Arte, Resistência e Luta Ancestral no Carnaval, Parte 3: Bloco Se Benze que Dá Fecha o Carnaval 2024 da Maré

Desfile do Bloco Se Benze Que Dá pelas ruas da Maré em 15 de fevereiro de 2020. Foto: AF Rodrigues / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
Desfile do Bloco Se Benze Que Dá pelas ruas da Maré em 15 de fevereiro de 2020. Foto: AF Rodrigues / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

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Esta é a terceira matéria de uma série de três sobre tradições carnavalescas de favelas e periferias, que trata, respectivamente sobre: Bate-Bolas, forte tradição nas zonas Norte, Oeste e na Baixada Fluminense; Agremiações da Série Prata e Bronze, em sua maioria, escolas de samba de favela; e Bloco Se Benze Que Dá (SBQD), do Conjunto de Favelas da Maré. Elas representam estes Rios desiguais, que insistem em (re)existir em forma de arte e purpurina.

Longe dos holofotes do Sambódromo, o carnaval das favelas e periferias revela a força do trabalho comunitário como agente de construção da folia. Neste cenário de contrastes, moradores de favelas e periferias da Região Metropolitana são os responsáveis por resguardar as tradições e a cultura popular do carnaval. Seja por amor, paixão ou ativismo, ninguém abre mão de colocar o carnaval na rua, mesmo com poucos recursos.

19 Anos de Luta e Resistência no Carnaval da Maré

O Bloco Se Benze Que Dá (SBQD), há 19 anos, convida os moradores do Conjunto de Favelas da Maré, onde vivem mais de 140.000 pessoas, a ocuparem as ruas, sem medo, brincar o carnaval. Seu cortejo funciona como uma forma de protesto e ruptura. Flávia Cândido, integrante do SBQD, ressalta que “o Bloco Se Benze Que Dá é uma resistência de um pessoal que começou muito jovem, mas, mesmo agora, mais maduros, estão sempre tentando agregar a juventude. Percebemos, ao produzir o enredo deste ano, que, nos 19 anos de existência do bloco, a palavra luta sempre está na letra do nosso samba”. Essa característica se mantém no samba de 2024 do bloco mareense:

“Nós somos resistentes,
é ele, é nós, é a gente
É o pique da favela
Com muita luta e fé,
são trinta anos de axé
Decompondo as divisas
Aqui no bairro Maré.”

Com mais de 47.000 domicílios, segundo dados do Censo Marérealizado pela Redes da Maré, em parceria com o Observatório de Favelasa Maré têm mais de 80 anos de existência. Desde 1994, foi transformada em bairro da Zona Norte através da Lei Municipal n° 2.119/1994, fato exaltado no samba de 2024 do bloco:

“Vem com a Maré
30 anos de paixão
Direito de ir e vir
É a nossa tradição
Quebrando as barreiras
Vem renovando a folia
Pode tentar nos calar
(Atura ou surta)
Se Benze que dá vai passar.”

Esse grito carnavalesco de 2024 destaca o Direito à Favela e vai além ao denunciar que o reconhecimento da Maré enquanto bairro não significou melhorias na qualidade de vida dos moradores.

“Falar dos 30 anos de bairro Maré é falar do Estado que impede o próprio Estado de funcionar. A gente vive oprimido há muitos anos, com o Estado fazendo operações policiais e impedindo que a escola e os postos de saúde funcionem, que exista cultura. Nosso direito de ir e vir é retirado.” — Flávia Cândido

O Bloco Se Benze Que Dá Se Benze na Tatajuba indo para o Morro do Timbau, rompendo divisas internas no Carnaval 2019. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
O Bloco Se Benze Que Dá Se Benze na Tatajuba indo para o Morro do Timbau, rompendo divisas internas no Carnaval 2019. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

Para ela, o bloco mantém viva “não só a cultura popular através da folia, mas a voz do povo e sua força na festa do carnaval”. Cria da Maré, Flávia Cândido hoje trabalha como assessora parlamentar e professora de Língua Portuguesa e Literaturas no Pré-vestibular Comunitário Estudando Pra Vencer. Ela denuncia que a criação do bairro Maré não trouxe igualdade de acesso à cidade e dignidade para a população do bairro.

