Leia a matéria original por Maritza Stanchich em inglês no The Guardian aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil. Matéria atualizada em termos de datas apresentadas para refletir eventos que passaram desde sua publicação original em inglês.
Como desenvolver uma comunidade sem fazer subir os preços da terra? Moradores ao longo de um canal poluído em San Juan formaram um Termo Territorial Coletivo* (Community Land Trust, ou CLT, na sigla em inglês) para ajudar a salvar suas casas, bem como o meio ambiente.
Durante anos, uma mensagem de grafite tem aparecido por toda San Juan, capital de Porto Rico, como uma demanda urgente: Dragado ya! (que significa “dragagem agora!”).
Mesmo os transeuntes que nunca pisaram nos oitos barrios (comunidades) que compõem a favela Canal Martín Peña–um grande assentamento informal ao longo de 6 km do canal no centro da cidade–sabem que a mensagem aponta para a extrema necessidade de dragar a via navegável, que se tornou tão entupida com lixo que quem dirige com as janelas abertas próximo ao local pode sentir imediatamente o cheiro das águas estagnadas.
Esta área anteriormente negligenciada foi originalmente estabelecida em zonas de manguezais e não possui sistemas adequados de drenagem de água, de modo que mesmo temporais moderados causavam inundações e entupimentos no esgoto, causando problemas de saúde e ambientais para seus 26 mil habitantes.
Desesperados para aliviar esses problemas, a comunidade local começou a se organizar para exigir a dragagem do canal, mas temia o aumento dos valores da terra e o deslocamento de famílias que essa melhoria nestas comunidades tende a trazer.
Moradores passaram dois anos elaborando coletivamente planos para a futuro da área, criando um plano formal de desenvolvimento e uso do solo que foi adotado pelo conselho de planejamento de Porto Rico. Com a ajuda do apoio do governo nacional e municipal, moradores locais e as organizações criaram um projeto colaborativo chamado Enlace para ajudar a implementar o plano para melhorar o canal e suas comunidades adjacentes de forma inclusiva.
Uma parte crucial envolveu o estabelecimento de um CLT, para proteger os moradores da gentrificação através da propriedade coletiva da terra. 2.000 famílias do El Caño–como a área é conhecida localmente–agora possuem coletivamente 200 acres (80.9372 m2) de terras que não podem ser vendidas [porém as famílias do CLT são donas integrais e têm o direito de vender suas casas sobre essas terras].
Como parte mais ampla do projeto Enlace, os moradores estão envolvidos na tomada de decisões em relação a transformação social e ambiental de sua área, e podem se sentir mais seguros quanto ao seu futuro como proprietários de terras.
A participação cidadã e a consciência crítica foram fomentadas através de vários programas: abordagem e desenvolvimento da justiça ambiental, habitação a preços acessíveis, segurança alimentar, prevenção à violência, empreendedorismo local, liderança juvenil e alfabetização de adultos.
Os laços comunitários são evidentes no momento em que você pisa o pé na comunidade. Em uma tarde recente, a moradora Carmen Febres aproximou seu carro a dois adolescentes, que estavam andando de bicicleta, e perguntou se eles tinham ido bem na escola naquele dia. “Sim”, assentiram os meninos com deferência. Ela fez um gesto para eles com os dedos, “eu estou de olho em vocês!” Enquanto eles pedalavam, e pareciam gostar de sua atenção admoestadora.
Como parte da liderança, Carmen é presidente do G8, uma organização central das oito comunidades, que opera sob um pluralismo que reconhece os interesses comuns, respeitando a diversidade política, religiosa ou cultural entre eles. O G8 trabalha em conjunto com o CLT e a prefeitura para progredir no projeto Enlace, garantindo que os moradores tenham voz em todos os aspectos na tomada de decisões do projeto.
O trabalho em hortas comunitárias tem sido uma atividade central no distrito, ajudando a facilitar a liderança juvenil a melhorar a segurança alimentar, e a realçar a educação sobre alimentos sustentáveis. Existem várias hortas urbanas geridas comunitariamente no distrito e por toda a cidade–as quais são vistas como uma resposta ao fato de que 85% dos alimentos são importados em Porto Rico.
Essas atividades ajudaram a comunidade a se tornar um modelo de autoaperfeiçoamento e sustentabilidade, além de promover o orgulho e um maior senso de segurança e pertencimento entre os moradores. Também atraiu a atenção internacional: outubro de 2016, o projeto recebeu o Prêmio World Habitat 2016 das Nações Unidas.
Genesis Colón, 20, viajou para o Habitat III em Quito em outubro 2016, como membro do projeto de desenvolvimento de liderança juvenil, devido ao prêmio. A terceira de quatro irmãos, ela está estudando enfermagem e é a primeira em sua família a estar na universidade. Genesis diz que quer “ver no futuro, a dragagem e a luta pela comunidade”. Ela acrescenta: “Minha família está considerando sair de Porto Rico, mas eu quero ficar”.
