Esta é a primeira matéria de uma série de três que resume relatórios sobre leis habitacionais no Brasil, organizados pelo Cyrus R. Vance Center for International Justice (Cyrus R. Vance Centro para Justiça Internacional) a pedido da Comunidades Catalisadoras. A primeira pesquisa, resumida abaixo, foi produzida por Mattos Filho Advogados. Para ler a pesquisa original em inglês, clique aqui.
Histórico
Habitação acessível continua sendo um assunto muito contestado no mundo de hoje. No Rio de Janeiro, não é diferente. Em 2011 o Instituto Pereira Passos reportou que o Rio tinha um déficit habitacional de 148.000 unidades a preços acessíveis, enquanto o governo federal estimava que a carência em 2010 era 220.774 casas. O Rio de Janeiro enfrenta uma batalha difícil para completar as demandas da sua população de baixa renda; a população das favelas da cidade cresceu 28% na primeira década do século 21, comparado com um grau de crescimento total de 3,4% no Rio. Hoje 1,4 milhão de cariocas mora em, aproximadamente, 1000 favelas da cidade.
Durante os últimos 60 anos, houveram tentativas de urbanizar as favelas através de várias políticas públicas com objetivos ambiciosos e nunca alcançados. Seus níveis de sucesso variavam, mas todos foram apoiados por fortes proteções legais. Tanto o governo federal, quanto o governo estadual e municipal apoiam habitação de interesse social em algum contexto, seja explicitamente ou através de políticas públicas. Na verdade, depois de quase 120 anos sendo permitido, como consequência da negligência do estado, o desenvolvimento de favelas como o principal veículo de habitação de interesse social no Brasil, o país estabeleceu leis de usucapião bastante fortes em termos internacionais como forma de proteger este patrimônio. Mesmo assim, o Brasil carrega a fama de ser um dos países com a pior desigualdade de terra do mundo. A pergunta continua sendo: se há disposições legais tão fortes, por que tantos moradores de favelas correm o risco de remoção? E por que ainda existe um déficit tão grande (e cada vez maior) habitacional?
Em vez de, especificamente, analisar programas de políticas públicas ou a história de urbanização das favelas, que já foi feito em outras matérias nesse site, esse artigo foca especificamente em elaborar e explicar algumas das leis codificadas no nível local, estadual, e federal que protegem os interesses das favelas e dos projetos de habitação acessível no Rio de Janeiro, que a pesquisa de Mattos Filhos descreve.
Constituição Federal: Terra Precisa Cumprir sua Função Social
A Constituição Brasileira ratificada em 1988 tem fortes disposições para que a terra cumpra uma função social. As clausulas 22 e 23 no Artigo 5 estabelecem o direito a propriedade, e afirmam que a propriedade tem que cumprir uma função social. Embora não especificamente explicada na Constituição, a função social da terra pode ser entendida no sentido de que a legislação relativa a alocação de terra deve resultar em terras mais equitativamente distribuídas e distribuir os “benefícios e desvantagens de urbanização” de modo justo. Isto também significa que as políticas urbanas devem promover o interesse público.
As Clausulas 24 e 25 do Artigo 5 permitem que o governo possa se apropriar de terras para “necessidades públicas” ou para interesse social desde que uma quantia justa de dinheiro seja fornecida como indenização antes da tomada de terras. Mais especificamente, a Clausula 25 permite que o governo possa tomar uma propriedade privada no caso de perigo público, desde que o governo forneça compensação adequada.
O artigo 6 da Constituição reafirma o direito social à habitação, juntamente com a saúde, alimentação, educação, segurança, proteção à maternidade e à infância e a assistência para as pessoas em situação de pobreza.
Além disso na Constituição, no Artigo 21 Cláusula 20, o governo federal não só garante a habitação como um direito, mas também identifica o governo federal como o responsável pelo desenvolvimento urbano, classificado como habitação, saneamento e transporte urbano. No Artigo 23 Cláusula 9, a Constituição diz que os governos federais, estaduais e municipais têm o poder de promover programas de construção e melhorias de habitação.
O Artigo 170 da Constituição afirma que a ordem econômica do país é baseada no “valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, mas também em concordância com justiça social. Em relação às políticas federais de habitação, a Constituição enumera a função social de propriedade privada como um dos principais meios para alcançar esta justiça social.