“Faço parte de uma geração de mareenses que tinha aqui dentro linhas de ônibus da Maré para o Centro da cidade, para Bonsucesso e para Zona Sul, indo direto para PUC. Mas, nesses 30 anos, nossa denúncia é do quanto a gente foi perdendo o direito de ganhar a cidade e fazer parte do Rio de Janeiro. Isso é muito complexo, porque o Estado entra com o braço armado, mas não com a qualidade de vida… Os ônibus que restaram, além de escassos, já passam lotados na Avenida Brasil, principal via de acesso a Maré, que fica completamente alagada em dias de chuva… Nosso direito de circular pela cidade é negado como se a Maré não fosse cidade… São 30 anos como bairro, mas com muitas resistências dos moradores… tem ruas aqui que só tem nome e CEP hoje porque moradores que estão nas ONGs desenvolveram tecnologia e lutaram para ter essa cidadania. São dignidades retiradas e o bloco no carnaval resgata, protesta e traz isso tudo [à tona], mas com a potência da alegria.” — Flávia Cândido

“Se Benze Que Dá: Vem Pra Rua Morador!”. É com essa convocação e bons punhados de arruda que o bloco de carnaval “Se Benze Que Dá” abre o carnaval na Maré todos os anos há quase duas décadas.

Bandeira do Bloco Se Benze Que Dá do Complexo da Maré, com seu slogan 'Vem pra rua, morador!'. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
Bandeira do Bloco Se Benze Que Dá do Complexo da Maré, com seu slogan ‘Vem pra rua, morador!’. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

Formado por moradores—e não moradores—da Maré, o bloco chama atenção por onde passa durante o cortejo. Foliões do SBQD, chamados de Sebenzeiros e Sebenseiras, são verdadeiros agentes de um movimento de comunicação comunitária, que, além de resgatar o carnaval de rua na Maré, também resguardam a cultura popular, usando a folia como crítica social em uma cidade desigual.

No primeiro desfile de 2024, o bloco saiu do distribuindo a letra do samba do bloco para os moradores, que se empolgaram. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
No primeiro desfile de 2024, o bloco saiu do distribuindo a letra do samba do bloco para os moradores, que se empolgaram. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

“As pessoas ficam curiosas, querem participar e começam a entrar no cortejo, pegar a letra do samba e, minutos depois, já começam a cantar, seguindo o bloco. A gente passa no meio de churrascos, canta parabéns para aniversariantes, que comemoram ali na rua o aniversário… circula!” — Alexandre Dias, cria da Maré e professor de história

No primeiro desfile do Bloco Se Benze Que Dá em 2024, moradora lê a letra do samba do bloco e sorri. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
No primeiro desfile do Bloco Se Benze Que Dá em 2024, moradora lê a letra do samba do bloco e sorri. Foto: Divulgação Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

Carnaval que Atravessa as Divisas

Em geral, é difícil para pessoas de fora da Maré entenderem, mas, no cotidiano dos moradores, cruzar as “divisas” de um lado para outro entre as 16 favelas que formam o Conjunto—sobretudo para a juventude—não é uma tarefa fácil e nem cotidiana.

O segundo desfile de 2020 do Bloco Se Benze Que Dá saiu da Nova Holanda em direção a Morro do Timbau, rompendo divisas territoriais internas do Conjunto de Favelas da Maré. Foto: Elisângela Leite / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
O segundo desfile de 2020 do Bloco Se Benze Que Dá saiu da Nova Holanda em direção a Morro do Timbau, rompendo divisas territoriais internas do Conjunto de Favelas da Maré. Foto: Elisângela Leite / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

Por isso, romper essas barreiras com o cortejo do bloco sempre foi uma das principais bandeiras, explica o pesquisador, fotógrafo e integrante do bloco Fábio Caffé. Para ele, SBQD tem um papel na sociabilidade comunitária da Maré, por convocar os moradores para se divertirem nas ruas, becos e vielas, fazendo da alegria nos dias de folia um instrumento de luta política.

