José Martins de Oliveira, ativista e gestor de longa data na Rocinha, e atualmente co-diretor do Rocinha Sem Fronteiras, cravou exatamente cinquenta anos desde sua chegada ao Rio de Janeiro no dia 18 de março deste ano. Nascido no estado do Ceará em 1946, Martins saiu de casa para Fortaleza em 1967. Ao chegar, porém, enviou uma carta a seus pais dizendo-lhes que ia para o Rio, E que ele estaria de volta em setembro. “A verdade é que na época eu realmente pensei que eu voltaria”, disse Martins, “mas uma vez que cheguei, as coisas funcionaram, de modo que eu ainda estou aqui”.
RioOnWatch: Como era a Rocinha quando você chegou aqui?
Martins: A Rocinha era muito pouco povoada, muito menos do que hoje–talvez quarenta por cento em relação a hoje. Não tinha água canalizada em casa nenhuma. Era carregada da bica. Para mim era uma coisa muito diferente. Conheci a Rocinha com casas penduradas, eram barracos de madeira.
O primeiro choque que tomei quando cheguei aqui, foi quando uma senhora me ofereceu um cruzeiro para carregar uma balança de água com duas latas penduradas no pau. Na hora, eu fiquei um pouco revoltado com ela–meus pais eram pequenos fazendeiros, a gente pagava as pessoas para trabalharem para a gente, como que eu trabalharia para ela por um cruzeiro? Só que à noite, dormindo no chão–não tinha cama, não tinha nada para dormir–pensei, não estou na minha casa, amanhã vou falar com a mulher para carregar água. No dia seguinte, depois de meditar um pouco à noite, fui na casa da mulher, falei com ela, e carreguei muita água.
RioOnWatch: Onde você morava naquele tempo?
Martins: Morei na parte alta quando cheguei. O meu amigo que morava na Tijuca me trouxe aqui e me apresentou a uma outra pessoa daqui que me conhecia, que me convidou para a casa dele. Eu não pagava aluguel, mas trabalhava e dividia o espaço da casa com ele.
RioOnWatch: Há quantos anos você é gestor social? Como iniciou o seu engajamento?
Martins: Comecei em 1974, por aí, então já são quarenta e três anos. Que foi novamente por causa da história da água. Foi a implantação da rede de água na parte baixa da Rocinha. Eu comecei pensando que tudo se resolveria em três ou quatro meses, mas de verdade foram dois anos e pouco para concretizar a implantação da água.
RioOnWatch: Como eram as condições para os gestores comunitários naqueles anos?
Martins: A solução era mais fácil do que hoje. Naquele tempo, tinha uma coisa objetiva, uma coisa mais concreta, que era a luta pela água. Hoje as pessoas participam menos, e a presença nas reuniões é menor. Agora, reunir para discutir é ainda mais difícil. Naquele tempo tinha o apoio da Igreja, que fazia muita reflexão, e então as pessoas participavam juntos.
Naquele tempo havia mais necessidade real da questão, e as pessoas estavam muito mais juntas. Naquele tempo não tinha água nenhuma. Hoje tem, a falta de água total não existe. Tem a questão do esgoto, mas aqui, todos querem melhorar suas casas. Você vai entrar em uma casa, em uma área que tem esgoto aberto, mas a casa está limpa. As pessoas dizem que o esgoto é para os outros, e então, deixam para os outros. O individualismo cada vez é maior. E isso é fruto do capital.
RioOnWatch: Quais foram os outros movimentos e organizações nos quais você participou? Algum foi especialmente importante para você?
Martins: Eu participei no movimento para o saneamento, na campanha da passarela, no movimento de integração de outras comunidades e em reuniões para a discussão de questões mais amplas. A água foi o meu caminho, foi a entrada nisso, e ainda hoje é uma questão. Eu participei da fundação da Associação de Moradores do Bairro Barcellos em 1982, fui fundador e fui presidente por dois mandatos. Também participei de uma coisa importante–a Rocinha tem uma Região Administrativa, é um órgão da Prefeitura, a prefeitura divide a cidade em 34 Regiões Administrativas–e eu fui o primeiro administrador regional. Então, eu era a pessoa que estava a frente da direção de alguma coisa. Não da comunidade, mas era da prefeitura para a comunidade.
Nesses quarenta e três anos, a coisa mais importante foi a implantação da rede de água potável para todos na parta baixa da Rocinha, porque entrei na luta sem saber muito bem o que ia acontecer, mas sempre digo que só tem importância essa luta se serve para mais pessoas, e hoje, tem mais de dez mil pessoas usando essa água. A luta da passarela também foi importante, mas ela foi uma luta menor. O estado gastou quatorze milhões quebrando e construindo uma nova, mas não mudou nada para a gente. Ficou mais bonita, mas a acessibilidade é quase a mesma. A canalização do valão também foi importante, porque quando chovia muitas casas alagavam, então muitas casas deixaram de alagar. E tem outra luta importante, que foi a luta pela implantação da luz elétrica na comunidade, que também esteve ligada à Igreja e a Pastoral das Favelas.
RioOnWatch: Como é a relação entre os moradores e as pessoas que vêm da fora para trabalhar e atuar dentro da comunidade?
Martins: A troca de conhecimentos é bem importante. Mas pode ter coisas perigosas, porque as pessoas de fora não conhecem a realidade local, então quando não conhecem podem fazer algumas besteiras. Para conhecer precisa ter alguma troca de experiência.
É importante que os moradores recebam conhecimento técnico, mas é importante que as pessoas de fora respeitem a vivência e o conhecimento local que os moradores têm. Teve gente de fora que foi um desastre para a nossa comunidade. Uma mulher criou uma nova associação de moradores, e uma associação se confrontava com a outra. Teve um lado bom porque as pessoas discutiram, mas é um lado perigoso porque ela destruía todas as organizações novas que eram criadas, ela queria ser a dona da história, não deixava que os moradores tivessem voz. Depois teve outro grupo, que foi um grupo de costura, que também foi criado por uma pessoa de fora que não dava voz para as costureiras, e esse grupo também acabou em nada. É importante ter esse respeito.
RioOnWatch: Com a sua experiência e seus anos na Rocinha, você tem alguma visão ou ideal para a comunidade e para organizações como a Rocinha Sem Fronteiras?
Martins: Na verdade, eu acredito na possibilidade das pessoas se engajarem na luta e transformarem a sociedade. O quê que muda exatamente vai depender do rumo do movimento, o movimento é dono do seu rumo. Eu acredito nesta participação, e acredito que quando as pessoas ampliam seu conhecimento sobre direitos e deveres, ficam aptas para a transformação da sua sociedade.
O grande desafio é de trazer os jovens para o movimento, e eles ficarem. A gente tem tentado. Tem informação na internet dos diferentes grupos, mas não há interesse por parte dos jovens.
É possível que novas organizações sejam criadas. Agora, o importante nas organizações é ter visão de unificação. Se elas se unificarem, terão muito mais força.