Os Artigos 182 e 183 designam que políticas urbanas devem ser cumpridas pelo governo municipal. Além de garantir que as cidades tenham um plano diretor, que as terras urbanas cumpram sua função social, que compensação prévia e justa pelas terras seja garantida, e que terras inutilizadas sejam usadas para cumprir o seu pleno potencial social, o Artigo 183 especificamente permite o usucapião de terras. Usucapião é quando um indivíduo que ocupa uma área por um período (normalmente entre 10 e 15 anos) tem a permissão de se apresentar para adquirir aquela terra. Isso só pode acontecer se a terra for utilizada sem interrupção ou contestação e se a terra for utilizada como lar para uma família, então servindo sua função social. A Constituição Brasileira estipula 5 anos para o usucapião em áreas urbanas de até 250 metros quadrados.
A Constituição do Estado
O artigo 230 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro apresenta uma lista de ferramentas que o Estado pode usar para garantir que a constitucional função social de cidades e de propriedades seja mantida. Algumas destas ferramentas incluem:
- Tributação progressiva
- Taxas por zona
- Taxas e encargos relativos aos serviços públicos
- Fundos de desenvolvimento urbano
- Parcelamento ou edificação compulsórias (empreiteiros devem criar dentro de certos requisitos estabelecidos pelo Estado)
- Discriminação de terras públicas
- Servidões administrativas (limitações sobre uso ou ao desenvolvimento de terras em mãos de particulares)
- Declaração de área de preservação
- Cessão
Habitação Social no Código Legal Municipal
Lei Orgânica, 1990
Junto com os regulamentos estaduais e federais, o município do Rio de Janeiro tem leis que regem a habitação a preços acessíveis e o desenvolvimento urbano. A lei principal que rege o desenvolvimento urbano no Rio é a Lei Orgânica, aprovada em 1990. Essencialmente, é o código legal básico que o município utiliza para fazer novas leis; ele contém cerca de 500 artigos. A função básica da presente lei é traçar claramente como o município vai apoiar o trabalho do governo federal, mas também garantir proteções para os cidadãos. No entanto, partes significativas da lei mencionam especificamente as responsabilidades da Prefeitura em fornecer serviços como saneamento, iluminação pública, estradas, drenagem e delimitação de terrenos específicos.
A lei municipal também ampara com clareza o fornecimento de habitação. Dentro da primeira seção da lei no Artigo 12, há o requerimento de que as crianças, adolescentes e idosos devem ter o direito à moradia, alimentação, dignidade, família e uma vida comunitária. Além disso, no Artigo 234, existem disposições que exigem que a habitação seja incluída nos planos orçamentários anuais.
O Artigo 422 fornece uma confirmação de que a terra deve ser utilizada de uma forma social, garantindo o direito à moradia, a água potável, serviços de limpeza urbana, iluminação pública, saúde, educação e energia elétrica.
Pouco depois, no Artigo 429, a lei assegura que os moradores das favelas não podem ser legalmente removidos a menos que haja um risco de vida direto. Mesmo se houver um risco físico direto, os moradores devem receber ajuda técnica nas negociações e haver plena participação das partes interessadas. Finalmente, se eles forem removidos, eles devem ser reassentados dentro de áreas próximas perto de postos de trabalho e de habitação existente. Este artigo ainda permite que o governo municipal tenha a capacidade de criar Áreas de Especial Interesse para uso urbano, social ou ambiental.
A Lei Orgânica torna a Prefeitura responsável pela implementação e criação de programas de habitação pública, bem como a manutenção de infraestrutura atual. O Artigo 440 diz que para fazer isso, o governo deve apoiar a formação de cooperativas e outras organizações sem fins lucrativos que apoiem estas construções, a investigação das soluções técnicas e urbanas adequadas disponíveis, e fornecer recursos adequados e obrigatórios para financiar estas habitações.
Os Artigos 458 e 459 da Lei Orgânica exige que o governo garanta que os cidadãos sejam informados sobre todas as iniciativas de políticas urbanas.
O Plano Diretor, 2011
Embora a Lei Orgânica seja a principal lei que governa a cidade, uma lei complementar foi adicionada em 2011, o Plano Diretor, que especifica de forma mais clara como o município pode e deve lidar com as terras e questões urbanas.
No Artigo 2 desta lei, há uma reafirmação de que as terras dentro da cidade serão usadas em prol de sua função social e que todos os cidadãos terão acesso aos serviços urbanos. Este Artigo também confirma a importância de práticas de planejamento com “ampla participação social” e a coordenação de muitos órgãos públicos e do setor privado para garantir que o Plano Diretor seja executado em conformidade com a função social da terra.