“O bloco colabora para o fortalecimento e criação de sociabilidade entre os moradores da Maré, sejam eles os responsáveis pela festa e/ou os frequentadores das festas. Os Sebenzeiros e Sebenzeiras possuem forte ligação com a Maré. Para eles, mais que um local de passagem, o lugar faz parte de suas histórias de vida, seus afetos, cotidiano, dores, alegrias. Tudo têm profunda ligação com as ruas, becos, vielas, lajes da região.” — Fábio Caffé

Para Fábio Caffé, a existência do bloco reafirma a cultura popular como instrumento de resistência, pois, mesmo com diversas opressões sentidas na pele, o SBQD não deixa de desfilar. “A gente distribui o samba-enredo para os moradores que estão na calçada, entra no meio da festa de aniversário acontecendo no beco e na viela, passa animando o churrasco e chama os moradores que olham na janela para virem para rua. Momentos assim são pura sociabilidade comunitária”, explica.

Criado em 2005 por um grupo de moradores da Maré, incluindo Marielle Franco, o cortejo do bloco sai todo ano em dois sábados, um antes e outro depois do carnaval, atravessando os diferentes territórios da Maré. O bloco consegue derrubar as divisas imaginárias e reais dentro da comunidade.

O Bloco Se Benze Que Dá ocupa as ruas da Maré com arte, cobrando justiça pelo assassinato de Marielle Franco. Foto: Elisângela Leite / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
O Bloco Se Benze Que Dá ocupa as ruas da Maré com arte, cobrando justiça pelo assassinato de Marielle Franco. Foto: Elisângela Leite / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

O SBQD já se transformou, de certa forma, em um movimento político com sambas-enredo que, ao longo de 19 anos, registram os problemas vividos nas favelas da Maré.

“Já teve samba falando da remoção, do PAC, da dengue, da opressão do caveirão e da prisão de Sérgio Cabral e, claro, da perda brutal da Marielle Franco… Falar de Marielle se tornou pauta de todo o carnaval do bloco desde que aconteceu seu assassinato, nesses quase cinco anos.” — Alexandre Dias

A parlamentar Renata Souza, cria da Maré, foliã do bloco e doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em sua tese O Comum e a Rua: resistência da juventude frente à militarização da vida na Maré, defendeu que:

“As experiências comunitárias pautadas na apropriação da rua, como o funk, o grupo Rock em Movimento, o bloco Se Benze que Dá, o cineclube Na Favela, o Sarau da Roça e a feirinha Maré 0800, revelam o compromisso de uma juventude negra e favelada com a mudança de paradigmas, com uma revolução molecular atenta às relações sociais, que subvertem os poderes estabelecidos a partir do desejo de liberdade. Tudo isso por meio da festa, do estar junto, do fortalecimento dos laços de solidariedade, da carnavalização da própria realidade, da resistência cotidiana pela sobrevivência.” — Renata Souza

No primeiro desfile de 2020, o bloco saiu do Morro do Timbau em direção a Vila do Pinheiro, rompendo as barreiras. Foto: Elisângela Leite / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá
No primeiro desfile de 2020, o bloco saiu do Morro do Timbau em direção a Vila do Pinheiro, rompendo as barreiras. Foto: Elisângela Leite / Redes Sociais Bloco Se Benze Que Dá

A organização do carnaval do Se Benze Que Dá acontece de forma comunitária. Através de um grupo de WhatsApp, eles dividem as tarefas e vão construindo a letra do samba juntos. Para a composição do samba-enredo de 2024, eles também se reuniram em um bar no Conjunto Esperança.

“Nosso encontro foi difícil porque [choveu bastante e], quando chove, alaga toda a Maré… mas [o encontro] aconteceu e o bloco vai sair mais uma vez.” — Flávia Cândido

No carnaval 2024, o bloco já ocupou as ruas da Maré no sábado, dia 03 de fevereiro, e sairá em cortejo, pela segunda vez, no dia 17 de fevereiro.

Esta é a terceira matéria de uma série de três sobre tradições carnavalescas de favelas e periferias.

Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista, comunicadora popular e coordenadora de jornalismo do jornal Fala Roça, Mestra em Mídia e Cotidiano pela UFF e doutoranda em Comunicação pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão, ainda atua como professora de técnicas de reportagem no Curso de Comunicação Popular do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC). Feminista negra, cria da Favela do Quitungo e do Morro do Tuiuti, hoje é moradora do asfalto periférico do subúrbio do Rio.


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