Este não é um compromisso pequeno em um país que enfrenta uma dívida histórica de $72 bilhões e um colapso econômico [além das consequências do Furacão Maria, que vieram após a publicação desta matéria originalmente em inglês]. O impulso para sair neste momento é forte, com níveis de emigração cada vez mais crescentes (84 mil pessoas saíram para o continente americano em 2014-15), enfraquecendo ainda mais a base tributária e, por sua vez, aprofundando a crise. O Congresso dos EUA impôs um conselho federal de controle fiscal em Porto Rico–um território dos EUA de 3,4 milhões de pessoas–e agora está pronto para promulgar medidas de austeridade que provavelmente irá esvaziar o setor público.
Uma parte considerável da dívida se deve aos predatórios hedge funds (fundo multimercado) de oporturnistas dos EUA–duas decisões da Suprema Corte dos EUA anularam a suposta autonomia de Porto Rico em relação aos EUA como uma commonwealth americana, exacerbando a sua condição colonial. Ao mesmo tempo, as leis locais destinadas a criar um paraíso fiscal para os mega-ricos estão atraindo especuladores de fora.
Esta é uma perspectiva ameaçadora para as comunidades sem os tipos de proteção que o G8 do Canal Martin Peña engendrou. “É fácil para as comunidades perderem o controle por não ter o pedaço de papel certo”, diz David Ireland, diretor da Fundação de Construção e Habitação Social, que é parceira da ONU Habitat para organizar os Prêmios World Habitat. Ele acrescenta que usar um CLT para lidar com especuladores que miram propriedades, uma a uma, para compra e especulação, é raro fora de um contexto de alto desenvolvimento. “Embora não seja uma garantia, é oferecido um nível de proteção, e dá a uma comunidade uma chance de lutar para se manter onde eles pertencem”.
O CLT também ajuda a sustentar a área, gerando renda através do aluguel de suas propriedades, desenvolvendo lotes vagos e implementando vários projetos. Casas individuais também podem ser vendidas, com o direito de usar as terras de propriedade coletiva onde estão.
Construir confiança entre moradores, especialmente em tal clima especulativo, tem sido uma conquista importante nos níveis macro e micro. Talvez o programa mais delicado do projeto envolve o reassentamento de famílias cujas casas são mais propensas a inundações ou estão no caminho da dragagem. Integrar membros das 130 famílias que já se mudaram, como facilitadores que ajudem outras famílias a enfrentarem o reassentamento, tem sido a chave para o sucesso, de acordo com Lyvia Rodríguez, que dirige o projeto Enlace.
Na sua visão, o desafio é criar esperança para a sociedade e o país como um todo, com uma política ambiental influenciando positivamente o avanço econômico.
Com mais de 100 colaboradores e aliados, desde projetos universitários de história oral até solidariedade com outras lutas comunitárias–como o ativismo que combate o descarte de cinzas tóxicas em Peñuelas, no sul do país–o espírito de troca floresceu.
Esse tipo de visão atraiu Line Algoed, uma antropóloga urbana da Bélgica, para trabalhar com o Canal. Ela pretende estabelecer um observatório internacional de conhecimento popular sobre os CLTs em assentamentos informais, “desse modo líderes comunitários nos chamados ‘slums’ (termo derrogatório em inglês para bairro informal), em todo o mundo, podem encontrar o caminho até o El Caño, e trocar informações com pessoas como Carmen Febres, para obter este modelo traduzido para outras comunidades em todo o mundo”.
Para compartilhar esse CLT e desenvolver o modelo com comunidades em todo o mundo, um grupo de cerca de 20 pessoas de ONGs e iniciativas comunitárias da América Latina, América do Norte e Europa visitaram El Caño em fevereiro passado.
Line também vê uma mudança importante no afastamento da ênfase nos títulos individuais de terras na regularização dos assentamentos informais, para a propriedade coletiva da terra como uma proteção mais efetiva das comunidades históricas e culturais. Ela diz que o projeto também constitui um exemplo para arquitetos e engenheiros participarem de iniciativas comunitárias, ao invés de esperar conquistar o interesse dos moradores sem o trabalho de base.
David Ireland compartilha uma visão holística semelhante na promoção não apenas da comunidade, de forma isolada, mas em relação ao resto da cidade. “Quando as pessoas pobres são deslocadas”, ele diz, “muitas vezes elas se tornam mais pobres por isso, e as contínuas deslocações pioram a vida da cidade como um todo. Uma cidade mista onde todos se beneficiam forma um tecido social mais saudável”.
As mensagens de grafite ao longo de San Juan mostram que, embora o desenvolvimento da comunidade esteja crescendo, o progresso ambiental é mais lento: o governo continua a adiar a dragagem do canal–com um custo estimado de centenas de milhões de dólares–devido à crise financeira do país.
Ainda assim, a poucos passos da estação de trem da Universidade do Sagrado do Coração, na repleta área de Santurce em San Juan, com os altos edifícios do distrito bancário de Golden Mile aparecendo ao fundo, agora pode-se sentir a mudança no ar no canal.
*A partir de junho de 2018, adotamos a nomenclatura ‘Termo Territorial Coletivo’ (TTC) para traduzir o conceito, em inglês, de ‘Community Land Trust’. Anteriormente, o conceito foi traduzido livremente como ‘Fundo de Posse Coletiva’. A nova nomenclatura melhor descreve o instrumento internacional que atualmente está sendo adequado às especificidades brasileiras, especialmente sob o aspecto jurídico.