistemas locais. Hoje, há, por parte de muitos moradores, uma dissociação entre a comunidade e seu patrimônio natural, processo resultante de intervenções que remontam ao início do século passado.

O Processo de Degradação das Águas Mareenses

Entre 1908 e 2012, a região da sub-bacia do Canal do Cunha sofreu inúmeras intervenções por conta de sua característica alagável. A maioria destas obras ocorreu nas proximidades ou mesmo dentro do território do Complexo da Maré, como o aterro para a construção do antigo aeroporto de Manguinhos, o aterro para a construção da Avenida Brasil (a partir da década de 1940), o aterro das ilhas que existiam no Fundão em 1949 e o aterro do Projeto Rio, de 1979 a 1980, no local onde existiam as palafitas da Maré.

Com a intenção de solucionar a questão das habitações em favelas, o Projeto Rio foi responsável pelo amplo aterramento da região da Vila do Pinheiro. Foram alterados 69 hectares da Baía de Guanabara para a construção de 2.300 casas. No entanto, a iniciativa habitacional não veio acompanhada de planejamento efetivo para o saneamento na comunidade, fazendo com que o lixo fosse descartado diretamente nos canais da Maré e, por consequência, chegasse à Baía de Guanabara.

Seu Hélio lamenta como estes canais mareenses e a Baía de Guanabara, principal ponto de desembocadura de todos esses cursos, encontram-se com a saúde tão comprometida.

“Tinha mais ou menos uns 100 pescadores aqui. A gente saía de manhã aqui para pescar, seis horas da manhã. Quando era meio-dia, chegava com quatro, cinco tabuleiros [cheios]. Eram 100, 150 kg de peixe. Era anchova, sardinha verdadeira [termo para peixe saudável], que a gente chama de maromba; o camarão, esse camarão grande, o verdadeiro; a pescadinha, robalo, raia… Era muita abundância. A gente já pegou mais de 300 kg de raia [nessas águas]. [Até essa época, final dos anos 1970,] dava para sobreviver. Eu criei meus filhos com peixe, vendendo peixe. Agora não dá mais, não. Antes tinha areia aqui, mas [agora tudo] virou lama. [Hoje,] ainda capturamos [peixe], mas bem menos [por causa da poluição].” — Helio Ricardo

Todos estes aterros afetaram os canais da Maré direta e significativamente. Para garantir a viabilidade destes projetos, as obras demandaram a construção de vias artificiais para drenagem dos terrenos alagadiços—que, por sua vez, passaram a transportar todo o lixo doméstico das comunidades mareenses para a Baía de Guanabara. Deste modo, a biodiversidade das águas mareenses de outrora foi, gradualmente, perdendo espaço para o esgoto e a poluição.

Mas o descaso devido à falta de planejamento e investimento público com os cursos d’água mareenses vai além dos aterramentos. Na segunda metade do século passado, os rios da sub-bacia do Cunha passaram por intervenções agressivas. Com o objetivo de conter enchentes, estes rios, uma vez meândricos e sinuosos, foram retificados, canalizados, aterrados ou cobertos pela malha urbana.

Atual estado do Canal do Cunha na altura da comunidade Salsa e Merengue. Foto: Amanda Baroni
Atual estado do Canal do Cunha na altura da comunidade Salsa e Merengue. Foto: Amanda Baroni

Uma dessas intervenções para contenção de enchentes foi a obra de ligação do Rio Faria com o Rio Timbó, dando origem ao Rio Faria-Timbó. Essa obra modificou o Canal do Cunha, um curso d’água natural que, além de ter sido concretado, teve sua extensão ampliada em função da junção entre o Faria e o Timbó. Hoje, o Faria-Timbó é um rio retificado, concretado e extremamente poluído.

Fora isso, intervenções que potencialmente melhorariam a vida da comunidade ainda custam a se tornar realidade. No final dos anos de 1980, um projeto para a construção da Galeria de Cintura da Maré visava realizar o tratamento do esgoto que passa pela atual Rua do Valão. No entanto, como lembra Seu Hélio, o projeto nunca saiu do papel.

“O esgoto que vinha [e ainda vem] de Olaria e Penha ia ser tratado para jogar lá no Canal do Cunha. Uma antiga empresa de curtimento de couro que já fechou, na Penha, poluía muito porque usava muita química. A feira do Parque União ia passar para lá [pra Rua do Valão], mas nunca foi feito isso. Nunca saiu do papel esse projeto. E aquilo tudo [esgoto desse local] vem parar aqui na Baía de Guanabara. O Curtume [empresa de curtimento de couro] já não existe mais, mas tem muita indústria ali [na Penha] que desemboca tudo naqueles valões. E você vê isso [quando passa] na Avenida dos Campeões [em Ramos], vem pela Teixeira de Castro, perto daquela Passarela 10, em frente ao Parque União até o Canal do Cunha.” — Hélio Ricardo

Hoje, as águas que circulam pela Maré sofrem com os impactos de todas essas mudanças que, ao longo do tempo, transformaram radicalmente a paisagem original. Dentre as consequências, estão a perda da extensão dos rios da sub-bacia do Canal do Cunha, a perda da densidade de drenagem dos canais mareenses para quase metade de sua capacidade original, os alagamentos, a ocorrência de mais enchentes e a banalização da poluição dos rios. Tudo isso reforça que, além de terem comprometido a qualidade de vida dos moradores e a saúde das águas mareenses, estas intervenções não atingiram seus objetivos.

