Os direitos humanos são direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais universais, indivisíveis e inalienáveis. Isso quer dizer, de forma simplificada, que são válidos para todos, que sob nenhuma circunstância podem uns ser respeitados, mas outros não, e que ninguém pode perdê-los, independente do que tenha feito ou venha a fazer.
A Constituição Brasileira garante a igualdade “perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (Art. 5°). Além disso, garante que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (Art. 5º, III) e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (Art. 5º, LIII) e assegura “aos presos o respeito à integridade física e moral” (Art. 5º, XLIX), dentre outros. Apesar de possuir um sistema de leis dos mais robustos para a proteção desses direitos, na prática é um estado que as viola sistematicamente.
Além de um estado violador, o Brasil também testemunha um movimento recente de uma parcela da população brasileira na direção de rechaçar o conceito de direitos humanos como sendo uma bandeira da esquerda para proteger criminosos. Esses costumam insistir na máxima “direitos humanos para humanos direitos”, como se os direitos não fossem universais, mas conquistados a partir de merecimento e boa conduta. Muitos inclusive gostam de rebater aqueles que se posicionam contra violações de direitos humanos com o lema “’tá com pena, leva para casa” ou, em outra variação, “Adote um bandido”. No limite, alguns ainda propõem que “bandido bom é bandido morto”.
Fora do Brasil, em democracias consolidadas, os direitos humanos são frequentemente vistos como base fundamental do progresso e da própria democracia, de forma que tais mal-entendidos são menos comuns. A seguir, desconstruimos cinco desses mitos:
Mito 1: Direitos humanos são para bandidos
Os direitos humanos garantem para aqueles considerados criminosos, assim como para qualquer pessoa, direitos como a presunção da inocência, direito a um julgamento, direito à integridade física. Eles não garantem tratamento especial, liberdade incondicional ou privilégios. Se o “pessoal dos direitos humanos” intervém para garantir os direitos humanos de um criminoso, não é porque ele está correto ou merece mais, é porque ele está em uma posição de vulnerabilidade, na qual buscam relativizar os seus direitos garantidos por lei.
Ao rechaçarmos os direitos humanos, não estamos defendendo a punição devida pelo crime, mas a retribuição em igual moeda. E se retribuímos em igual moeda, o que nos diferencia do criminoso? Como pode ser a violência um meio de gerar ordem? E como podemos condenar um criminoso infringindo a própria lei? Se opor aos direitos humanos é se opor à lei; violar os direitos humanos é violar a lei.
Quando relativizamos um direito de um cidadão específico, estamos enfraquecendo a própria instituição e abrindo precedente para que esse direito seja desrespeitado novamente no futuro, inclusive no caso de qualquer um de nós. É preciso superar a suposta oposição entre polícia e direitos humanos, a visão de que os direitos são um entrave à justiça e ao combate à criminalidade. A polícia tem o dever de proteger os cidadãos–e essa proteção não pode ser seletiva, nem pode ser só negativa, na forma da proteção contra a violência, mas deve ser positiva, na forma de promoção de direitos.
E se essa proteção pudesse, de fato, ser seletiva, quem definiria a quem ela se estenderia e a quem não? Quem poderia definir qual bandido teria seus direitos violados e qual não teria? Como deixar instituições calcadas no preconceito que vitimam mais jovens negros e pobres do que quaisquer outros, como a policial, definir quem é o “cidadão de bem”? E qual é o limite de ilegalidade que separa o “cidadão de bem” e o criminoso?
Não podemos partir do princípio de que há um lado essencialmente mau e o outro essencialmente bom. De que uns crimes são mais aceitáveis que outros. De que os “cidadãos de bem” merecem mais porque são trabalhadores, pagam impostos, acordam cedo. Cabe somente à justiça julgar seus crimes, com base em uma constituição que garante igualdade perante a lei e direitos humanos universais.
Por conta desta sua grande importância, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, influenciou a maioria das constituições de países no mundo feitas após sua publicação, e é o documento mais traduzido do mundo.
Mito 2: Aqueles que defendem os direitos humanos são a favor de não prender criminosos
São a favor, sim, de um tratamento justo para os criminosos, de presídios que não sejam superlotados, da proibição de práticas de tortura. São a favor de uma mudança estrutural na educação e nas oportunidades, para que menos pessoas recorram à criminalidade, e a favor da reabilitação, para que o criminoso após cumprir a sua pena seja reintegrado à sociedade e tenha oportunidades para não recair de novo no crime, criando um ambiente mais seguro para todos. Justiça não pode ser sinônimo de vingança.
Mito 3: Que existe o “pessoal dos direitos humanos”
Algumas pessoas costumam chamar de “pessoal de direitos humanos” desde aqueles que vão aos presídios oferecer ajuda jurídica e aulas aos presos, até os seus amigos que impedem os outros de “dar uma lição” no ladrão pego em flagrante. Falar que existe um “pessoal dos direitos humanos” é implicar que todos os outros não o são, que não estão interessados nos direitos humanos dos indivíduos.
O pessoal dos direitos humanos, na verdade, está apenas tentando garantir o acesso igualitário aos direitos previstos na constituição para você e todos nós. Ele ou ela não está tentando soltar o criminoso, apenas tentando garantir que ele ou ela não será torturado ou espancado, mas julgado e preso como qualquer outro cidadão detentor de direitos deveria ser.
Mito 4: ‘Direitos humanos’ é uma bandeira esquerdista
Não foi a esquerda, muito menos a brasileira, que inventou ‘os direitos humanos’ ou que decidiu que eles seriam inalienáveis.
Os direitos humanos em sua concepção atual foram codificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948. Seu contexto de criação remete às violações cometidas no contexto das Grandes Guerras, incluindo o emprego de bombas atômicas e o Holocausto, e também ao contexto de emergência da Guerra Fria, que opôs capitalistas e comunistas. Isso refletiu na incorporação, por exemplo, do direito do cidadão à propriedade e do direito de não ser arbitrariamente privado dela, entre muitos outros.
A Declaração não tem caráter vinculante, ou seja, não precisa ser ratificada e não prevê punições para aqueles que a descumprem, mas todos os 196 países membros da ONU sinalizam a sua aceitação ao se filiarem à organização. Dos nove grandes tratados internacionais que codificam os princípios contidos na Declaração, todos os países membros da ONU ratificaram pelo menos um.
Inúmeros países cujos governos são de centro-direita têm os direitos humanos como valores importantes. Um exemplo simbólico é a Alemanha, na qual os direitos humanos constituem um elemento chave na construção de sua identidade nacional, devido às traumáticas violações em massa durante o regime nazista, e que reflete, mais recentemente, na decisão de acolher o grande fluxo de refugiados.
Mito 5: Não existem direitos humanos para policiais e para a família das vítimas
Os direitos humanos são universais, ou seja, para todos, e inalienáveis, ou seja, ninguém pode perdê-los. Policiais, suas famílias e as famílias de vítimas de atos de violência são tão merecedores de direitos quanto quaisquer outras pessoas, mas não mais do que outras pessoas.
O Brasil tem uma das polícias que mais mata e que mais morre no mundo. No Rio de Janeiro, a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ inclusive atende famílias de policiais mortos, com apoio tanto jurídico quanto psicológico, assim como a família de qualquer outra vítima de violência.
A polícia precisa entender que não existe uma oposição entre polícia e direitos humanos, mas que os direitos humanos também existem para proteger o policial. Isso inclui não só seu direito à integridade física, frequentemente ameaçado em sua atividade, mas também combater tratamentos degradantes e humilhantes dentro da própria instituição policial.
Direitos humanos não são só para humanos direitos; são para todos.