No Artigo 3, a lei traça as diretrizes para a criação de políticas urbanas, que incluem a requisição da urbanização das favelas, fornecendo infraestrutura e serviços e ao mesmo tempo limitando a sua expansão. Esta cláusula também diz que uma política urbana deve ser feita com o objetivo de reduzir as situações de habitação informais, proporcionando alternativas viáveis como a habitação de interesse social, espaços públicos e promover o uso de terrenos subutilizados ou ociosos.
O Artigo 70 desta lei mostra como a Prefeitura pode criar Áreas de Especial Interesse Social (AIES), que pode ser baseada em questões ambientais, econômicas ou relativo ao turismo. Para AIES, que estejam apontadas para o Programa de Habitação de Interesse Social, os beneficiários devem ter um rendimento igual ou inferior a seis vezes o salário mínimo. Dentro disto, uma AEIS 1 é uma área que tem uma favela ou loteamento irregular ou que poderia ser usado para a habitação social.
O Artigo 77 fornece as razões pelas quais o governo está autorizado a tomar terras, o que inclui a regularização fundiária, o ordenamento da expansão urbana, implantação de equipamentos urbanos, projetos habitacionais de interesse social, espaços de lazer e medidas de proteção do meio ambiente.
Para cada Área de Especial Interesse Social, um plano de urbanização único deve ser criado. O Artigo 207 da Lei do Plano Diretor lista os regulamentos, que devem incluir uma análise físico-ambiental e planos para esgoto, águas pluviais, iluminação pública, lixo, estabilização de taludes e margens de córregos. Este Artigo também exige que haja um plano para a implementação de atividades de geração de renda.
O Artigo 230 prevê objetivos específicos do Programa de Regularização Fundiária Urbana. Em primeiro lugar, o objetivo é regularizar os assentamentos informais como alternativa complementar à produção de habitações de baixa renda. Em segundo lugar, a regularização de áreas informais deve ajudar os moradores na inserção no cadastro imobiliário e no planejamento urbano municipal. Finalmente, há um objetivo concreto no auxílio na titulação da terra.
Autoridades Locais São Responsáveis pela Execução
Em 2005, a Lei Federal 1112 fornecida para o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) criou o Fundo Nacional de Habitação (FNHIS). O Artigo 2 da presente lei estabelece que o SNHIS deve proporcionar aos brasileiros de baixa renda habitação sustentável, a preços acessíveis em áreas urbanas.
Outro órgão federal responsável pela implementação da Política Nacional de Habitação é o Ministério das Cidades, que foi criado em 2003. As responsabilidades deste órgão incluem avaliação, consulta e implementação da política nacional de habitação.
A cidade do Rio de Janeiro têm duas principais entidades que regulam questões habitacionais e urbanas, bem como uma série de políticas para o desenvolvimento urbano. São a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) e o Conselho de Gestão do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS).
A SMH assegura que favelas estão cumprindo com as leis de propriedade locais e é responsável pela sua urbanização e integração na cidade formal. As principais responsabilidades desta Secretária são: i) melhorar a habitação em favelas, ii) construir 50.000 unidades de habitação de baixa renda em conformidade com as leis locais, e iii) executar todos os projetos de habitação da Prefeitura (incluindo o programa de urbanização de favelas Morar Carioca–agora em grande parte abandonado).
O Conselho de Gestor do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social (FMHIS) cria diretrizes e recursos para o FMHIS e é composto por dez servidores públicos e dez membros de organizações da sociedade civil. Ele aprova todos os orçamentos, planos e metas para os recursos FMHIS.
Conclusão
A legislação brasileira em diferentes níveis de governo prevê o reconhecimento dos direitos da favela e estabelece a necessidade de justiça da habitação, bem como o estabelecimento de órgãos governamentais dedicados a implementar essas políticas. A grave escassez contínua de casas a preços acessíveis em locais que promovam a justiça social, demonstra que a execução e implementação destes programas de políticas públicas, no entanto, não respondem aos requisitos da legislação em vigor. Como a necessidade de habitação a preços acessíveis cresce e as pressões sobre os governos locais para fornecê-la continuam subindo, os moradores de comunidades de baixa renda, líderes de movimentos sociais e acadêmicos estão colocando uma pressão crescente sobre o governo para cumprir suas obrigações frente a lei.
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Série Completa: Leis Habitacionais no Brasil
Parte 1: O Que as Leis Brasileiras Dizem Sobre o Direito à Habitação?
Parte 2: A Favela como Fundo de Posse Coletiva: Uma Solução para Evitar a Remoção e a Gentrificação?
Parte 3: Modelos de Fundo de Posse Coletiva e Cooperativas Habitacionais do Mundo Todo