No Conjunto Esperança, o lixo domina a passagem de esgoto paralela ao Canal do Cunha. Foto: Amanda Baroni
No Conjunto Esperança, o lixo domina a passagem de esgoto paralela ao Canal do Cunha. Foto: Amanda Baroni

‘Quando o Homem Destruir Todos os Rios, Vai Ver que Dinheiro Não Se Come’

Como forma de reverter este quadro, entre 2009 e 2011, o governo do estado executou obras de revitalização dos canais do Fundão e do Cunha, retirando cerca de 3,2 milhões de metros cúbicos de resíduos, dragando os rios do entorno e reurbanizando as imediações. A dragagem fez com que a vegetação do manguezal naturalmente ressurgisse na paisagem mareense. A melhoria, no entanto, durou apenas dois anos devido à falta de manutenção, apontando que o problema não se resolve de forma isolada. Carlos desabafa sobre a ineficiência da ação.

“Dragaram só um pedacinho da ponte do Pinheiro até o Parque União. Só! Você vai aqui no Fundão e vê lá a montanha de lama. A parte necessária que era para dragar, não dragaram. Tinha que vir dragando direto até aqui na Ponta do Arassá. Era para ter dragado desde aquele canal que vem lá de Manguinhos. O Pinheiro [que recebe esses afluentes] é intratável. Lá, o pescador tem hora para sair, hora para chegar e tem que estar no lugar certo. É uma área muito restrita para ele passar com o barco. Embarcação de grande porte lá, nem pensar em ter. Não passa, é muito raso, muita lama. Não é só lama, é sujeira. Por que estão constantemente dragando o Cais do Porto? Porque o mar vai assoreando naturalmente o rio, tem que ter dragagem sempre. Aqui também iria favorecer o pescador. O fluxo de água desses bairros seria bem melhor porque ia ter vazão aqui. Não adianta você pegar um balde de água e querer colocar numa xícara. Ela vai transbordar!” — Carlos Lopes

O pescador Carlos Lopes mostra a poluição que toma conta da água na Praia do Coqueirinho. Foto: Amanda Baroni
O pescador Carlos Lopes mostra a poluição que toma conta da água na Praia do Coqueirinho. Foto: Amanda Baroni

Seja por falhas, por descontinuação de obras e projetos ou por negligências contra populações faveladas, alvos históricos do racismo ambiental, todas essas intervenções modificaram profundamente a natureza mareense, bem como a relação entre os moradores, o ecossistema natural de seu território e as condições de vida local.

Branca, como é conhecida Gileuda Silva, pesca há nove anos junto à Colônia de Pescadores da Prainha (APAP), localizada na Praia do Oi, no Fundão, também lamenta o atual estado do ecossistema aquático da Maré.

“Em 11 de abril de 2023, nós tivemos uma mortandade incrível das raias ticonha. Sendo que não ficou só ali na Ilha do Fundão. Foi uma notícia que foi veiculada no mundo inteiro, e até hoje nós não tivemos o retorno do [motivo pelo qual] essas raias morreram. Outro caso foi a quase extinção do peixe-espada, que sumiu da Baía por quase três anos [entre 2022 e 2025]. A maioria dos pescadores ficaram apreensivos porque, apesar do valor comercial dele ser baixo, ele tem demanda, porque é saboroso. Hoje em dia é quase um troféu pegar um. Isso acontece por causa do vazamento de óleo, em lavagem de porão de navio, de empresas que estão na Baía. Elas são as que mais lucram com a natureza e as que mais poluem. E essa é a grande preocupação do pescador: qual será a próxima espécie a sofrer? A gente tá caminhando para o [nosso] fim? Será que não tem jeito da gente salvar [nossa natureza local]?” — Branca

Essa realidade afeta a população mareense e sua relação com atividades como a pesca, patrimônio cultural que sempre entrelaçou identidade e segurança alimentar na vida desta comunidade. Pensar nos rios é pensar, ao mesmo tempo, em um único Rio. As políticas ambientais precisam caminhar ao lado de outras políticas, como a educacional, a sanitária e a energética. O problema enfrentado pelas águas da Maré, portanto, não pode ser tratado de forma isolada.

“O pessoal quer [reclamar] que não tem peixe, não tem peixe. Claro! Tá tudo poluído! O peixe vai em um lugar que é mais limpo! Ele vai ficar onde tem poluição? Onde não tem oxigênio? Quando o homem acabar com a última árvore da floresta, destruir todos os rios, poluindo, e acabar com todos os peixes do mar, ou seja todo nosso ecossistema—vai ver que dinheiro não se come.” — Hélio Ricardo

Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é formada em jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau, no Complexo da Maré.


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